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Anseios e ensaios crípticos de Paulo Leminski

Por Sandra Novaes


Os Anseios crípticos de Paulo Leminski são, na verdade, o conjunto de três livros, sendo dois póstumos. Esse conjunto de 69 textos foram selecionados por Leminski para publicação em dois momentos: o primeiro em 1986 são os que ele denominou Anseios crípticos (anseios teóricos). Fazem parte desse volume 36 textos. Os outros 33 que faziam parte da segunda pasta perderam-se no tempo e só foram reencontrados 11 anos depois. Daí a publicação do segundo livro Anseios e ensaios crípticos, publicados em 1997. Nesse volume são 22 textos, 12 dos quais estavam no primeiro volume. Os outros dez eram inéditos. Os demais foram incluídos no terceiro volume dos Anseios crípticos e publicados em 2001, póstumo. Dessa forma, considera-se que esse espaço de tempo de publicações ocorrido entre os anos de 1976 e 1986 constituem dez anos de produção ininterrupta do poeta. Esses textos foram organizados pelo próprio Leminski. Foram textos publicados em jornais, revistas literárias, prefácios, posfácios. Esse tempo dos Anseios coincide com o trabalho tradutório de autores como John Fante, Lawrence Ferlinghetti, John Lennon, Yukio Mishima, James Joyce, Petrônio e Samuel Beckett, todos publicados pela Editora Brasiliense, na época a editora que mais publicou Leminski. Outros textos que convivem com essa prosa e essas traduções são as quatro biografias escritas pelo poeta: Cruz e Souza e Bashô (1983), Jesus (1984) e Trótski (1986), a princípio individualmente nos mesmos dez anos.

 

Após a publicação do Catatau, em 1975, e depois de anos de produção de poemas esses textos dos Anseios crípticos surpreenderam seus leitores. Neles Leminski se permite teorizar e refletir sobre os sentidos do mundo.

 

No primeiro livro dos Anseios crípticos, ele diz:

 

Buscando o sentido

O sentido, acho, é a entidade mais misteriosa do universo.

Relação, não coisa, entre a consciência, a vivência e as coisas e os eventos.

O sentido dos gestos. O sentido dos produtos. O sentido do ato de existir.

Me recuso a viver num mundo sem sentido.

Estes anseios/ensaios são incursões conceptuais em busca do sentido.

Pois isso é próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas, tem que ser buscado, numa busca que é sua própria fundação.

Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.

Tirando isso, não tem sentido.

 

p. leminski

Curitiba, agosto de 1986 (1986, p. 9).

 

Impressiona nesses textos as escolhas-temas dos assuntos tratados e da clareza do pensamento do poeta. Na época dos primeiros Anseios crípticos, ele tinha 42 anos e demostrava já um conhecimento e um fundamento de tudo o que discutiu, como, por exemplo, arte, literatura, poesia, tradução, questões do mercado da arte, o autor, o receptor, a ortografia, a cidade de Curitiba, a questão do imigrante e assim por diante. Textos esses sempre críticos, bem-humorados e perspicazes. Alguns exemplos para o leitor se inteirar desses conteúdos:

 

Em “Sem sexo, neca de criação” (1986, p. 77-81) ele comenta o provincianismo da cidade de Curitiba, assunto que esteve sempre em pauta no seu trabalho.

 

Cidade classe média típica, a mais típica cidade classe média do Brasil, tão típica que é cobaia de todas as campanhas publicitárias do eixo Rio-São Paulo (p. 77).

 

Como Curitiba, desde sempre, tem a fama de ser a cidade reclusa em si mesma, cuja população é mais reclusa ainda, Leminski justifica esse temperamento curitibano filosofando sobre “a mística do imigrante”:

 

Quem dá o tom a Curitiba é o imigrante. [...] E o imigrante, entre outras coisas, desenvolveu a mística do trabalho. E a mística do trabalho está intimamente ligada à repressividade sexual. [...] A mística imigrante do trabalho é uma mística contra o prazer, contra o corpo, uma mística de tipo puritano...

