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A aventura radical de Paulo Leminski

Por Fabrício Marques*



Pode-se resistir a tudo, até mesmo à tentação de cair em lugares-comuns, quando se busca compreender uma trajetória como a de Paulo Leminski. O primeiro e mais evidente desses clichês é o que aproxima vida e obra do poeta, como se uma fosse intrinsecamente ligada à outra. “Em fulano, vida e obra são inseparáveis”, costuma-se dizer. Ora, em maior ou menor grau, uma parte da vida de todo poeta são os poemas que ele cria, e não há como mensurar, em termos de comparação, o peso que essa produção representa na existência de cada um deles. Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, para citar alguns, atravessaram as décadas escrevendo poemas, extraindo poesia do cotidiano. Como dizer que o funcionário público Drummond dedicou menos de sua vida à poesia (ou vice-versa) do que o diplomata João Cabral? Ou que Augusto de Campos entregou-se mais ou menos às artes e aos engenhos dos versos do que Cruz e Souza?

 

Um outro lugar-comum é, aparentemente, mais difícil de ser evitado. É aquele que confere a Paulo Leminski um lugar no panteão dos artistas de “múltiplas faces”. Como etiquetar um poeta que foi mais do que poeta? Tradutor, compositor, romancista, colunista de jornal, ensaísta. Um artista que gostava de dialogar com tudo e com todos. Um poeta de experiências transdisciplinares, privilegiando um diálogo desierarquizado entre as artes, com um código se contaminando do outro – a poesia não é mais importante que o cinema, e o cinema não é mais importante do que a poesia, por exemplo.

 

De qualquer modo, uma vida assim, urgente e vertiginosa como a de Leminski, não caberia em versinhos. É uma ampla prosa de sopro largo e rebelde a todas as medidas (sim, parafraseio, aqui, o que Leminski escreveu sobre Rimbaud, “poeta roqueiro”).[1]

 

Podemos considerar duas fases distintas em sua trajetória múltipla: uma focada em sua formação e definição de rumos, que vai de 1963 a 1982; e a segunda, muito breve mas muito intensa, que compreende o período de 1983 até sua morte, em 1989.

 

A primeira fase começa com o jovem poeta examinando o terreno: é Leminski tornando-se Leminski, ferozmente. É o tempo no mosteiro de São Bento, do interesse pelas línguas estrangeiras, pela poesia concreta e pela música. Na segunda e última fase, encontramos esse poeta que conjugava os rigores da disciplina com o sinal verde para os excessos. Ou, dizendo de outro modo, se isso fosse possível, um poeta com um pé em Apolo e outro em Dionísio. Nesse momento preciso, o poeta conjuga uma alta produção com uma paixão, às vezes até autopredatória, pela experiência vital, como disse Haroldo de Campos, que o considerava um “poeta que teve sua vida atravessada por uma série de experiências existenciais e geracionais que o levaram inclusive a esse gesto extremo de morrer tão jovem”.[2]

 

A publicação de Caprichos & relaxos, em 1983, pode ser lida como uma prestação de contas do primeiro arco de sua trajetória. A partir daí, sua produção alcança uma espiral ensandecida, em que entrava em cena, com ainda mais vigor, o protagonismo do que ele chamava de “mística imigrante do trabalho”. Uma mística “que começa na exaltação da sublimidade do trabalho e termina na negação e na repressão da vida sensorial, do lúdico, do erótico”.[3] Fica explícita uma herança que carregava de seus antepassados poloneses, a obsessão pelo trabalho. Tudo começa com três livros em 1983 (incluindo Caprichos & relaxos) e mais quatro em 1984. Cinco traduções são lançadas em 1985, o annus mirabilis das recriações de textos em prosa para o português. Em 1986, chegam às livrarias outros três livros com sua grife. Duas novas obras leminskianas surgem em 1987. O ano de 1988, mais modesto, tem apenas uma publicação. No total, são 18 livros em seis anos, entre livros de poesia, biografia, ensaio, romance, infantojuvenil e tradução.

 

Se a produção era ensandecida, o outro tempo paralelo ia cobrando a conta, com o poeta convivendo com um diagnóstico de cirrose hepática. Ainda assim, em seus derradeiros anos de existência, Leminski mantinha sua “alegria anárquica”[4] e agia, pensava e sentia de modo a seguir a receita da cultura oriental, que admirava, feito um samurai carregando duas espadas: “Por trás da intensíssima vida japonesa em todos os planos, paira sempre a perspectiva da morte. Por isso, talvez, os japoneses sejam tão ávidos de todos os prazeres da vida, eróticos, culinários, estéticos, místicos”.[5] 

 

Aproximando a lente ao máximo (la vie en close), esse período também permite ver, como possível consequência desse embate entre a vitalidade do trabalho e o mergulho sem limites em uma espécie de autoextermínio, a escolha consciente, na poesia, dos temas da fé e da dor. A crença na poesia e na paixão da linguagem e a amargura “de ver que viver não tem cura”, como assinala um dos poemas de O ex-estranho. Isso fica visível ao percebermos como esses temas aparecem diversas vezes em seus livros de poesia.

