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Cartografia poética e o grito em “Textos Urbanos”, de Toni Vargas

Por Marli Fróes


Ao abrir as páginas do livro “Textos urbanos” já se depara com o anúncio do papel do sujeito escriba: “No fundo eu morro de medo, no fundo eu levanto cedo para tomar conta da vida”. E o poeta Toni Vargas, faz isso: poeticamente toma conta da vida, por meio do seu olhar e percepção refinados. Impelido por uma força urgente na fala. A voz e a escrita são graves e ululantes, entram-nos pelos poros. A musicalidade vem se constituindo nos versos; os poemas conclamam, pedem, de fato, um ouvido atento, por a parte do leitor: “pro meu poema ter a força das enchentes /(...)/Precisa do seu ouvido/(...) Quer pular cerca ganhar mundo, varar chão”. “Textos urbanos” é uma cartografia poética porque revela o delicado e o grave da cidade.


Copacabana, o cenário carioca, os elementos culturais brasileiros, como o samba, a capoeira, por exemplo, comparecem indicando-nos uma cartografia urbana e cultural variada: Dom Quixote de Cervantes (na literatura universal), Gonzaga, Belchior, Geraldinho, Elomar, Mestre Vital (na música); samba, funk, rap (nos ritmos da periferia), Mestre Pastinha, Zumbi, Manduca, Mestre Bimba, Besouro (capoeira, cultura afro), os elementos da religiosidade de matriz afro (pombagira, o axé, ilê, Alaroiê Exu). Citemos, por exemplo, o “Ninguém dá o que não tem”, cujos elementos biográficos do autor funcionam para demarcar a sua filiação e indicar que a arte é a sua resistência: “Não tenho medo da sorte/Pois nenhum feitor me mata /Minha arte me resgata/Resistência, picardia”.


Em “Textos Urbanos” podemos conceber, ainda, uma cartografia urbana, quando a cidade, os elementos que a compõem são revelados pela poesia. Citemos por exemplo, o poema “Mea culpa” em que o poeta lança o seu olhar para a cidade e denuncia-lhe a opressão. Ao mesmo tempo em que a cidade inspira a poesia, também a mata. A “urbes” é o símbolo do modelo social capitalista porque cobra “metas”, “come os sonhos” e sedia a hipocrisia. O poeta observa a cidade tal qual um flâneur, tomando aqui, o termo emprestado de Walter Benjamin e Charles Baudelaire, para os quais o flâneur é a figura que vagueia tranquilamente pela cidade, com o propósito de experimentá-la, observá-la. Este termo nasce na modernidade, quando a cidade sofre transformações com a Revolução Industrial. E essas transformações incomodaram, provocando em alguns, contra-identificação ao novo estilo de vida. Walter Benjamin defendeu que, no final século XIX e início do século XX, a figura do flâneur já não seria possível, pelo ritmo frenético da vida. Imaginem pensar essa figura no século XXI.


Todavia o poeta Toni Vargas ousa-se andarilho, ora se posiciona à janela, ou estando à rua; oferece ao leitor uma fresta, pela via da palavra. No poema “Faz frio”, por exemplo, temos a indicação de que o poeta dedicou-se um tempo a observar o espaço urbano, as pessoas, inclusive aquelas intrusas: “O que o americano quer /É todo mundo aos seus pés/E ele ocupando o pódio 1º,2º,3º/Eu quero é cagar andando prá tanta conquista alheia”.


De modo geral, a poética, ora evoca o riso do leitor (porque há humor em alguns poemas), ora a adesão, ora a solidariedade, ora o aperto na garganta; diversas sensações, de modo a despertar o que há de mais humano em nós. Citemos, por exemplo, o humor grave e, ao mesmo tempo, delicado e risível no “A morte é supérflua”. O tema é denso porque trata do suicídio, mas ganha uma leveza nos versos do poeta. Enfim o que mais de humano que já li, foi nos “Textos Urbanos”, cite-se como exemplo: “É preciso ir além das suas cercas, sentir também as dores que não são diretamente suas, mas que também te pertencem.”. Esse trecho, além de sinalizar para a solidariedade entre os viventes, revela ainda que o poeta tem consciência do seu fazer poético e sabe o que é a sua poesia porque acrescenta: “Tem forma de algodão doce/Por dentro é vidro moído”.


