Por Fernando Maroja
Em seus dois primeiros livros, Moura já tem, ao menos em parte, os temas centrais de sua obra. Prova disso é que Moura abre o seu segundo livro, Hong Kong & outros poemas, com um poema anticapitalista – posicionamento político que o poeta reafirmará muitos anos depois nos poemas As armas estocadas[1] e Onipresença Onipotência[2], ambos do livro A outra voz – em que o poeta sela de uma vez por todas a sua maturidade. Transcrevo abaixo, na íntegra, o poema nomeado Hong-Kong:
“Paira
sobre as cabeças
uma alta quantia de estrelas
Na terra
olhos vendados
onde se lê grafitado: à venda
Sob
o céu
esticado
- tenda –
o burburinho-mercado
prega
(pregão)
a milhõe$
$
$
$
$
$
de planetas
(nuvens com etiquetas)
à noite
o sol é ouro especulado”.[3]
Ao substituir o “s” da palavra “milhões” pelo cifrão – que é o símbolo universal do dinheiro, Moura associa a pecúnia justamente à letra do alfabeto cujo desenho e cujo som mais se aproximam da serpente – animal que, no cristianismo, é modelo de tentação e pecado. Em Moura, o $ é a letra “s”, mas é acima de tudo a serpente que, enrolada em um dos galhos da árvore do conhecimento, meio oculta e meio anunciada, convence Eva a provar do fruto. Essa condenação de Moura aos milhões ou milhõe$ o aproxima do poeta tcheco Vladimir Holan, que, coincidentemente ou não, avizinhou-se do cristianismo após a ocupação soviética de seu país e concluiu um determinado poema com os seguintes versos:
“Quem vai em direção a Deus e renuncia a cada bem terrenal
encontra ao final a antiterra.
E quem, junto a Deus, volta atrás, rico mais uma vez de tudo
Encontra novamente o homem.”[4]
Se Moura professa ou não a fé cristã é uma questão cuja resposta não está ao meu alcance, mas a herança cultural de fundo cristão transparece em parte de sua obra, assim como teria se manifestado em fracções da obra de Georg Trakl – cujo eventual cristianismo foi rechaçado de todas as formas por Heidegger[5]. No poema Arte poética, por exemplo, Moura volta-se novamente contra o que Petronio chamaria de pecunia regina mundi, associando a pecúnia, sua maior inimiga, ao maior inimigo do Deus cristão:
“Nada se assemelha a esta dor.
A de compor um teatro de sombras
à estranha luz do nascer e se por
sobre o dorso claro do deserto,
entre as escuras sendas do incerto
que se espalham serpes ao redor.
Nada se compara a esta alegria.
A de queimar, a céu aberto,
a mácula, o dinheiro impresso
nos estúdios do diabo – e escutar
entre as ruínas do pensamento,
o girar desta chave – porta
que só se abre por dentro.”[6]
Esse anticapitalismo de Moura me recorda não apenas o poeta tcheco e cristão Vladimir Holan, mas também o poeta grego e comunista Yiannis Ritsos – o que, longe de ser surpreendente, constitui mais uma confirmação do liame entre cristianismo e comunismo apontado, entre outros, por Friedrich Nietzsche[7], Albert Camus[8] e George Steiner[9]. Ritsos é autor de um poema no qual o impenetrável se abre para o humano justamente quando o comércio fecha as suas portas e não há mais nada a ser comprado ou vendido[10] - unindo a abertura do inalienável ao fechamento do alienável, como se o impagável e o pagável vivessem no mesmo mundo, mas, incapazes de qualquer convivência pacífica, tivessem de viver uma eterna luta de vida e morte na qual a vitória jamais é definitiva e oscila, a todo momento, entre os dois lados.
Além de Ritsos, Moura também me lembra Homero, outro grego e outro anticapitalista, cujos heróis colecionam riquezas, mas, ao invés de comprarem e venderem mercadorias, trocam presentes. Homero, anticapitalista muito antes do próprio capitalismo nascer e triunfar, apresenta a riqueza de um Ulisses que, segundo Anne Carson, tem algo de superior à riqueza de um burguês:
“Penélope sequer ergue a sobrancelha. Ela conhece o marido, conhece o sistema econômico que ele manipula. Odisseu é senhor de terras, senhor de escravos, senhor de esposas; é um aristocrata inserido numa economia aristocrática extremamente controlada, baseada na reciprocidade e na troca de presentes.
