Yun Jung Im
Em 11 de setembro de 2022, o Ministério dos Patriotas e Veteranos de Guerra da Coreia do Sul atribuiu, pela primeira vez, a cidadania sul-coreana póstuma a 156 Meritosos da Independência Nacional que não deixaram descendentes e por isso não puderam ser registrados em 1948, quando foi promulgada a Lei de Registros Familiares.8[1] Incluído neles estava Yun Dong-ju, junto com seu primo Song Mong- gyu, ambos mortos em 1945 na prisão de Fukuoka, Japão, poucos meses antes da libertação coreana da ocupação imperialista japonesa (1910~1945). O endereço do Memorial da Independência (Rua do Memorial da Independência, n 1) foi atribuído como seu Endereço de origem do Registro Familiar, item obrigatório no registro.
A concessão da cidadania sul-coreana, após 77 anos de sua morte, faz sentido para um país que adota o Jus sanguinis, em detrimento do Jus soli,9[2] já que o poeta nasceu numa região na época conhecida como Gando, faixa sul da Manchúria, acima da fronteira com a Coreia do Norte hoje. Jiandao em chinês, a região foi renomeada Yanbian em 1949, e reconhecida pelo governo chinês em 1952 como Distrito Autônomo Coreano, por sua população majoritariamente coreana, então cerca de 60%.
Entre o final do século 19 e o início do 20, muitos coreanos migra- ram para essa região, primeiro devido às instabilidades político-sociais e econômicas por quais Joseon passava no contexto do neocolonialismo, e depois fugindo das garras da ocupação japonesa. Por sinal, a região era um ponto sensível ao Governo Geral japonês, por abrigar focos de movimento da resistência coreana armada. A vila de Myeongdong, onde nasceu o poeta, era o mais importante reduto coreano em Gando, e o Colégio Myeongdong, onde ele estudou, berço dos ideais libertários nacionais coreanos. Essa sua origem foi provavelmente motivo para vigilância por parte da polícia japonesa, embora o poeta não tenha se engajado em atividades explicitamente radicais pela independência, estas na verdade exercidas por seu primo e companheiro constante Song Mong-gyu.
Os coreanos migrados para Gando desbravaram terras inóspitas para plantar e viver, já que a região permanecera pouco habitada por séculos, isto porque a dinastia Qing (1644~1912)10[3] de origem manchu havia proibido a migração de chineses e também dos coreanos para lá. Tal proibição havia sido afrouxada com a China combalida pós-Guerra do Ópio, recebendo assim muitos migrantes coreanos, inclusive da milícia antinipônica, o que viria a provocar o Massacre de Gando em 1920, numa incursão militar japonesa que matou no mínimo 5 mil coreanos lá residentes, ocasião em que o Colégio Myeongdong também foi destruído. Pouco depois, a região faria parte do projeto maior japonês de Machukuo, estado fantoche criado em 1932 por oficiais da finada Dinastia Qing com apoio do Japão Imperial e a ele subordinado, abolido em 1945 após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial. A família do bisavô de Yun Dong-ju, originária da província de Hamgyeong, situada na hoje Coreia do Norte, fez parte de uma migração grupal para Gando no final do século 19, fugindo da fome que se abateu sobre a região. O seu avô também seguiu o mesmo caminho e se estabeleceu na vila de Myeongdong, tornando-se uma família próspera com base na agricultura e, também, profundamente cristã, pois os assentamentos coreanos contaram com grande ajuda dos missionários protestantes americanos. Yun Dong-ju tinha relações muito próximas com seu avô, presbítero, quem mais tarde conseguiria convencer o pai do poeta a aceitar a sua opção pela literatura. Sua mãe era irmã do fundador e seu pai professor do Colégio Myeongdong, que, além de ser foco de ideais nacionalistas coreanos, era instituição cristã. Daí, pode-se entrever o fundo cristão de sua poesia, incluindo o seu sentimento de culpa, e, por conseguinte, a vergonha.
