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Tal pai, tal filho: Paulo Leminski e Miguel Angelo Leminski

Por Mário Alex Rosa


Agosto é o mês de aniversário do poeta Paulo Leminski. Se estivesse vivo, estaria completando 80 anos. Podemos imaginar como andaria a sua cabeça com todas essas novas tecnologias? Seria um poeta 24 horas do dia atuando, fazendo chover um pouco de tudo nas nossas cabeças? Perguntas sem respostas.


Mas, se não há respostas, posso recuar pelo menos no tempo e relembrar aqui, por um ato totalmente pessoal e sem nenhuma pretensão interpretativa, dois livros em que pai e filho se encontram na poesia.


Os dois livros que tenho em mãos são duas joias raras: não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980), de Paulo Leminski, e Poemas (1982), de Miguel Angelo Leminski. Para além da qualidade dos poemas de pai e filho, o que me interessa, antes de qualquer outra coisa, são as fotos que aparecem nas capas e contracapas dos poetas. Na contracapa de não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, vemos Leminski segurando seu livro, calçado com uma sandália típica dos anos 70, um colar no pescoço, usando óculos também lembrando aquela época. Há um despojamento e, ao mesmo tempo, um ar de seriedade. Seria um mistura de hippie e intelectual. No miolo, os poemas lembram fonte de máquina de escrever, dando um charme a mais a cada poema visto/lido.


Já as fotos de Miguel Angelo são de um menino desprendido, como deve ser, caminhando descalço numa rua de terra. Com uma das mãos segura seu par de tênis, com a outra parece carregar um brinquedo (seria um aviãozinho de madeira? Um catavento?). Na contracapa, encostado numa parede de madeira, sem camisa (Curitiba não estava frio), sorri para alguma coisa que está logo adiante. Não sabemos o que é. Mas está ali feliz como nesse formidável poema de sua autoria:


andando que se corre

olhando que se vê

o andar da visão

 

visto e avisto

o céu de olhos

brancos e azuis

da beleza

das coisas solares

 

E é nessa caminhada de um menino brincando que a poesia nasce e dela se extrai a beleza das coisas solares. Miguel só tinha 10 anos quando partiu, mas os poucos poemas que nos deixou mostram que ao lado dos pais vida e poesia se amalgamavam. No livro do pai, o poema “Empate” vem ao lado de um desenho nada menos que do filho. O que se vê é típico daqueles desenhos que muitas crianças fazem dos pais. Leminski está lá todo largo, forte, como um judoca? O famoso bigode parece se misturar com a boca. O encontro entre pai e filho, entre poema e desenho, confirma o quanto naquela época a poesia fazia parte do dia a dia da família:


manes de vates

penas, penates

casas de orates

por que te debates?

 

magnos carlos

mármores marcos

vênus em martes

nem xeque nem mate




  

  

O jornalista mineiro José Maria Cançado, em 1986, no jornal Leia, comentava que a casa de Leminski era um território onde o pensamento voava livremente. O trecho é longo, mas vale repeti-lo aqui como forma de relembrarmos não só a capacidade da escrita poética de José Maria, mas, sobretudo, como era o espaço e o ambiente em certa época a casa do poeta curitibano:

 

[...] sua casa é um ponto zen, um enclave japonês dentro de um enclav polaco dentro de Curitiba numa espécie de construção cultural e arquitetônica em abismo que ele percorre para cima e para baixo. Ali, há rumores, estalidos do madeirame, caixilhos da janela meio enlouquecidos, camadas de coisas se ressentando. Aquilo se move. A casa que parece inventar e fundar o tempo todo, coisas mais do ser do que da circunstância […]. No seu escritório (território livre, não um desses redutos sempre defendidíssimos para onde os escritores se mandam, casamatas, mas uma dimensão da própria casa), há uma espécie de sinalização frenética, de mapeamento da selva selvagem da criação literária. Versos na janela, alfinetes, rabiscos, fragmentos, ideogramas pendurados no teto, móbiles verbais. São os seus estímulos. O chão também está minado de engenhos, dispositivos, artefatos poéticos. Alguns explodem ali mesmo, na hora” (Leia, n. 98, dez. 1986).

 

Por essa descrição de um lugar que era “mais do ser do que da circunstância”, pode-se dizer, então, que havia uma casa onde respirar poesia era transpirar vida. A soma do mundo sensível da criação e o viver para isso como trabalho dão a dimensão que a morada do poeta compunha para além de uma objetividade descritiva um lugar de sonhos, devaneios, recolhimento. No entanto, não estou propondo aqui uma relação harmônica, romantizada e muito menos moralizante do tema família nesse encontro, digamos leminskiano. Sabemos que em alguns autores, para citarmos três Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e um estrangeiro, Franz Kafka, a família se fez presente por razões diferentes.   

 

Em Drummond há entrega, amor, memória, saudade, acusações, enquanto na poesia de Manuel Bandeira, poeta que perdeu seus entes mais próximos quando aos 18 anos foi vitimado por tuberculose, a melancolia se soma a uma certa doçura ao lembrar poemas aos avós, a irmã, aos pais no belo “Os sinos”. Em Kafka, numa síntese muito simplificada, trata-se de um acerto de conta contra um pai extremamente manipulador.

 

Enfim, por essas fotos e poemas podemos imaginar que a casa dos Leminskis era uma efervecência poética quase que 24 horas do dia. Assim, é provável que, se pai e filho estivessem entre nós, estariam ainda fazendo chover poesia nas nossas cabeças.




     

 

 

Capa: Dico Kremer




Contracapa: Raquel Machado


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* Mário Alex Rosa é poeta, autor dos livros Ouro Preto – Poemas (Scriptum, 2012), Via férrea (Cosac Naify, 2013), ABC futebol clube (Aletria, 2015) (Infantil), Poemas pitorescos (Galileu Edições, 2020), Casa (Impressões de Minas, 2020), Diário de casa (Galileu Edições, 2021), Cosmonauta (Aletria, 2022) (Infantil) e Cartas ao mar (Scriptum, 2023). Coordena junto com o tipógrafo Flávio Vignoli a Coleção de poesia Lição de Coisas – Tipografia do Zé – Belo Horizonte.

 

 

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