(...)
Os aristocratas dão e recebem presentes em vez de comprar e vender mercadoria. A diferença é tanto física quanto metafísica. Os presentes não são medidos, calculados ou precificados. O objetivo não é o lucro. Para usar os termos de Marx, uma mercadoria é um objeto alienável trocado por dois agentes que reconhecem sua independência mútua – a relação entre eles é impessoal e se conclui com a transferência dos bens. Um presente é um objeto inalienável trocado por dois agentes em relação de dependência recíproca. O objetivo dessa troca é colocar-se em dívida com o outro.”[11]
A partir de Carson, pode-se ver que a riqueza de um Ulisses ou de um Aquiles provém da política, da aliança e união, na qual os presentes trocados aproximam-se do inalienável a que se refere o poema de Ritsos. Por sua vez, a riqueza de um burguês vem da economia, do contrato comercial, no qual a mercadoria vendida encena o alienável do mesmo poema de Ritsos. Temos, assim, dois modelos de homem antagônicos: o primeiro, vivo no mundo pagão, de Zeus, Apolo e Afrodite, está cercado pelo inalienável e pelo impagável; o segundo, vivo no mundo ateu, da economia e do espírito científico, conhece apenas o alienável e o pagável. O primeiro tem honra, enquanto o segundo tem indenizações. Essa distinção entre os homens antigo e moderno é assinalada por Michel Onfray em seu livro em homenagem ao homem romano[12], da mesma forma que Moura faz questão de diferenciar a palavra e a mercadoria. Na poesia de Moura, o vocábulo, ao contrário de sua adversária, é insubstituível e não tem valor de troca, consoante afirma o poema Há uma palavra, do livro A outra voz:
“Há uma palavra que chega e
parte a cavalo – nuvem, neblina
que a mão não captura – ave
que escapa ao laço do passarinheiro,
pluma, que falta ao canto para
se tornar alado – fruto que pende,
esplêndido, na árvore do silêncio.
Há uma palavra, que parece
ir pousar e – num relâmpago –
rufla as asas e realça o voo
para fora da dupla arapuca
da escritura e da existência.
Uma palavra que, antes de ser,
inclina o corpo sobre o balcão
do nada e atira-se ao vazio,
onde nem tempo nem espaço
nem rastro de memória mora.
Uma palavra que ilude e se elide.
Uma palavra que, sem chegar a ser
escrita, torna-se azul, infinita.[13]
Essa palavra que Moura assemelha à nuvem e que aparece e desaparece num piscar de olhos, tal qual o relâmpago, é algo, enfim, que escapa à mão e vive além de qualquer prisão e domínio humano. Ao viver no infinito e além da mão humana, essa palavra não pode ser medida e tampouco calculada e, por isso, não tem lugar em nossa época positivista e cientificista – conforme sublinha Heidegger[14]. Onde tudo é finito, pagável, alienável, medido, dissecado e calculado, o autor de Ser e tempo não encontra o evento sucedido na Grécia Antiga e na Idade Média, isto é, a arte em sua plenitude:
“Sempre que o ente na totalidade enquanto ele próprio exige a fundamentação na abertura, a arte atinge a sua essência histórica como instauração. Esta aconteceu no Ocidente pela primeira vez na Grécia. O que futuramente ‘ser’ quer dizer foi posto em obra de modo decisivo. O ente, assim aberto na totalidade, foi então transformado em ente, no sentido que foi criado por Deus. Isto aconteceu na Idade Média. Mas este ente, por seu turno, foi de novo transformado, no início e no decurso dos Tempos Modernos. O ente tornou-se objeto calculável, susceptível de ser dominado e devassado.”[15]
Essa época, em que Hermann Broch vislumbra uma aversão a todo e qualquer valor especulativo, sentimental e metafísico[16], é desafiada não somente pelo autor de A morte de Virgílio[17], mas também pelas obras de Moura e Ritsos, nas quais, não por acaso, pode-se ler uma espécie de sublimação da noite enquanto símbolo do impenetrável. A noite, graças à sua imensidão de estrelas e à sua escuridão, está além do cálculo e do olhar e apresenta, assim, algo de incalculável e invisível. Moura a homenageia em toda a sua obra, a exemplo do poema A caminho de casa, rotineiramente, do livro Rio silêncio:
“A caminho de casa, rotineiramente,
após o suor do pão amassado pelas
mãos de Deus e do diabo, os astros
por cima, os restos dos mortos por
baixo dos pés que caminham com
muito cuidado para não perturbá-los,
o vento roçando a fronte e o tempo
pisando as têmporas, patas de cavalo
arrastando à galope as rosas do amor
para um outro caminho, não este
por onde vens diariamente sozinho, entre
rostos alheios – entre eles o de alguém que
não veio – sentindo o cheiro da sombra dos
que passaram e pressentindo as sombras
que uma esquina antes desapareceram e
com teus olhos jamais se encontraram.