Curitiba guarda-se. Guarda a sensualidade, a sexualidade, o lúdico, só os gastando com parcimônia, moderação, cálculo (p. 77-78)

 

Pensando na sisudez do curitibano, ele faz uma descrição de si mostrando como era diferente: “Fui dos primeiros em Curitiba a usar blusão vermelho e deixar o cabelo crescer. Em verdade vos digo, o ideal do curitibano é ser invisível...” (1986, p. 79). E assim por diante.

 

Em “O boom da poesia fácil” (1986, p. 41-45), comenta:

 

Nos anos 70, esteve muito em voga um certo tipo de prática poética, poemas curtos, ‘flashes’ instantâneos, registros-relâmpago de mini-experiências, estalos líricos, de breve duração e efeito imediato. Boa parte da assim chamada poesia ‘marginal’ ou ‘alternativa’, característica daquela década, foi assim. [...] O alternativo poetar dos anos 70 não queria nada. Só queria ser. [...] A poesia dos anos 70, assim, resgatou a imagem do poeta como bardo [...] nunca se viu tanta gente poetando. Ou nunca se viu tanta gente mostrando, já que fazer poemas é vício secreto próprio da adolescência, nas classes alfabetizadas (p. 41, 42, 43).

 

Em “Punk, dark, minimal, o homem de Chernobyl ‘Too much information driving me insane...’ (Sting, The Police)” (1986, p. 61-65):

 

Ninguém pode prever o novo homem que está nascendo.

Mas alguns sintomas já começam a se tornar visíveis.

O mundo ‘pós-moderno’ é um mundo atomizado, onde as pessoas (e a Pessoa) se tornam mônadas isoladas entre os milhões que habitam a grande Cidade, em que este planeta está se transformando.

[...]

O acaso numérico (ou não?) da proximidade de um novo milênio daqui há 24 anos mexe com o inconsciente coletivo das pessoas. Datas significam pouco na realidade das coisas. Mas pesam muito no imaginário da gente.

[...]

O homem está vivendo num mundo totalmente humano. Quando precisa de alguma coisa nova, saqueia o passado.

[...]

Daí, a nipomania que toma conta do Ocidente ‘pós-moderno’: culinária, ‘hai-kai’, Kurosawa, Mishima, Kabuki, artes marciais, ‘sashimi’ e ‘ikebana’.

O projeto ‘pós-moderno’ é transformar a vida em arte, coisa em que os japoneses sempre foram mestres (1986, p. 61-64).

 

Em “Beckett, o apocalipse e depois” (1986, p. 133-139) pensando na tarefa da tradução, Leminski coloca:

 

Escrita, originalmente, em francês, pelo irlandês Samuel Beckett, esta desesperada novela-monólogo foi, a seguir, traduzida para o inglês pelo próprio autor. [...]

Temos, do mesmo punho, dois textos, e não um só, da mesma obra.

Malone Meurt e Malone Dies são duas obras? Ou uma só? Afinal, Malone morre na literatura francesa ou inglesa?

Esta tradução para o português é uma tentativa de resolver na prática essa questão bizantina. Foi feita, simultaneamente, do inglês e do francês.

Enquanto traduzia, eu tinha, à minha esquerda, o texto francês, à direita, o texto em inglês, primeiro caso de uma bitradução simultânea.

[...]

Irlandês, inglês, francês, Beckett é um escritor de diferenças (p. 134).

 

Idiomaticamente, seu caso lembra o de Conrad, o polaco Korzeniowski transformado em grande escritor da literatura inglesa. O caso de Ionesco e Tristan Tzara, romenos que escreveram em francês [...]

Ou o de Kafka, judeu tcheco, que escreveu no mais lídimo alemão. São almas exiladas. Não há exílio que se compare ao exílio do idioma natal.

Sob o ponto de vista cultural, mudar de língua deve ser a dor máxima (p. 133-134).

 

Em “3 línguas” (1986, p. 109-112) ele constata:

 

A última flor do Lácio é um desastre.

Embora sejamos 140 milhões a fala-la [...] o idioma de Camões continua sendo o túmulo do pensamento.

Em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa [...]

A língua portuguesa é um desterro, um exílio, um confinamento” (p. 112).

