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REFLEXÕES SOBRE O CARROSSEL, DE DÉCIO PIGNATARI

Por Claudio Daniel


O livro de estreia de Décio Pignatari, Carrossel, foi publicado em 1950, mesmo ano em que Haroldo de Campos lançou o Auto do possesso e um ano antes de Augusto de Campos publicar O rei menos o reino. Os três livros, que foram comentados na época em uma resenha de Sérgio Buarque de Hollanda, ao mesmo tempo que apresentam certa afinidade formal com a poesia da geração de 1945 – linguagem elevada, tom solene e vocabulário rico, em contraste com a coloquialidade dos modernistas – também traz elementos novos, no que diz respeito à experimentação de linguagem. No livro de estreia de Haroldo de Campos, o Auto do possesso, por exemplo, é nítido um traço barroquizante, inclusive no uso de recursos como o labirinto de versos e o labirinto de palavras, como acontece no poema Lamento sobre o lago Nemi. No livro de Augusto de Campos, O rei menos o reino, além da imagética surrealizante, incomum na poesia brasileira da época (apesar dos precedentes de Murilo Mendes e Jorge de Lima, na década de 1930), dos paradoxos e antíteses barrocos e do uso da elipse, da anáfora e da inversão de elementos na frase, temos ainda violações da sintaxe e das normas de pontuação, que já sinalizam a futura ruptura com o discurso e com o verso propostos pela Poesia Concreta. Em Carrossel, Décio Pignatari utiliza recursos similares e alguns até mais radicais, como o uso da tmese, que consiste na fratura de uma palavra ou frase por parêntesis ou travessões, para a inclusão de outra palavra ou frase, numa espécie de polifonia vocabular, ou seja, o simultaneísmo verbal, que permite a construção de vários significados. A escrita poética de Décio Pignatari traz imagens mais fortes, sem o temor da aproximação com a pornografia, à maneira das baladas de François Villon, e ainda a utilização das letras valorizando o seu desenho icônico, numa época em que a semiótica de Charles Peirce não era tão conhecida no Brasil. O poema de abertura do volume, Carrossel, que dá título ao livro, tem quase 400 versos, divididos em estrofes com número diferente de linhas, sem rimas e métrica de quatro sílabas, próxima à redondilha menor, em que o poeta utiliza, como recurso para marcar o ritmo da composição, a repetição de uma estrofe, à maneira de refrão ou estribilho. A primeira camada de leitura do poema, a mais superficial, mas a partir da qual se desenrola todo o texto poético, é a recordação da infância; a escolha do brinquedo favorito, no parque de diversões, é também alegoria de uma escolha existencial, em que dois elementos se destacam: o movimento giratório circular, possível alusão ao tempo, e o cavalo de madeira, que, entre outros possíveis significados, relaciona o eu lírico ou narrador do poema à literatura de cavalaria da Idade Média, sendo citados, ao longo do poema, Sir Lancelote, os Cruzados, Ricardo Coração de Leão e outros personagens da poesia e prosa medievais, que funcionam aqui, talvez, como metonímia de toda a literatura. Nesse sentido, podemos falar em uma camada de leitura metalinguística, além do imaginário infantil do menino que se imagina um cavaleiro do ciclo de romances do rei Arthur. O movimento do carrossel, ao mesmo tempo, traz lembranças das palavras de sua mãe, os terrores infantis, o despertar da sexualidade, tristezas, decepções, viagens geográficas ou imaginárias, a religiosidade, leituras, num incessante fluxo de memórias, em que não faltam referências cultas, como as alusões a Saladino, Júlio César, Marco Antônio e Cleópatra. Neste aspecto, podemos considerar, como terceira camada de leitura, que o carrossel é o próprio mundo interior do poeta, com o seu vaivém de ideias, sensações e lembranças de vida, incluindo falas e diálogos, pequenas narrativas e imagens rápidas como cenas de um videoclipe. Se no aspecto formal este poema não tem a mesma radicalidade inventiva do Lobisomem ou do Jogral e a Prostituta Negra, que comentaremos a seguir, por outro lado é, além de uma antiautobiografia poética alegórica, a composição antecipa futuras experiências de linguagem do poeta, como o uso de travessões, parêntesis e outros sinais gráficos que fraturam a linearidade textual, a incorporação da oralidade, a imagética rica e sobretudo o movimento contínuo das palavras, que antecipa futuras construções do poeta, inclusive em sua fase concretista.