Ah, pequena réplica da existência,
solidão, este curto caminho cotidiano
por onde voltas antônio e noturno para
casa, pequena réplica de outra casa
- o Universo, que atrás da noite aguarda.”[18]
O que pode ser a noite, nesse poema, senão uma espécie de lençol a cobrir de escuridão, da cabeça aos pés, todo o corpo do Universo? E o Universo, o que pode ser o Universo? Em seu caso, talvez seja mais apropriado perguntar pelo “quem é” ao invés de buscar um pretenso “o que é”. Escondido atrás da noite, sorrateiramente, o Universo está mais para sujeito e menos para objeto – mais para o ladrão e menos para a res furtiva. Moura, em sua condição de poeta, é capaz de pressentir o Universo, mas justamente em razão de sua suspeita, é o único a ser vítima, o único a ter subtraída a sua solidão. Moura, ao pressentir a sua companhia eterna e invisível, desconhece a solidão absoluta.
Hermann Broch e Nietzsche, malgrado separados pelo platonismo de um e pelo antiplatonismo de outro, têm algo em comum: ambos são escritores de um refinamento auditivo incomum. Em sua obra ensaística, Broch condena o som do que nomeou de “burburinho terrível do mutismo”[19], que, em resumo, seria a redução da palavra à mera retórica e ao mero som – em tempos que substituíram o diálogo pelo grito ou, para ser mais preciso, por diversos gritos que, abusando da palavra, misturam-se em uma confusão de vozes que nada falam genuinamente. Nietzsche, por sua vez, lamenta que o renome, outrora fruto da expertise e da dedicação, tenha se tornado subordinado menos ao talento e mais ao som dos gritos que dominam a praça pública. Refiro-me aqui ao aforismo nº 331 de Gaia ciência, em que o filósofo, na ânsia pelo silêncio, expõe o incômodo causado à sua atividade intelectual pela gritaria que tomou conta das ruas modernas[20].
Broch e Nietzche são dois nomes de valor, mas, ao invés de uma dupla, não poderíamos ter uma tríade? Penso que sim. Acredito que Moura poderia ter o seu nome incluído na lista dos grandes escritores incomodados com o som da decadência moderna – que é som apenas na aparência e, na essência, verdadeiro mutismo. A relevância que o poeta paraense empresta à questão transparece não apenas no título de dois de seus livros (Rio silêncio e A outra voz), mas também na denominação de alguns poemas, a exemplo de Onicanção, Aonde vai a voz... e Ouve o mundo. Se voltarmos ao primeiro de seus poemas que transcrevemos, isto é, ao poema que abre o livro Hong Kong & outros poemas, encontraremos em Moura a mesma condenação de Broch ao burburinho do mundo moderno. Vejamos apenas uma parte do referido poema:
“o burburinho-mercado
prega
(pregão)
a milhõe$
$
$
$
$
$
de planetas
(nuvens com etiquetas)”
Moura renova, portanto, a condenação de Broch e de Nietzsche à barulheira do mundo moderno, utilizando-se, em seu julgamento, da mesma palavra escolhida pelo tradutor do escritor vienense – isto é, a palavra burburinho. Se prosseguirmos, veremos que a crítica elaborada por Moura não se limita a essa feliz coincidência, eis que, conscientemente, o poeta praticamente suprime a voz humana de sua poesia, ao mesmo tempo em que a preenche com inúmeras vozes inumanas. Há, em sua obra, o “silvo das serpentes”, o “som de sombras”, o “uivo do feiticeiro”, a “voz do fogo”, o “alto grito do pássaro”, o “latido”, o “rosnado”, o “sussurro”, o “rugido”, o “estalo”, o “zumbido”, o "miado de um gato” etc. Moura cria, enfim, uma sinfonia inumana, conforme registrou o próprio poeta em um verso muito feliz de seu poema Marajó, cuja parte final transcrevo abaixo:
“(...)