 

Ainda nesses primeiros Anseios, há um conjunto de textos que ilustra o pensamento e o conhecimento, um momento de muita beleza. “Variações para silêncio e iluminação” (1986, p. 15-19) são nove poemas com os seguintes títulos: o silêncio de buda, o silêncio de pitágoras, o silêncio de pascal, o silêncio de hermes, o silêncio de Hitler, o silêncio de Graciliano, o silêncio de webern, o silêncio de spengler, o silêncio da maioria. Uma epígrafe abre esses dez poemas: “muitos são os silêncios, poucos serão ouvidos” (1986, p. 15).

 

Um exemplo:

 

o silêncio de graciliano

o silêncio de graciliano ramos

é o silencio das memórias do cárcere

o silêncio sibéria

o silêncio gulag

o alto silêncio das consciências incômodas

o silencio que mussolini deu a gramsci

o silêncio cercado de grades

o grito amordaçado

dos que tiram o sono dos tiranos (p. 18).

 

Imperdíveis os outros nove “silêncios”.

 

Os textos de Ensaios e anseios crípticos foi organizado por Alice Ruiz e Áurea Leminski. Dos 22 textos desse livro, 11 já tinham sido publicados no primeiro Anseios crípticos. Os outros 11 são inéditos. Dos textos inéditos seguem algumas ideias.

 

Em “Central elétrica: projeto para texto em progresso” (p. 19-23) ele polemiza:

 

1.

Restrita a tênues faixas da elite urbana a nível universitário, a literatura, para um povo como o brasileiro, que ainda não resolveu seus problemas mais elementares, é um luxo. Seriam um lixo?

 

2.

Em comparação com o grosso da população brasileira, analfabeta, subalfabetizada ou sem hábitos de consumo de textos, é ínfimo o número de produtores e consumidores da cultura letrada, a cultura que tem o texto como centro e o livro como suporte e veículo. Livro, esse dispendioso investimento sem retorno palpável. (p. 19)

 

19.

Num país como o nosso, é necessária uma Itaipu poética. Uma vanguarda/central elétrica que produza matrizes novos. Protótipos, e não apenas (mais) tipos. Os processos normais da vida das mensagens (divulgação, diluição, imitação, influência, explicação, etc.) levarão a números maiores a alta tensão dos produtos inovadores (p. 23)

 

Nos Anseios crípticos 2, o leitor vai se deparar com o ineditismo do poeta. São 23 textos sobre obras e autores, todos fazendo parte do grande elenco dos autores preferidos de Leminski, formando o que Borges chamou de “biblioteca de preferências, uma reunião de afinidades se quisermos, interminável” (NOVAES, 2024, p. 128), dentre eles, muitos dos quais ele traduziu. Nessa diversidade dos autores e temas, encontra-se a diversidade do pensamento leminskiano, a profundidade e ao mesmo tempo a leveza com que discute as suas ideias. À parte isso, o humor tão típico de muito dos seus textos. Vale conferir alguns desses momentos.

 

Em “poeta roqueiro” (2001, p. 99-100):

 

Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimmy Hendrix, bissexual como Mick Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária – obras-primas entre os 15 e 18 anos (p. 99).

 

Em “lennon rindo” (2001, p. 37-52), Lennon, um dos autores traduzidos por Leminski mereceu um ensaio de 15 páginas.

 

Sua fonte maior de influência era o Lewis Carroll, da Alice no País da Maravilhas e Através do Espelho, influência fundamental sobre Joyce”. [...] Lennon foi figura de proa numa geração que produziu, entre os músicos populares, algumas de suas melhores cabeças (Dylan, Zappa, Jim Morrison, Bob Marley; no Brasil, Caetano Veloso, Gilberto Gil; e no mundo?), músicos e ao mesmo tempo, pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores culturais, bons de som, de poesia, de conceito (p. 38).