Essas duas metáforas, em contrapelo: “algodão doce” e “vidro moído” são as imagens mais apropriadas para se pensar a poética de Vargas: tem a leveza e a doçura do algodão doce, mas, no nascedouro da poesia, o sujeito escritor - sendo um “mastigador de vidros”- gesta por dentro, nas entranhas, rasgando as vísceras. As palavras-canções mostram o que há de bonito e o que há de grotesco na vida, na urbes. No poema “Vidro moído” tem-se mais uma vez a utilização dessa metáfora, ligada a tudo que está interiorizado e provocando dor; por isso mesmo, precisa ser externado e eternizado. E nesse lugar de dor é que a arte deve se manifestar. Assim o leitor tem um mapa poético, duro e belo; (des)vela-dor, visto que comparecem os seres e os espaços urbanos esquecidos, negligenciados e ou oprimidos: o garoto da rua, o moleque que vira folclore em Copacabana, a prostituta, os loucos, os cortiços, as palafitas, as favelas, prostíbulos, prisões, hospícios, o mangue, o povo e sua fome, as crianças, os nordestinos (cite-se o Zé da Silva), enfim os párias da sociedade, os oprimidos, os que sofrem preconceitos. A voz poética se alia aos loucos, aos seres desviantes e tortos.


O olhar atento do poeta revela a sua inquietação e comprometimentos humanitários. Os versos são de alguém que sabe que seu grito, sua arte tem uma função estética, mas também tem a sua função social. No poema “grito”, por exemplo, pode se ler: “Mas como eu, existem outros adeptos do grito”. E esse grito deve alcançar as ruas, passeatas, os palácios, os palanques, enfim reascender outros sujeitos gritantes. Mais adiante, no poema “Fluir”, Toni Vargas arremata: “É duro ter que calar a qualquer custo o grito/E engolir o susto todo/Ter que inventar silêncios tristes”. O poeta traz uma importante reflexão para se pensar que os versos, a poesia compõem esse grito necessário, a romper a “hipnose coletiva”, a romper com imposição do silêncio, de modo a acordar as pessoas em diferentes espaços. E, mesmo que esse grito seja gestado fraco; deve tomar corpo, tais quais os gritos nos quilombos. “Calar a sua fala/Falar a fala do outro/Hospedeiro de outra voz/Melhor seria gozar de um silêncio verdadeiro/Que falar a fala do algoz.”.


É impossível também não perceber os gestos escriturais biográficos nos poemas. O lugar social do menino (de outrora) e do homem (poeta, adulto), ou poderíamos dizer, que os traços biográficos do menino no homem tracejam-se, desde sempre, quando o poeta menino deseja escrever e empunha a caneta, para romper com a invisibilidade de menino pobre. Sua arte, sua verve, sua poesia, sua escrita são a sua maior transgressão, a driblar a voz que diz “mãos na cabeça, não se meta e entrega essa caneta”.


Essa reflexão é reiterada poeticamente em “Pai eu quero ser artista”, cujos versos têm toda uma filiação no cordel, nas suas rimas e musicalidades compromissadas com o que há de biográfico do sujeito escritor, na sua trajetória de envolvimento com a arte da capoeira. Outro poema digno de nota é o poema intitulado “Poeta” também demarca que o poeta é o ser da transgressão, por isso revolucionário e insistentemente poeta. Assim, a poética de Toni Vargas faz nos crer que onde o coração e a sensatez da governança do poder não alcançam, é nesse lugar que a língua, a verve poética a tessitura da palavra se constituem como revolução.


Não raro, o poeta debruça-se sobre a sua própria escrita, por meio dos recursos metaliguísticos que provocam, invocam, convocam o leitor, dando-lhes chaves de leituras e ou explicações sobre a poética que se constrói. A esse propósito, vale antecipar o seguinte texto, em que o poeta esclarece: “É assim, pelo menos para mim, esses textos são como bálsamos para as tantas feridas que a alma vai colecionando vida afora. Às vezes o texto “vem” e eu penso: logo agora, mas não tenho escolha, e não importa se o texto é bom, se vão gostar, é simplesmente uma forma de parar de sangrar, de estancar a dor, são versos analgésicos, dipirônicos, são gritos desesperados de alguém que vive em carne viva.”.