Vamos analisar agora o poema O jogral e a prostituta negra:


Onde eras a mulher deitada, depois dos ofícios da penumbra, agora és um poema Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas. É à hora carbôni- ca e o sol em mormaço entre sonhando e insone. A legião dos ofendidos demanda tuas pernas em M, silenciosa moenda do crepúsculo. É a hora do rio, o grosso rio que lento flui flui pelas navalhas das persianas, rio escuro. Espelhos e ataúdes em mudo desterro navegam: Miras-te no esquife e morres no espelho. Morres. Intermorres. Inter (ataúde e espelho) morres. Teu lustre em volutas (polvo barroco sopesando sete laranjas podres) e teu leito de chumbo têm as galas do cortejo: Tudo passa neste rio menos o rio. Minérios, flora e cartilagem acodem com dois moluscos murchos e cansados, para que eu componha, recompondo: Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas. (Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das

persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em

rosa: tens um punho decepado e um seio bebendo

na sombra. Inicias o ciclo dos cristais e já cintilas.) Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma- ra lenta, levantas a fronte e propalas: "Há uma estátua afogada..." (Em câmara lenta! - disse). "Existe uma está- tua afogada e um poeta feliz(ardo em louros!). Como os lamento e como os desconheço! Choremos por ambos." Choremos por todos - soluços e entoandum litúrgico impropério a duas vozes compomos um simbólico epicédio a aquela que deitada era um poema e o não é mais. Suspenso o fôlego, inicias o grande ciclo subterrâneo de retorno às grandes amizades sem memória e já apodreces: Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas.


Este poema, talvez o mais complexo do livro, reúne 48 versos, sem medidas métricas nem divisão estrófica regular, com o uso recorrente do estribilho ou refrão “Cansada cornucópia entre festões de rosas murchas”. O poema guarda ainda alguns ecos do simbolismo, como o uso da metáfora (os “ofícios da penumbra”, a “silenciosa moenda do crepúsculo”), algumas imagens surrealizantes (“polvo barroco sopesando sete laranjas podres”, “Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em rosa”), mas o que chama a atenção nesta peça é a extrema modernidade de linhas como


Miras-te no esquife e morres no espelho.

Morres. Intermorres.

Inter (ataúde e espelho) morres.


e


Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma-

ra lenta, levantas a fronte e propalas:

"Há uma estátua afogada..." (Em câmara lenta! - disse).

"Existe uma está-

tua afogada e um poeta feliz(ardo

em louros!). Como os lamento e

como os desconheço!

Choremos por ambos."


Nestas duas estrofes, encontramos o uso da tmese em “Inter (ataúde e espelho) morres” e sobretudo na linha “Tua al(gema negra)cova assim soletrada em câma- / ra lenta”, em que a criação de significados simultâneos é gerada pela maior proximidade ou distância entre os termos componentes da frase: a sílaba al liga-se a gema negra, formando algema negra, mas também à palavra cova, formando alcova. Temos ainda a fratura da palavra “câmara” pelo uso incomum, na época, do hífen, de maneira não-gramatical, isolando um pedaço da palavra, “cama”, que remete ao “ofício da penumbra” da prostituta negra em sua “alcova” – e não é menos importante a escolha da anti-heroína, triplamente discriminada por sua ocupação, classe social e pela cor de sua pele. Nesse ponto, é possível estabelecermos um paralelo temático com a poesia do norte-americano Cummings, que também gostava de incluir em seus poemas tipos sociais marginalizados, como os mendigos e prostitutas. No caso do poema de Décio Pignatari, a prostituta negra adquire ainda um outro sentido, metalinguístico, pois o poeta escreve, logo no início:


