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Vallejo: o vale entre o fragmento e a unidade

Por Antônio Moura


Temos aqui, traduzida para o nosso idioma, uma pequena mostra da obra do grande escritor peruano César Vallejo, como o leitor poderá ver, divida em duas partes.


A primeira, intitulada originalmente Contra el secreto professional, constitui-se de uma reunião de textos curtos, uma espécie de cadernos de anotações, fragmentos, reflexões sobre diversos temas. Neles, encontram-se expressos diversas formas de inquietação do seu autor — estéticas, existenciais, políticas, sociais, metafísicas — através das quais podemos ter um visão ampla da sua forma liberta de pensar, independentemente das ligações ideológicas ou partidárias, de que foi protagonista durante os chamados últimos anos de Paris.


A segunda parte, trata-se de uma breve antologia de sua obra poética, escolhida, segundo critérios de afinidade pessoal do tradutor, de seus livros Os arautos negros, Trilce, Poemas em prosa e Poemas humanos, este último publicado postumamente. Não incluímos entre as escolhas, Espanha, afasta de mim este cálice, livro constituído por um único poema, que tem como pano de fundo a guerra civil espanhola. O motivo desta não inclusão deve-se ao fato de acharmos que um poema desta natureza merece ser publicado integralmente, o que, por sua extensão, não seria possível nesta edição, podendo vir a realizar-se em outra ocasião. Por outro lado, pensamos que esta lacuna pode ser compensada pelo caráter inédito em língua portuguesa, de Contra o segredo profissional.


Os poemas aqui selecionados e traduzidos, apesar de não constituírem material inédito, consideramos por bem fazê-lo, já que — além de uma nova tradução sempre poder ressaltar um novo aspecto ou novas cintilações em alguns pontos — apesar de sua grandeza, tem sido bastante escassas as tentativas de trazer à luz de nossa língua, uma obra de tão fundamental importância para a arte universal.


César Vallejo, um dos mais importantes poetas hispano-americanos do século XX, nasceu em Santiago de Chuco, Perú, em 1892 e moreu em Paris, 1938. Em 1918 publicou seu primeiro livro de poemas, Os arautos negros. Deste volume, de marcada influência modernista — sobretudo de Rubem Dario e Herrera y Reissig — e do simbolismo francês, selecionamos três poemas, “Os arautos negros”, “As pedras” e “Espergênese”, que consideramos representativos no sentido de incorporação destas influências, adicionadas de um novo elemento, que já podemos aí entrever, que é a busca de sua própria expressão, singular, num movimento para fora e adiante dos modelos de escrita anteriores, mas que, tampouco, pretende substituí-los por um novo modelo de formação exterior, mas, intuitivamente, por uma linguagem que nasça de sua própria dicção. Esta luta e esta busca por libertar-se das amarras de modelos literários pré-estabelecidos prosseguirá e se aprofundará ao longo de toda a sua obra, transformando-se em uma voz de tom inconfundível. Esta profunda transformação já podemos testemunhá-la em Trilce, seu segundo livro de poemas, publicado em 1922.


Deste livro estranho, heterogêneo, de título enigmático e poemas sem título, numerados, optamos por colocar dez poemas, os de números XIII, XVIII, XXIII, XXIV, XXVIII, XXXIV, XLIV, XLV XLVI, LXI, que consideramos convergirem para certas obsessões nucleares do autor como a infância, a mãe, o lar desaparecido, a mulher, o sexo e a morte, que, de certa forma dão à fragmentação do livro uma espécie de unidade vertebral, que, não por acaso, verificam-se presentes desde o livro anterior e mantém-se durante todo percurso de sua obra posterior. Nascidos, segundo seus biógrafos, de uma gama de duras experiências, entre as quais podemos enumerar a morte da mãe, um caso de amor tumultuado e fracassado, além de uma amarga passagem de quatro meses na prisão, acusado injustamente de pilhagem e incêndio durante uma rebelião, os poemas de Trilce aparecem mergulhados numa atmosfera de vazio, obscuridade, encarceramento e desejo de romper os limites de uma existência condicionada às eventualidades temporais e em dilacerante conflito com o impulso em direção ao transcendente, o eterno, o absoluto.