Em 1938, foi aprovado na renomada Escola Superior Técnica Yonhi,11[4]em Seul, antecessora da renomada Universidade Yonsei, no curso de literatura, contra a vontade do pai, que o queria médico ou advogado. Pinson Hall, o prédio do dormitório estudantil de então, e onde o poeta viveu até 1940, foi renomeada em 2017, centésimo ano de seu nascimento, como Yoon Dongju Memorial House,12[5] onde já abrigava o Yoon Dongju Memorial Hall em seu segundo andar desde 2000. Na ocasião, o monumento em sua homenagem – uma placa com as inscrições do poema Prólogo – que ficava no bosque do campus da Universidade, foi transferido para o jardim deste prédio, na rua devidamente nomeada Dongju. Mas foi somente em 2013 que a família do poeta doou ao Memorial Hall todos os pertences que ainda guardava dele.
Monumentos em sua homenagem e placas com as inscrições do Prólogo podem ser encontrados em todos os lugares por onde o poeta passou, incluindo sua casa de nascimento na vila de Myeongdong, restaurada e preservada como museu do poeta, e o Colégio Yongjeong,13[6] também em Jilin, China, que erigiu um busto e uma placa com o poema Prólogo na entrada do prédio, que ainda preserva a sala de aula onde o poeta estudava com uma exposição permanente. A parede da casa em Seul, pensionato onde ele viveu depois de sair do dormitório estudantil, também ostenta uma placa em sua homenagem.
Sua época de Yonhi foi o período mais criativo, quando a maior parte dos poemas deste livro foi escrita. Enviava poemas e textos para revistas e jornais, e chegou a organizar uma revista da faculdade junto com o primo. Em 1941, ano de sua graduação, compilou três cópias de um manuscrito com 19 poemas selecionados, já intitulado “Céu, vento, estrelas e poesia”, sendo veementemente aconselhado por seu professor a desistir de publicá-lo, pois poderia significar um perigo à própria vida no contexto de recrudescimento da opressão japonesa em vias de entrar na Guerra do Pacífico.14[7] Os 19 poemas desse manuscrito são exatamente o Prólogo e as 18 peças que compõem a primeira parte deste volume.
Então, já se preparando para ir estudar em Tóquio, Yun Dong-ju entrega uma das cópias do manuscrito ao seu colega e amigo Jeong Byeong-uk,15[8] que por sua vez acaba confiando o material à sua mãe ao receber o akagami – literalmente “papel vermelho” em japonês, a convocação para servir o exército imperial japonês na Guerra do Pacífico. Ela deveria esconder o manuscrito longe dos olhos japoneses e procurar os professores da Yonhi para publicá-lo caso ele não voltasse vivo e nem o poeta voltasse do Japão. A casa onde nasceu Jeong Byeong-uk, no sul da Coreia, está preservada e transformada num pequeno museu, onde os visitantes podem ler e manusear o fac-símile do manuscrito, que ficou escondido embaixo do assoalho. Segundo escreveu Jeong Byeong-uk, que se tornaria folclorista e professor da Universidade Nacional de Seul, a obra mais significativa de sua vida teria sido a de publicar Yun Dong-ju.
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Em 1942, após o primeiro semestre no curso de Literatura Inglesa da Universidade Rikkyo em Tóquio, transferiu-se para a Universidade Dōshisha, em Kyoto,16 onde já se encontrava o seu primo e amigo íntimo Song Mong-gyu. Antes disso, porém, foi necessário que ele e sua família inteira adotassem um sobrenome japonês, episódio que o marcou profundamente e aprofundou o seu senso de vergonha, retratado no poema “Noite contando estrelas” – Se o bichinho chora a noite inteira / É porque lamenta o nome vergonhoso. (5 de novembro de 1941) –, regis trando precisamente a data da adoção do nome Hiranuma.17
A Universidade Dōshisha, bem como a casa do pensionato que o abrigou em Kyoto, também ergueram placas em sua homenagem com as inscrições do Prólogo, sem falar no monumento erigido pela Sociedade Rikkyo de Homenagem ao Poeta Yun Dong-ju às mar- gens do Rio Uji em Kyoto .18 O seu verso de abertura – Para que eu não tivesse, até o meu fim / um pingo de vergonha perante os céus –, ocupa um trono impossível de ser arrebatado por qualquer outro verso escrito por um poeta coreano, proclamando uma espécie de misofobia moral que recicla a busca neoconfucionista milenar pela retidão e correção em tempos de sujeira, no caso, a terra natal maculada, e por conseguinte, o seu corpo a alma humilhados. A placa em frente à sua casa de nascença o identifica como “poeta chinês de etnia coreana”, compreensível para uma China que adota uma política mista de Jus sanguinis e Jus soli, mas o poeta descreve o seu lugar de origem como “terra estrangeira”: Chamo os nomes dos coleguinhas que sentavam comigo no primário, nomes de meninas de país estrangeiro como Pae, Gyeong, Ok, (...) – “Noite contando estrelas”.
