Por Amador Ribeiro Neto
Depois publicar quase vinte livros de poesia, Armando Freitas Filho está lançando Só prosa (Companhia das Letras, 2022).
Os textos reunidos falam de suas lembranças na infância e o contato com os primeiros livros mas não deixam de fazer importantes reflexões sobre o processo de criação literária na fase adulta.
Entre as muitas memórias há uma impaciente conversa ao telefone com uma amiga – só com amigos temos esta liberdade – que se estende por sete horas. Sempre discutindo literatura e a própria amizade – esse duo amorável que os amigos celebram tão bem.
A Copa de 50 ficou na memória do poeta: “A primeira vez que entrei no Maracanã foi no dia em que se inaugurou o estádio”. Tinha dez anos de idade. Presenciou a derrota do Brasil para o Uruguai e nunca se livrou deste episódio: “O Maracanã foi minha primeira ruína”.
Franco, não dissimula suas dificuldades com viagens. Resultado: o Rio de Janeiro acaba sendo o cenário de quase tudo que conta.
Dividido em duas partes – “Eu” e “Eles” – o livro é, acima de tudo, um mergulho nas próprias formação e criação literárias. Fala de si e fala dos outros, no caso, a família, a amiga e acima de tudo, os poetas.
Mas o que conta mesmo é como se fez o poeta/escritor e como se deu seu processo criador. Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral, Ferreira Gullar são seus interlocutores. Mais: são seus amigos. Não apenas literários. Com alguns, de alguma forma, chegou a conviver. Ao longo do livro vão aparecendo outros nomes, mas en passant. Dão um colorido. De fato mesmo, é o quarteto é que estrutura sua formação e a criação artísticas.
Logo nas primeiras páginas do texto “Babá”, um misto de memória com ficção – algo como o que vem sendo chamado hoje de autoficção – o poeta deixa transparecer um dos traços distintivos de sua personalidade: a autocrítica sem piedade. Ele é duro consigo. Como se verá nos textos seguintes, ainda que tenha se casado e constituído família, percebe-se que é um homem solitário. Talvez resquício de sua infância de filho único: “Filho único não tem direito nem a Caim”.
Dono de uma escrita direta, sintética, sem torneios inúteis, sua forma cativa o leitor que é levado por mão leve e sintaxe tão acolhedora quanto hipnótica. No capítulo “Crescimento” descreve seu processo de alfabetização até o de iniciação à criação literária em apenas dezoito linhas. E conclui: “E acelera cada vez melhor o rascunho do poema que foi se firmando, reto e claro, no livro que já acolhe e o protege e é impresso, encadernado pela capa que vai durar um tempo”.
No capítulo “Da incompetência”, a autoironia reza um misto de pessimismo com mofa: “No meu caso, com o conhecimento adquirido de mim mesmo, conhecimento perturbado pelo pânico de quem completou sete décadas de vida (e, portanto, mais perto do fim)”, confessa que sempre gostou de escrever e que no seu processo de adesão à linguagem, contrapôs “ao personagem do diletante, o do autodidata concentrado, sem autonomia, a não ser que se preste a esse fim único. Em ambos há desperdício de élan. No primeiro, por diluir-se ou evaporar-se em paixões voláteis, sem raízes genuínas na sua história, e no segundo, por ter que se empenhar, como que em dobro, para alcançar o pretendido. Pelo menos, pude ocupar minha vida com o aprendizado obstinado, sem norma e sustentação aparente”.
Há o caso do fatídico passeio com a filha de cinco anos ao zoológico. Tudo começa numa belíssima manhã aberta de sol e céu azul – e termina com um temporal que desaba e ele e a filha calados e assustados dentro de um táxi. Em meio ao passeio, a queda de um menino no espaço do gorila e o sacrifício necessário do animal, frente a todos, para salvar a criança. Uma memória que o autor guarda tão dolorosadamente que até hoje nega-se a saber se a filha lembra-se do malgrado dia.
O capítulo “Armando um esboço de romance” é um deboche com a autoficção que se propõe desconstrutivista, uma ironia com a linguagem pós-moderna e uma autobrincadeira com seu próprio nome, senão com o próprio eu. Estamos percebendo que o humor é uma notável constante na prosa de AFF. O sutil e bem elaborado humor, que se arquiteta em construções inusitadas, muitas vezes escondendo-se em elipse ou suaves nuanças, quiçá trocadilhos obíquos.
Ao falar de Drummond (“até hoje aos 78 anos, quando estou perdido, abro seus livros e sempre encontro alguma salvação”), Bandeira, Gullar (de quem copiou à mão um livro todo com grande admiração), é, todavia, visível o encantamento e a sedução que sobre ele exerce João Cabral. Enfim, um poeta que narra memórias e faz reflexões com maestria – e a cada página amarra o leitor com revelações da vida e reflexões sobre literatura. Só prosa: um livro que veio pra ficar.
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