Toda esta ambientação espiritual, por assim dizer, encontra ressonância em uma linguagem entre o dizer e querer dizer o impossível de ser dito. Um dos limites, é a própria linguagem, uma sintaxe e um vocabulário usual que tornam-se insuficientes para expressar determinados estágios e que, por isso mesmo, precisa ser escavada e distorcida em sua sintaxe e em seu vocabulário, provocando uma espécie de rugido, ruído interior, na tentativa frustrante e angustiante de chegar o mais próximo possível daquilo que quer ser expresso e que, por vezes, por força de se fazer ao máximo visível, audível e compreensível, desemboca no escuro, no silêncio e — para o senso comum — no ininteligível.


Em Trilce, aquilo que é verdadeiramente obscuro e incompreensível na existência, presentifica-se como obscuro e incompreensível na própria linguagem: odumodneurtse.


Quase toda sua obra poética depois de Trilce é póstuma. Desta parte constam aqui nesta edição alguns exemplos de Poemas em prosa (1923/24-1929 e Poemas Humanos (1931-1937), títulos sob os quais aparecem em edição de 1939, organizada por Georgette Vallejo e Raul Porras. Destes respectivos títulos constam, cinco do primeiro e trinta do segundo.

No caso dos poemas em prosa, vamos encontrar um Vallejo que, de certa forma e ambiguamente, prolonga e causa uma ruptura em relação a escrita de Trilce e está dá-se por um tom mais sóbrio, menos tumultuado, menos desconjuntado de sua escrita. Aí encontramos um gosto maior pela simplicidade e pela economia, com um acento que valoriza a expressão direta da emoção.


O tom de Poemas Humanos se faz mais homogêneo. E a amplitude e o ímpeto, amiúde, de forma jorrante, que a nova linguagem de Vallejo conquista em suas últimas etapas, alcança por vezes o tom elevado ao modo de hino, raro no autor, mas que corresponde, seguramente, a uma nova esperança no homem, esperança de destruir a carga de mal existente, esperança esta que cresce no espírito atormentado do poeta desde os anos trinta. Estes poemas da última etapa aprofundam quase que um único tema que é o do ser humano. Já não se fala aqui de forma abstrata de elementos que compõem a trajetória do homem, da morte, da dor, do tempo, etc., mas sim dos homens de carne e osso, com sua dor, com seu tempo, com sua morte.


Em relação ao primeiro livro, é grande então a distância percorrida e se pode observar, em particular, que acabam por desaparecer totalmente certos processos expressivos em Trilce, como os espaços em branco, as onomatopéias, as letras invertidas, as maiúsculas que sublinham o alcance dramático e emocional de um vocábulo.


A emoção emana expontânea, seguindo os meandros de uma língua que busca adaptar-se estreitamente à intuição, língua às vezes límpida, porém, com freqüência, também desesperadamente obscura. E se a linguagem destes poemas é tão freqüentemente obscura, é porque tenta e tensiona-se num perpétuo esforço por expressar níveis da realidade nos quais nada é claro. Toda vida de Vallejo é um esforço por conquistar a escritura mesma de cada poema, o que ele mesmo designou de “alfabeto competente” ou linguagem adequada: uma linguagem adequada à obscuridade da intuição. Nesta obra de maturidade, podemos observar que intensifica-se o conflito entre a necessidade de dizer e a insuficiência de dizer. E se nela encontramos, por um lado, o desconsolo, a agonia, o luto e a desolação, o espírito humano agonizando entre os limites, por outro lado, vemos apontada, sob o signo da esperança e sua fundamentação, a representação da unidade, objeto transcendente de toda a obra de Vallejo, indissoluvelmente ligado à exigência de felicidade eterna e abolição do mal.


Por isso tomamos o prazeroso encargo de fazer vir à luz, através de uma amostragem desta obra, não apenas uma linguagem poética — o que por si só, neste caso, já valeria a pena, por sua intensidade e imensa capacidade de transfiguração e invenção verbal. Invenção esta que não se dá no nível mais superficial de mera fabricação de um artefato cultural, mas num degrau, ao mesmo tempo e antipodamente, mais subterrâneo e mais elevado da condição humana — mas também a força pulsante de uma utopia, em direção ao coletivo, mas que só pode ter seu começo e sua possibilidade de realização na autoinvestigação e reelaboração contínua de cada indivíduo.


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