           

No caso da dor, por exemplo, “Luto por mim mesmo” (“Como se doer fosse poesia,/ como se tudo mais fosse prosa”), de La vie en close. A temática dolorosa (e dolorida) convive com aquilo que notou o poeta Sérgio Medeiros, escrevendo sobre o lançamento de Toda poesia, em 2013: Leminski escreve orações, preces, “uma das formas poéticas favoritas do autor”, revelando sua concepção de “êxtase compartilhado por meio de uma linguagem de matiz religioso”[6]. Tudo se passa como se ele encarasse o fazer poético como algo da ordem da epifania, um sacro lavoro.

           

Nessa vertente há também muitos poemas, como, em Distraídos venceremos, “Ais ou menos (oração pela descrença)” (“Senhor, peço poderes sobre o sono, esse sol em que me ponho”).

           

E, ainda, há aqueles momentos em que os dois temas se juntam, num mesmo diapasão, como se lê em “Imprecisa premissa”, do mesmo livro: (“como dói esse silêncio/ (...) Vila de Nossa Senhora, tende piedade de nós”).

           

Os temas da dor e fé permitem atentar para a carga por vezes contraditória, paradoxal, ambivalente de sua obra, traduzida em tentativas de definições do poeta como “bandido que sabe latim”, “paroquiano cósmico”, “hippie erudito”. O que está a promover em seus poemas, deslocando para eles (e neles) referências do pop, do desbunde, da contracultura, do Zen, de canções, de vanguardas, tudo isso, não é uma conciliação de contrários. É, mais propriamente, como se o poema fosse um espaço de atritos e tensões em que essas diferenças, esses contrários coexistem, dialogando entre si: uma interlocução entre o difícil da informação e o fácil da comunicação. Daí a linguagem muitas vezes coloquial, com potencial de às vezes até virar canção, num ambiente em que a poesia é colocada em diálogo horizontal com as demais artes, contaminando-se assim de outras manifestações artísticas – cinema, cartum, música, artes plásticas. Ao mesmo tempo, há um olhar reverente, de coisa sagrada: fé na poesia, sacro lavoro. Nesse sentido, a trajetória poética de Leminski parece constituir uma aventura radical diante da linguagem poética, que coloca esse poeta, para quem viver era a suprema loucura, como um indomesticável investigador sempre em busca do sentido.

 

Naqueles dias derradeiros do poeta se despedindo da vida, um leitor que se encontrasse com ele – como se fosse o narrador de Agora é que são elas dirigindo-se a Propp –, poderia dizer, passando a mão nos ralos cabelos de Leminski: “Adeus, meu velho. Foi uma aventura e tanto”.[7]

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*Trecho adaptado do livro Aço em flor: A poesia de Paulo Leminski (Editora UFMG; Editora da Unicamp, 2024). Os editores do Banquete agradecem ao autor e às editoras.


** Fabrício Marques é poeta e crítico literário.  Publicou, entre outros, A fera incompletude (poesia, 2012), Uma cidade se inventa (reportagem, 2015) e Wander Piroli: uma manada de búfalos dentro do peito (biografia, 2018).

 


NOTAS


[1] LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos 2. Curitiba: Criar, 2001. p. 99.

[2] AGRA, Lúcio. “O poeta do fim do mundo”. O Globo, “Segundo Caderno”, 21.10.1990, p. 4.

[3] Na coluna “Sem sexo, neca de criação”, de Anseios crípticos 2.

[4] MELHADO, Felipe. Apresentação. In: LEMINSKI, Paulo. A hora da lâmina (oito ensaios publicados em 1989 na Folha de Londrina). Londrina: Grafatório, 2017. p. 16.

[5] LEMINSKI, Paulo. “Shinu”. O Estado de S. Paulo, “Caderno 2”, 11.7.1987c, p. 1. 

[6] MEDEIROS, Sérgio. “Um Leminski cheio de graça”. Blog do IMS, 1.4.2013. Disponível em: https://blogdoims.com.br/um-leminski-cheio-de-graca-porsergio-medeiros/. Acesso em: 4.11.2023.

[7] Na resenha “Caleidoscópio de palavras”, de Alcides Villaça sobre o relançamento de Agora é que são elas, em 2012, essa frase também é destacada. (VILLAÇA, Alcides. “Caleidoscópio de palavras”. O Estado de S. Paulo, “Sabático”, 3.3.2012, p. 3.)

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