Seu primo, figura que já vinha sendo cerradamente vigiada pela polícia japonesa, veio a ser preso primeiro, e Yun Dong-ju três dias depois. Presos em julho de 1943, foram sentenciados a dois anos de prisão em 31 de março de 1944 e encarcerados na Prisão de Fukuoka. O grupo estudantil nacionalista coreano em terras japonesas, liderado por Song Mong-gyu e integrado pelo poeta, tinha o plano de organizar uma resistência armada que deveria ser deflagrada junto a um futuro tratado de paz da Guerra do Pacífico com a derrota japonesa, atraindo atenções internacionais para formar condições favoráveis à independência coreana.
Em 2010, foi divulgado o texto da sentença de condenação do juiz Ishii Hirao: “Yun Dong-ju possui uma consciência nacionalista muito exacerbada e um profundo rancor contra a distinção entre japoneses e coreanos, incorrendo em atos deploráveis a fim de concretizar a ambição pela independência coreana”. O texto também transcreve palavras que teriam sido ditas por ele: “intentamos tornar possível a independência coreana aprimorando as nossas capacidades e cultivando o sentimento nacionalista do povo”; “é preciso um levante armado nacionalista sob um líder competente quando o Japão for derrotado na Guerra do Pacífico”; “enfatizo que a literatura deve buscar, acima de tudo, a felicidade do povo nacional coreano”.
Gravemente debilitado após um ano e sete meses de cárcere, morreu em 16 de fevereiro de 1945, seis meses antes da libertação coreana, e Song Mong-gyu poucos dias depois. Os dois foram postumamente anistiados pela nova constituição japonesa promulgada em 1946. Embora a causa mortis tenha sido registrada como hemorragia cerebral para ambos, Kōnō Eiji, japonês que estudou literatura coreana no programa de pós-graduação da Universidade Dongguk, publicou um artigo em maio de 1980 na revista literária Hyeondae Munhak levantando a hipótese de terem sido submetidos a experiências biológicas de substituição do sangue humano, supostamente a partir da água do mar. De fato, quando Yun Yeong-chun, primo do pai de Yun Dong-ju, foi até a prisão de Fukuoka para recolher o corpo do poeta, encontrou-se com Song Mong-gyu, ainda vivo e irreconhecível, que relatou estarem recebendo injeções frequentes, de um líquido desconhecido.
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Os poemas de Yun Dong-ju foram publicados pela primeira vez em fevereiro de 1948, num projeto encabeçado por Kang Cheo-jung, colega de faculdade que se tornara repórter de jornal e que assina o Posfácio, e, naturalmente, Jeong Byeong-uk, o guardador do único manuscrito que sobreviveu aos anos. Essa primeira edição traz, além dos 19 poemas (incluindo o Prólogo) da publicação originalmente planejada sob o título de “Céu, vento, estrelas e poesia”, cinco poemas enviados pelo poeta a Kang Cheo-jung por correio durante os seus anos de Japão, sob o subtítulo de “Sombras brancas”. Integra a edição uma seleção de sete poemas escritos desde a infância até 1939, retirados de um caderno pessoal intitulado “Janela” contendo 53 poemas (incluindo seis poemas riscados pelo próprio autor), totalizando assim 31 peças. Jeong Ji-yong, o poeta mais admirado por Yun Dong-ju, que também estudara na Universidade Dōshisha, já tendo se tornado poeta consagrado e trabalhando como redator-chefe do Diário Gyeonghyang, escreveu o prefácio.