No poema “vergonha”, igualmente, há um jogo de negociação de protocolo de leitura com o possível leitor, uma vez que o poeta, ao declarar a sua vergonha de fazer versos e temer não saber fazê-lo, demonstra a sua urgência para trazê-los: “já nascem espertos”, “um moleque danado”, que “pula o muro” e “não tem medo de escuro”. Se o sujeito escritor declara a vergonha, também, afirma a coragem porque sabe que a sua poesia “dá rasteira na razão/E foge na contramão”. E é nesse espaço da contramão que ele fisga o leitor. A poesia está na contramão porque depois de escrita não está no comando do seu autor. Do mesmo modo, podemos pensar na função produtiva e desviante da arte: ela propõe outra via, ou seja, aquela onde a solidariedade entre os viventes e o amor sejam possíveis. Seria uma espécie de “terceira margem”, evocando aqui essa imagem do grande prosador mineiro Guimarães Rosa; ou, conforme nos elucida o próprio poeta, sua poesia faz surgir crianças e cair lideranças.


Ao se trazer essa cartografia urbana, nota-se um sintoma bem próprio da maioria dos poetas e que está registrado na poética de Toni Vargas: “Sou um ser urbano, vítima da loucura dessa cidade linda e perigosa, às vezes não sei o que é pior, a dor ou a impotência social.” Ou ainda: “Fui eu que fiquei vazio/Dos sonhos que outrora tinha/Quando a cidade era minha/Nua, linda e delicada”. O sentimento de inadaptação à essa cartografia urbana (“Essa cidade e o seu canto em falsete/Soa mal, apunhala-me os ouvidos.”), o sentimento de que o sujeito que percebe, escreve e faz arte, não se adapta a esse mundo, a essa ordem, ou antes, a essa desordem que se apresenta. O que nos impõe uma indagação: Em que “lugar” o poeta estaria? Onde o poeta habita?


O poeta se situa no lado torto, esquerdo, diferente, ou seja, o poeta é um “gauche”. Termo que, aliás, compareceu nos versos do grande poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade: “Quando nasci, um anjo torto /desses que vivem na sombra /disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” (poema Sete faces). Esse é o lado torto, ou seja, gauche do poeta Toni Vargas, conforme podemos ler no poema “Torto”. E ser torto é não caber nessa relação desamorosa de poder e organização social. Ser “torto” é também ser revolucionário, ser adepto ao grito. Então o lugar do poeta é na linguagem, nas palavras. Lá, ele habita.


Reconhecendo-se nesse lugar desviante, o poeta conduz o leitor para essa cartografia poético-urbana, sensibilizando-o com versos que revelam aguda consciência crítica, cite-se como exemplo o poema “Miséria Urbana”, onde se pode ler: “Caralho, tropecei na miséria urbana em Copacabana”. E mais adiante, as indagações do poeta “Onde dormem os filhos das mães sem resposta”. E ainda no poema “Gueto” “O Brasil é um grande gueto/o Brasil é um gueto CONTINENTAL”.


A poética de Toni Vargas, ao atentar-se para as cartografias contemporâneas, também revisita o passado histórico, a ancestralidade (os quilombos, as senzalas, a tribo indígena). O poema “Caos”, por exemplo, evoca a ancestralidade e atualidade indígenas, numa agudeza de reflexão crítico-social, revelando-nos que estamos diante de um grande poeta-antropólogo-socialista: “O mundo todo é pus, caos e ruína”.


Desse modo, a escrita é o instrumento que propicia a descoberta, dito de outro modo, o poeta escreve para descobrir: “Caneta desesperada querendo achar um caminho”. O poeta descobre que o mundo é marcado pelas verdades relativas, pelas felicidades cada vez mais raras, em que a vida se torna cada vez mais cara; predominando os abandonos, os desamores, as cruéis relações de poder, assim o poeta conclui: resta agarrar insistentemente “na crina do sonho”. A descoberta é dolorosa, por isso é preciso fazer emergir o grito: “E em meio a tanto anúncio de pasta de dente/Gostaria de perguntar: ô minha gente,/Cadê a porra do amor?