Onde eras a mulher deitada, depois dos ofícios da penumbra, agora és um poema


sendo possível ainda pensarmos no jogo de claro-escuro entre a pele negra da mulher e a cor branca dos lençóis, de um lado, e a cor escura dos signos verbais no espaço em branco da página. A referência à “câmara lenta” também é importante, pois revela o uso consciente de recursos da linguagem cinematográfica na poesia de Décio Pignatari, sobretudo os cortes secos e as montagens de diferentes planos ou sequências, como acontece, por exemplo, nestas linhas: “Modelo em repouso. Correm-se as mortalhas das persianas. Guilhotinas de luz lapidam o teu dorso em rosa”. Outro recurso que chama a nossa atenção é o uso de letras do alfabeto não apenas pelo seu som ou sentido, mas também por seu desenho, que adquire um caráter icônico, como acontece nas linhas:


A legião dos ofendidos demanda tuas pernas em M, silenciosa moenda do crepúsculo.



Neste fragmento do poema, a letra M é o ícone das pernas abertas da mulher deitada, ousadia tanto formal quanto referencial, que nos faz lembrar da composição Balada da gorda Margot, de François Villon, aliás traduzida por Décio Pignatari, que atualiza o impacto semântico da peça pela incorporação da gíria, do palavrão e da fala coloquial de um centro urbano como a cidade de São Paulo – Décio, aliás, nasceu em Jundiaí, viveu em Osasco e conheceu os irmãos Campos quando estudou Direito na Faculdade do Largo de São Francisco. Os três iniciaram uma longa amizade, responsável pela criação do grupo Noigandres, que daria nome à revista editada por eles, que foi sucedida, na década de 1960, pela revista Invenção. Nas conversas dos “trigênios vocalistas”, conforme expressão usada em verso de Haroldo de Campos, eles trocavam informações sobre poesia moderna e de vanguarda, arquitetura, cinema, artes visuais, teoria literária, semiótica, e desses encontros surgiram as ideias que mais tarde seriam expostas no Plano-piloto da Poesia Concreta. O poema de Décio Pignatari, apesar de toda a sua radical modernidade, poderia ser chamado de uma elegia ou nênia, em homenagem à prostituta morta, ainda que essa circunstância seja apenas sugerida pelo léxico do poema, que inclui palavras e expressões como esquifes, ataúdes, morres, intermorres, leito de chumbo, mortalhas, estátua afogada, e já apodreces, entre outras. O próprio estribilho é, ao mesmo tempo, metáfora erótica e referência às coroas de flores oferecidas à defunta, que, não mais presente no mundo dos vivos, tornou-se um poema. Por fim, não podemos deixar de mencionar a presença da palavra jogral, no título do poema, que faz referência aos trovadores de origem social mais humilde que em geral cantavam as cantigas compostas por outros autores, referência medieval que novamente nos faz pensar em François Villon, autor do século XV, posterior à época da lírica de Provença, mas que manteve alguns recursos formais desse período, como o uso da balada. Vamos analisar agora outro poema do livro de Décio Pignatari, intitulado O lobisomem:


O LOBISOMEM O amor é para mim um Iroquês De cor amarela e feroz catadura Que vem sempre a galope, montado Numa égua chamada Tristeza. Ai, Tristeza tem cascos de ferro E as esporas de estranho metal Cor de vinho, de sangue, e de morte, Um metal parecido com ciúme. (O Iroquês sabe há muito o caminho e o lugar Onde estou à mercê: É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura, Passando por entre uns arvoredos colossais Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão). Outro dia eu senti um ladrido De concreto batendo nos cascos: Era o meu Iroquês que chegava No seu gesto de anti-Quixote.

