A educação para a vidalinguagem – Haroldo de Campos
- jornalbanquete
- 24 de ago.
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Por Ademir Demarchi

Quando o livro A educação dos cinco sentidos, de Haroldo de Campos, foi publicado em 1985, vivia-se no país um estado de mobilização militante. Apostava-se na conquista da redemocratização do país após a ditadura militar implantada em 1964, reivindicavam-se eleições diretas, lutava-se contra a censura, havia um desejo entusiasmado de ler e conhecer que movia a juventude.
O livro foi publicado pela Editora Brasiliense, que investia fortemente em edições focadas nesse público e editava muitos livros de poesia; além disso, investia bastante em propaganda dirigida aos leitores como a revista Primeiro Toque, o jornal Leia Livros (criado pelo editor Caio Graco Prado com os jornalistas Cláudio Abramo e Alberto Dines) e até mesmo nas páginas dos livros que publicava.
É o que ocorreu nas três últimas páginas do livro de Haroldo em que, como de hábito, a editora divulgava seu catálogo destacando os livros de poemas publicados conclamando na primeira delas, em caixa alta e no topo da página: “Modernistas de todo o mundo, uni-vos!”. Essa chamada era para divulgar o livro Lasar Segall e o modernismo paulista, de Vera D’Horta Beccari, com comentários de Gilda de Mello e Souza e de Jacob Klintowitz, tendo abaixo o destaque para o livro Cocktails – Poemas, de Luiz Aranha, destacado também por comentários de Ivan Junqueira e de Régis Bonvicino no Jornal do Brasil e na Folha de S.Paulo, respectivamente.
Esse espírito da época buscava uma correspondência acalorada com o espírito de 1922, assim definido por Ivan Junqueira: “A poesia de Aranha expressa como poucas o espírito libertário e turbulento de 22 [...] embora iluminada por um toque pessoalíssimo.” Noutra página, a “manchete” “Paixão e rigor” em letras garrafais se sobrepunha aos destaques para o livro Um copo de cólera, de Raduam Nassar (em que, se dizia: “Guerra entre sexo, confronto entre o corpo e a ideologia, racha entre razão e emoção: Um copo de cólera é tudo isso, mas é sobretudo linguagem.”
A terceira e última página, com o título “Alumbramentos” em destaque levava a uma indagação: “Responda rápido: o que faz de um poema, poesia?” Sem esperar para o leitor pensar, a propaganda continua: “A resposta está em A letra descalça, de Rubens Rodrigues Torres Filho, e no Beijo na boca e outros poemas, de Cacaso”, tendo na sequência a transcrição de dois poemas de cada um com a marca espontaneísta da chamada geração “marginal”, agora sendo incorporada ao “sistema”, como o poema de Rubens: “niilirismo// É fácil confessar: - Claro, te quero./ O sobressalto desse teu sorriso./ Extravagantes luas exorbitam.” E o de Cacaso: “lar doce lar// Minha pátria é minha infância:/ Por isso vivo no exílio.”
O fato é que o livro de Haroldo de Campos apareceu como um total estranho nesse cenário de poesia facilmente comunicativa em que Leminski nadou de braçada, inclusive publicando vários livros com grande sucesso de público, como a poesia reunida Caprichos e relaxos (com apresentação de Haroldo de Campos e comentário de Caetano Veloso), saída na exitosa coleção Cantadas Literárias, ou Distraídos venceremos, outro livro de poemas então se aproveitando do sucesso obtido com o anterior. Com poemas infestados de línguas estrangeiras e referências culturais apenas mencionadas como informação textual do poema, o livro de Haroldo de Campos ia contra esse facilitarismo de rápida identificação com esse público ávido e talvez apenas um único poema o ligasse à estética marginal, ainda que o título já desse um coice de luvas culto remetendo a Adorno e seu livro usado como título do poema, “Minima moralia”, no qual dizia: “já fiz de tudo com as palavras/ agora eu quero fazer nada”. O dolce far niente jocoso de Haroldo sugerindo que o momento, para ele, era de desfrutar com calma e gozo aquele momento presente, em verdade entrega, com seu livro e o conjunto de poemas, um imenso trabalho pela frente, de leitura e tradução, para ser encarado pelos novos leitores desejosos de decifrarem a erudição exposta e sugerida.