O amor é um dos temas que também ganham destaque nos “Textos Urbanos. O poeta se compromete com essa força universal unificadora: “Se for por amor atravessarei mares, subirei montanhas, descerei às profundezas mais abissais, se for por amor, mando parar o tempo, reinvento o espaço, anulo distâncias.” O amor também é um sacrifício, no sentido de sagrado ofício, é imperante, necessário, mas é também sofrido: “Você me deu teu sexo/E eu fiquei perplexo, sem ação/Amar uma luz, amar uma estrela/É se imolar à paixão”. Ligada à questão do amor, a mulher comparece como um tema privilegiado, afigurado pelos nomes “Rosas, Cristinas, Dolores, Clara, Mônica, Inez, Consuelo, Laura, Dora, Marta, Débora, Carla, Neuza, Aparecida, Iara, Neide, Maria, Iracemas, Bete, Carina...”. Podemos ainda apreciar a supremacia poética em “Elementos”, uma vez que a mulher é pensada, sentida, homenageada através de uma concepção em que se comungam todos os elementos; água, fogo, terra, ar. A mulher contém e está contida nesses elementos, segundo visão do poeta.


Ainda ligada à imagem do feminino; a sedução também é outro tema recorrente na poética de Toni Vargas, afigurada na loucura, que pode ser a representação do feminino, que seduz, “mordisca a glande”, fazendo com que o “ele” e o “ela” amem-se “atipicamente fora do tempo e do espaço”. Entrevê toda uma carga de sensualidade nos poemas “Sedução”; e essa sensualidade se encaminha para o erótico no poema “O Bar”: Será que ainda gozas gritando e arranhando?/( ...) Eras sublime...eu suplicava insano o teu orgasmo/E te esvaias abundantemente no meu sexo”. A esse propósito, “Bordel” é um dos poemas mais brilhantes que já li. A sensualidade derramada em palavras e imagens invade a pele do leitor, de maneira visceral: “Bordel, caco de céu no vão da telha/ A luz vermelha e o teu vestido furta-cor/(...) A minha dor e a tua dor miando no telhado”.


Essa sedução também é o que precede a poesia, os textos vêm buliçosos, enlaçando amorosamente o poeta. Os “textos aleatórios” são grande exemplo disso. Eles surgem como uma imposição, cite-se, por exemplo, o texto 1, em que a imagem da rua vazia, do ser vazio, na percepção do poeta, não sinalizada para o nada, nem para a ausência; uma que vez que o poeta - além de enxergar a possibilidade da touca que aquece e as mães que são alento - reconhece que o seu dizer é importante, ser poeta é o seu trabalho e exercício de uma paternidade e maternidade poético-linguageira: “na verdade meu trabalho é esse, sou poeta, e logo meu trabalho é incorporar a dor das ruas vazias para não ficar sem dizer nada, sem pai nem mãe na estrada, sem cachecol nem touca, sem texto, sem poesia”.


A propósito do tema do “vazio” (bastante presente na poética de Toni Vargas) é outro sintoma próprio de quem se envereda pela poesia. E o vazio está ligado ao sentimento gauche, porque é um desdobramento dele: “Estou vazio, sem nada/Só com essa dor afiada”. O vazio contempla ausência e presença simultaneamente, por isso é um sentimento produtivo, revelador, enriquecedor. Citemos por exemplo, o poema “vazio” que trata da relação tempo e envelhecimento: “É duro envelhecer num tempo que corre tanto/Antigamente todo mundo envelhecia aos poucos/O tempo te dava um tempo/Agora não”. Ao tratar do envelhecimento tem-se a concepção da juventude na sua relação com o tempo.


Trata-se de uma poética pensada, madura, atuante, musical, contemporânea que exige sensibilidade inteligente. Não tem como não aderir à essa poética. Do início ao fim predominam a sedução e o desejo de que o livro não acabe nunca; e, ao mesmo tempo, sentimos a dor do “adeus”, especialmente porque o poeta, ao final, diz adeus, através de um movimento metalinguístico, reconhecendo que os textos são como fantasmas a procurá-los na noite. Revela-nos ainda que alguns textos não entram nessa seleção (que pena para nós leitores!). Alguns ficaram adormecidos em seus leitos amarelados, conforme nos diz o poeta. Nem todos filhos se mostram é bem verdade...


Já com minha voz, ouvido e corpo misturados aos filhos que nasceram, convido: venha, caro leitor, cole-se aos textos que aqui se apresentam, aproxime o seu ouvido, leia e escute essas canções-poesias. A voz grave e a musicalidade do poeta Toni Vargas saltam do papel e ganham o nosso corpo. Eu li, corporifiquei, en-cantei e te convido para essa dança.

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*Marli Fróes, é poeta, autora dos livros, Visceral, Carnaverbo, Fendas (no prelo), com participação em várias antologias, participante há três décadas do Psiu poético (maior salão nacional de poesias), é professora, ensaísta

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