A edição que pretendia ser entregue na homenagem aos três anos de sua morte sofreu atrasos e, assim, dez exemplares foram “manufaturados” encapados com papel de parede pardo colados sobre cartolina, para serem apresentados na cerimônia. Somente um mês depois seriam impressas mil cópias, com uma capa que já traz um desenho de árvores em cor azul. Esta edição em português buscou reproduzir justamente a primeira aparição pública de seus poemas, de capa parda, e contou com a valiosa contribuição do Yoon Dongju Memorial Hall, que gentilmente enviou os arquivos escaneados em alta resolução e ofereceu vários esclarecimentos.
As obras completas de Yun Dong-ju, com 112 poemas e quatro pequenos escritos, foram publicadas somente em 1976, graças ao ato corajoso de sua irmã mais nova, que foi até a casa da família em Yongjeong, China, em dezembro de 1948, de onde trouxe todos os seus manuscritos.19[9]
A bem da verdade, a nacionalidade de Yun Dong-ju poderia ser reclamada pela Coreia do Norte, local de origem da família de seu avô. A timidez norte-coreana frente ao poeta, apesar de considerá-lo “poeta patriótico que encorajou a consciência pela independência no final da ocupação japonesa”, talvez se deva às características de sua poesia, sem panfletismo militante tão caro ao seu regime, e que rumina sobre a vergonha, a angústia, o desconsolo. Em contraste, foi eleito o poeta mais amado pelo público sul-coreano numa pesquisa de opinião realizada em 1991 com 1.145 pessoas pela Associação Coreana de Editores. Sem dúvida, o verso de abertura do “Prólogo” que consta nos livros didáticos do equivalente ao sétimo ano escolar segue ressoando nos corações dos coreanos como um voto de pureza moral e lhe prestando uma condolência coletiva e continuada.
NOTAS
8 Os registros civis coreanos têm lastro no Registro Familiar, base para as demais certidões como as de Nascimento, de Casamento e de Relações Familiares.
9 Princípio pelo qual uma nacionalidade é atribuída a alguém de acordo com a de seus pais independentemente de seu local de nascimento, por “direito de sangue”, em contraposição ao seu lugar de nascimento, por “direito de solo”, como é o caso do Brasil.
10 Última dinastia imperial chinesa antes da revolução que instaurou a República da China (1912~1949). Embora tenha sido incorporada na historiografia chinesa, a Dinastia Qing tem origem manchu, do nordeste asiático, que subjugou a última dinastia da etnia han chinesa, Ming (1368~1644).
11 [4]Uma das primeiras instituições de ensino superior da Coreia, de fundação cristã protestante.
12 Os nomes próprios em coreano podem ser encontrados em diversos formatos, devido a diferentes sistemas de romanização utilizados ao longo dos anos. Dessa forma, Yun Dong-ju seria o formato mais condizente com a última Portaria de Romanização editada em 2000. Outras formas antigas podem trazer Yoon ou Yun no sobrenome, e Dong Ju, Dongju ou Dong-ju no nome, além da versão com a letra “T” em vez de “D”.
13 A cidade de Yongjeong (Longjing em chinês), para onde a família se mudou quando Yun Dong-ju era adolescente, é o município ao qual pertence administrativamente a vila de Myeongdong. Seu túmulo fica a caminho da cidade para a vila de Myeongdong.
14 [7]Foi no final da década de 1930 que o ensino do alfabeto e da língua coreana foi abolido nos colégios, e o uso e a publicação de materiais em coreano perseguidos.
15 Também grafado pela romanização antiga de Pyŏng-uk Chŏng.
16 O motivo teria sido o ambiente da capital em que os jovens eram incitados e moralmente obrigados a se alistarem na Guerra do Pacífico.
17 A partir da década de 1930, muitos desistiram de publicar em coreano ou se tornaram colaboracionistas, estes taxados de chinilpa (pró-japoneses). Apesar da adoção do nome japonês, Yun Dong-ju é reconhecido como um poeta nacionalista.
18 A Sociedade, formada por japoneses e descendentes de coreanos no Japão, conseguiu erigir o monumento em 2017 ao cabo de mais de 30 pedidos, por 12 anos, às autoridades competentes. O projeto teve 900 contribuintes, coreanos e japoneses.
19 Na ocasião, a linha de divisão das duas Coreias, o Paralelo 38, já estava solidificada, e atravessar a linha em direção ao sul devia ter sido uma aventura bastante arriscada.
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