Vinha grande, vestido de nada Me empolgou corações e cabelos Estreitou as artérias nas mãos E arrancou minha pele sem sangue E partiu encoberto com ela Atirando-me os poros na cara. E eu parti travestido de Dor, Dor roubada da placa da rua Ululando que o vento parasse De açoitar minha pele de nervos. Veio o frio com olhos de brasa Jogou olhos em todo o meu corpo; Encontrei uma moça na rua, Implorei que me desse sua pele E ela disse, chorando de mágoa, Que era mãe, tinha seios repletos E a filhinha não gosta de nervos; Encontrei um mendigo na rua Moribundo de fome e de frio: “Dá-me a pele, mendigo inocente, Antes que Ela te venha buscar.” Respondeu carregado por Ela: “Me devolves no Juízo Final?” Encontrei um cachorro na rua: “Ó cachorro, me cedes tua pele?” E ele, ingênuo, deixando a cadela Arrancou a epiderme com sangue Toda quente de pelos molhados E se foi para os campos da lua Desvestido da própria nudez Implorando a epiderme da lua. Fui então fantasiado a travesti Arrojado na escala do mundo E não houve lugar para mim. Não sou cão, não sou gente – sou Eu. Iroquês, Iroquês, que fizeste?

Este poema, sem medida métrica fixa, tem uma arquitetura formal inusitada, dividido em uma estrofe inicial de oito versos, uma segunda estrofe de cinco versos, uma terceira de quatro versos, depois um longo bloco de 34 versos, sem divisão estrófica, e dois versos isolados no final. As linhas iniciais da composição fazem a inusitada comparação entre o amor, substantivo abstrato, e o iroquês, substantivo masculino relacionado aos membros de uma tribo indígena nômade norte-americana, associada à prática de escalpelar os seus inimigos em campo de batalha, comparação no início pouco compreensível, o que ficará mais claro nas linhas finais da peça, quando um cão cede a sua pele ao poeta, que se torna, assim, um ser híbrido, nem totalmente humano, nem totalmente canino, mas uma confusa mistura de ambos, daí o título do poema, O lobisomem. A descrição do amor, nos primeiros versos, é alegórica; ele é não apenas um iroquês de pele amarela, como vem a galope numa égua chamada tristeza, que tem cascos de ferro e esporas de estranho metal. É uma associação, de viés romântica, entre o amor, o ciúme, a tristeza e a morte, frequente na poesia de outros poetas que frequentaram a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco no século XIX, como Álvares de Azevedo, embora sem o excesso sentimental e retórico desses autores. Nas estrofes seguintes, o poeta imagina-se numa estrada asfaltada, solitária, silenciosa e escura, como a selva selvagem do Inferno de Dante ou a estrada de Minas, pedregosa, de A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, mas, no lugar de uma experiência epifânica, o poeta-narrador vislumbra o seu iroquês, com gesto de anti-Quixote, logo, anti-sonhador e anti-utópico. Este iroquês – o amor – “vestido de nada” atrai a atenção erótica e sentimental de quem o contempla, mas retribui não com favor amoroso, mas sim, alegoricamente, arrancando a pele do poeta, que fica travestido de dor, com o vento açoitando seus nervos expostos. A narrativa alegórica prossegue com o encontro do poeta com três outros personagens dramáticos, a moça, o mendigo e o cão; a cada um, ele pede que ceda sua pele para cobrir seu corpo mutilado, mas recebe a recusa da moça, que alimenta uma criança, do mendigo, que responde, de maneira irônica, se a pele será devolvida no Dia do Juízo Final, pouco antes de morrer, e a ingênua aceitação do cachorro de rua, que, numa imagem brutalista, quase expressionista, encerra a antifábula de Décio Pignatari, abandonando a cadela e oferendo ao narrador sua epiderme manchada de sangue. Assim desumanizado, tornado um ser híbrido, transtornado pelo amor, o poeta prossegue sua jornada no mundo, sem encontrar um lugar para si. Conforme é dito no último verso do poema: “Não sou cão, não sou gente – sou Eu”. A estranheza e radical modernidade do livro de estreia de Décio Pignatari surpreendem ainda hoje, ou sobretudo hoje, quando predomina uma poesia fácil, diluição do coloquialismo e do prosaísmo, que abdicou da busca da inovação temática ou formal.








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