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Tubiano: o silĂȘncio que encobre violĂȘncias

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 28 de mai. de 2023
  • 3 min de leitura

Por Rita Coitinho



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A tensĂŁo entre o universal e o particular, o local e o global, um problema tĂŁo em voga nos estudos geogrĂĄficos e sociolĂłgicos, tem frequentemente seus melhores desdobramentos na literatura. É o que acontece no romance de Nicole Reis, Tubiano. O livro, publicado em 2022 pela Quintal EdiçÔes, pode ser lido como um romance regional, fortemente carregado pelos acentos do Rio Grande do Sul, sendo ao mesmo tempo profundamente universal. Os fragmentos das vidas dos personagens do romance, tĂŁo particulares, sĂŁo simultaneamente retratos de muitas vidas e lugares. As angĂșstias de seus personagens, entrelaçados no espaço e no tempo, evidenciam as injustiças, os silĂȘncios e as ansiedades que sĂŁo comuns a tantos brasileiros.


Para quem nĂŁo Ă© habituado ao palavreado gaĂșcho, a palavra tubiano talvez nĂŁo remeta a nenhuma imagem imediata. Tubiano Ă© cavalo de pelo vermelho ou escuro, com manchas brancas. Os entendidos de montaria dizem que Ă© bicho rebelde, difĂ­cil de montar. Um animal ensimesmado. Um pouco como o personagem InĂĄcio, que escolheu, dentre tantos disponĂ­veis, um cavalo tubiano para montar, apesar das crĂ­ticas do pai, figura rude que nĂŁo o compreendia e o intimidava.


Ensimesmado Ă© tambĂ©m Vitor, que por vezes achou que ia morrer, mas agarrou-se outra vez Ă  vida a fim de desvendar os mistĂ©rios que cercavam sua existĂȘncia. Uma vida como tantas, por anos encerrada em uma casinha nos fundos do quintal da casa dos patrĂ”es, onde viveu com a mĂŁe, empregada domĂ©stica. Vitor e a mĂŁe eram daqueles empregados de quem se diz, cinicamente, que “sĂŁo como da famĂ­lia”, jĂĄ que os patrĂ”es, uma famĂ­lia de classe mĂ©dia porto-alegrense, fizeram dele seu afilhado, tendo este a mesma idade de sua filha mais velha, com quem repartiu a infĂąncia. Na adolescĂȘncia, entretanto, seus caminhos se separaram, tomando aquela distĂąncia que hĂĄ entre os estudantes das escolas particulares, com suas festas e interesses, e a dos meninos e meninas do grupo escolar, filhos e filhas das empregadas e demais desafortunados, que nĂŁo frequentam a escola de inglĂȘs e sequer cogitam prestar o vestibular.


Vitor, menino negro, “o filho da empregada”, vai perdendo espaço na casa dos padrinhos Ă  medida que cresce, atĂ© o ponto em que Ă© levado a sentir-se um intruso. Quando a mĂŁe falece, vĂ­tima da violĂȘncia urbana de Porto Alegre, Vitor sente que nada mais o prende Ă quela casinha dos fundos. É quando sua existĂȘncia, separada pelo espaço, conecta-se Ă  de InĂĄcio, o menino que um dia escolheu um cavalo tubiano. O adulto InĂĄcio Ă© um infeliz funcionĂĄrio. A infĂąncia no interior, marcada pela rudeza do pai, a ausĂȘncia da mĂŁe e a proteção da tia sem filhos fora preenchida pelo laço afetivo com o animal de montaria. InĂĄcio torna-se um adulto angustiado. Seu relacionamento familiar conturbado, somado ao inesperado encontro com Vitor, levam-no a remexer o passado.


É esse o fio que vai ligar os dois jovens ao drama de Jaqueline e de sua mĂŁe. O infeliz destino da jovem, que fora trabalhar em “casa de famĂ­lia” para guardar algum dinheiro e ir atrĂĄs de um sonho, Ă© semelhante ao de tantas como ela, mulheres negras e solitĂĄrias em um Brasil interiorano hostil, racista e machista. O silĂȘncio que cerca sua existĂȘncia Ă© o mesmo silĂȘncio que encerra a vida de tantas mulheres e meninas, submetidas Ă s violĂȘncias de nossa sociedade. O contraste entre as trajetĂłrias familiares que abrigam os trĂȘs personagens remete-nos Ă  cĂ©lebre abertura de Anna Karenina (TolstĂłi), onde ficamos sabendo que cada famĂ­lia infeliz Ă© infeliz Ă  sua maneira, ao passo em que todas as famĂ­lias felizes – com a de Rubens e Marta, os “padrinhos” de Vitor – se parecem.

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Romance: Tubiano

Editora: Quintal EdiçÔes, 2022.

Autora: Nicole Reis



 
 
 

2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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