 

...Neste século, Joyce viria a empregar a invenção de Carroll como o principal recurso de linguagem do Finnegans Wake, a Work in Progress, sua monsterpiece [...] John Lennon trouxe o portmanteau [de Lewis Carroll e Joyce] das culminâncias máximas de alta literatura rara para as planícies da cultura pop. Um portmanteau beat. Ou beatle. [...] Não tenho notícia de antecedentes para isso em qualquer literatura. Como recurso, a palavra-montagem parece ser uma invenção de Lewis Carroll (p. 44 e 47-48).

 

Em 1975, publiquei o ‘Catatau’, monólogo cartesiano, que me tomou 8 anos, onde o portmanteau desempenha o papel principal. [...] Nem é preciso ser profeta para sentir que a ‘palavra-porta-palavra’ veio para ficar... (p. 48).

 

Em “taiyo to tetsu. entre o gesto e o texto” (2001, p. 25-36), Mishima mereceu 12 páginas:

 

Certo dia de novembro de 1970, os jornais da capital do Japão estamparam em suas colunas policiais uma notícia, no mínimo, inquietante.

No dia anterior, um pequeno grupo de praticantes de artes marciais tinha invadido, com violência, as dependências do quartel das forças armadas de Tóquio. O líder do grupo, um homem, forte, aparentando uns 40 anos, acompanhado de um jovem, chegou até o gabinete do comandante da praça, diante do qual os dois cometeram haraquiri, o suicídio ritual da classe samurai. [...] Mais que fazer apenas obras de arte, Mishima quis se fazer todo, corpo, história e vida, uma obra de arte, entidade além e acima da mudança, da corrupção e da perda de sentido, condição natural de todos os seres desse mundo sub-lunar. [...] Para a morte, Mishima se preparou, treinando halteres, desenvolvendo os músculos, treinando artes marciais, desenvolvendo ao máximo as suas potencialidades, enquanto matéria.

Quando a lâmina, fazendo um L, entrou em sua barriga, naquela tarde de 1970, no quartel general de Tóquio, a morte, longamente namorada, recebia um presente régio: um corpo atleticamente perfeito, pleno, no auge de sua forma e de sua força, como ele queria. E uma mente lúcida, cultivada, perfeitamente sabedora do que fazia (p. 25, 27, 29 e 30).

 

Em “folhas da relva forever (a revelação permanente)” (2001, p. 63-67):

 

Toda revolução digna deste nome produz seu grande poeta. ‘Antena da raça’, o poeta capta, nos tempos de comoção social, a tremenda energia vital liberada pelas grandes transformações coletivas [...] Assim, se Maikóvski é o poeta da Revolução Russa, não é exagero dizer que Walt Whitman (1819-1892) é o poeta da Revolução Americana, ocorrida uma geração (1776) antes do seu nascimento. [...] A poesia de Whitman herdou todos os traços fundamentais: o libertarismo individualista, o igualitarismo antifeudal, a vitalidade inaugural do capitalismo na América [...] e também emocionais, existenciais e pessoais. ‘This is a big country’. ‘This is a free country’. Nessas frases, que decoramos em filmes de faroeste, condena-se o essencial da ideologia que informa os versos do pai do verso livre, o pai do verso louco, o pai do verso novo. [...] Whitman, o primeiro ‘beatnik’, vive da longa vida que só uma grande poesia (ou uma grande revolução) irradia (p. 63-67).

 

Lançados estão os fragmentos que acredito servirão de iscas para a leitura desses textos tão contemporâneos escritos por Leminski. Os Anseios e os Ensaios crípticos constituem uma boa parte da prosa leminskiana merecedora de leitura tanto quanto os infindáveis poemas que escreveu.

 

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* Sandra Novaes tem graduação em Letras Português-Francês, Línguas e Literaturas, mestrado em Linguística Teórica na UFSC e doutorado em História na UFPR. É autora de Paulo Leminski: uma biografia da obra (Curitiba: Kotter Editorial, 2024).


Referências

 

LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos. Curitiba: Criar Edições Ltda., 1986. 143 p.

 

LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997. 97 p.

 

LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos 2. Curitiba: Criar Edições Ltda., 2001. 117 p.

 

NOVAES, Sandra. Paulo Leminski: uma biografia da obra. 1. ed. Curitiba: Kotter editorial, 2024. 272 p.

 


 

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