Sob outro aspecto, a politização militante de esquerda insinuada pela editora em frases no livro como “Modernistas de todo o mundo, uni-vos!”, “espírito libertário”, “confronto entre corpo e ideologia”, “Minha pátria é minha infância:/ Por isso vivo no exílio.” – remetendo a Karl Marx e Friedrich Engels e o “Manifesto Comunista”, ao premente desejo de liberdade que movia a vida e entrava em conflito com a ideologia e ao recente período da ditadura que impôs o exílio a muitos militantes que então retornavam ao país com a anistia, ávidos para a felicidade de reencontrar todos os sentidos – Fernando Gabeira e sua tanga de crochê simbolizou bem o momento. Tudo isso correspondia já no título escolhido por Haroldo de Campos, inspirado no jovem Marx: “A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história universal até agora” e atribuía à poesia “uma tarefa civilizatória e humanizadora da sensibilidade”, movida pelo espírito de subversão da luta de classes com o apontamento que era seu mote: “da construção do presente através da expropriação (e da reapropriação) crítica da tradição, ironia e sátira, lirismo, anotações de viagem sentimental, e também poemas reflexivos e metalinguísticos. Transluminuras; a vidalinguagem”.
Remetendo a Oswald de Andrade para ironizar os chatoboys, professores sem imaginação poética, assim como a Walter Benjamin e Bertold Brecht para avacalhar os burocratas stalinistas representados pelo crítico Lukács, todos defensores de uma ideia aprisionadora da expressão poética, Haroldo faz em “Ode (explícita) em defesa da poesia no Dia de São Lukács”, um ensaio de citações paradigmáticas do sentido da poesia como um ente lúbrico desviante da norma, logo subversiva ao controle dos apparátchiki.
Não seria exagero, também, notar a menção indireta, na “Nota ao poema”, no final do livro, à importância, naquele contexto, de retornar à leitura do Capital, “sobretudo agora que isto ocorre cada vez menos, em especial entre os nossos”, como disse Brecht a Benjamim, por estar ali o sentido de luta contra o capitalismo, que se equipararia, na poesia, à luta pela linguagem livre. Ainda assim, feita a opção pela poesia, evidentemente, como bem sugere Haroldo no poema, ela, a poesia, está mais para ser “lumpemproletária/ voluptuária/ vigária/ elitista piranha do lixo” que a operária idealizada pelo Capital... Ou, senão pelo Capital, pelo que se transformou sua compreensão aplicada à Revolução Soviética que, impondo um excessivo controle sobre os artistas e escritores na medida da sua constituição burocrática, tornou inaceitável a possibilidade de existência de uma poesia crítica e, ainda mais, uma poesia “lumpemproletária/ voluptuária/ vigária/ elitista piranha do lixo”.
Assim, em meio aos jogos de ideias, línguas e linguagem que movem os poemas de A educação dos cinco sentidos, seria de se perguntar dirigindo-se a ele, tal como fez o editor: “Responda rápido: o que faz de um poema, poesia?”. A resposta dada por Haroldo de Campos, naquele contexto de comunicação interativa e afetiva, ia contra esse contexto na medida em que a afetividade que expunha estava dirigida aos livros, aos escritores sobretudo poetas, aos artistas e suas obras, demandando um esforço que estava mais nas mentes que nos corpos. Haroldo chegava a soar ele mesmo um chatoboy naquele contexto, com sua poesia alusiva, toda de citações, contra os eus poéticos nus, eróticos e amorosos-afetivos que brilhavam mais que as cabeças almejadas por ele, centro erótico da erudição onde, em consonância com sua experiência estética, se evidenciava de fato a “vidalinguagem”.
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* Ademir Demarchi nasceu em 1960 em Maringá (PR). É escritor, coeditor da revista Poetrishy (Bristol), coordenador editorial da revista Cuipatã (Cubatão). Editou a revista BABEL, de poesia, o selo Sereia Ca(n)tadora e publicou mais de 20 livros de poemas como Os mortos na sala de jantar; Pirão de sereia; Cemitério da Filosofia; In Fuck We Trust; Antologia impessoal; e os livros de ensaios Espantalhos e Contrapoéticas, entre outros. Ganhou em 2024 o primeiro lugar no Prêmio Livro de Contos da UBE-PB, com o livro A tênue película que nos separa deste mundo, e o primeiro lugar no Prêmio Desmadres de Escrita em Portunhol (Festival de Literatura Latinoamericana, Buenos Aires, 2023).
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