O passar, lento, lento, da asa do tempo
O grito – caripi – do gavião no vento
A maré, o marulho, a vazante, a enchente
A crepúscula afinação
dos sapos – vozes, instrumentos
E diante de todos os movimentos
da gigantesca sinfonia inumana,
um minúsculo homo sapiens
respira.”[21]
Ao erigir sua sinfonia inumana, Moura mais uma vez se aproxima de Hermann Broch, cujo romance A morte de Virgílio é não apenas uma das maiores obras literárias do Século XX, mas é, também, uma espécie de sinfonia – em que a narração cede lugar à poesia[22], em que a sucessão de fatos é reprimida em benefício da reflexão humana. Em A morte de Virgílio, a voz humana, enquanto monólogo interior, perde a sua sonoridade e se torna muda, mas seu silêncio é pura aparência – eis que o monólogo interno do poeta latino é, essencialmente, som e sinfonia do e para o espírito.
Se Antônio Moura elabora em sua poesia uma sinfonia inumana que é, acima de tudo, formada pelo som de animais, do rio, do vento e até da madeira, estamos diante de um poeta que recupera o culto à natureza tão essencial ao romantismo e à sua luta contra a cisão entre os mundos da natureza e do homem[23]. Moura, justamente em razão desse resgate, aproxima-se sobretudo de Rousseau, de seu bucolismo e de seu famoso “bom selvagem” – presentes do início ao fim de A origem da desigualdade entre os homens, que é uma condenação à cultura, à hegemonia da racionalidade e, enfim, à civilização[24]. Da mesma forma, a sinfonia inumana do poeta paraense o aproxima de Schelling e de sua ideia de que a natureza é o espírito visível tanto quanto o espírito é a natureza invisível[25]. Em alguns de seus poemas, Moura torna mais clara a ideia de que a natureza não é simples objeto, simples matéria prima – exatamente como pensa Schelling em sua crítica à filosofia de Espinosa[26] . Em dois poemas de Rio silêncio, a natureza fala, ouve e se admira em seus espelhos. Essa natureza ativa e plena de ações, ao invés de ser objeto, é sujeito, é espírito:
“À espera, de pé, na pedra,
entre a esfera verde do mar
e a estrela que a cada
noite se aproxima, falas
cada vez mais mudo,
numa voz que escuta o fundo
de outra voz que vem
e diz-não-diz em eco,
hein, idioma de algas,
algo assim num som surdo:
nada, vestido de corpo e carma,
enquanto se dissolve o mundo”.[27]
“Tão grande que
para se ver tem
que fazer de seus
próprios olhos dois
espelhos: céu e mar
Tão sem par que
para ter com quem
falar tem que ouvir
a própria voz em
tudo se manifestar.”[28]
Há, portanto, esse Moura vizinho ao romantismo, poeta da sinfonia inumana e do culto à natureza, na qual o homem pode acessar o espírito e recuperar, enfim, a unidade que fora perdida principalmente após o advento da sociedade industrial tão condenada por Rousseau e também por Schiller[29]. Esse Moura, que está a revigorar o romantismo no limiar do Século XXI, lembra o poeta Georg Trakl, que realizou tarefa semelhante no umbral do Século XX, com seu tom lamentoso e com seu bucolismo e primitivismo – presente sobretudo nos personagens do mundo pré-industrial que povoam seus poemas, como os pastores e o pescador no poema Calma e silêncio, o camponês e o carpinteiro no poema Canção das horas, além das criadas do poema Helian[30].
Há, contudo, um outro Moura, para o qual o culto à natureza não é suficiente para unir homem e espírito. Esse outro Moura, que se distancia do romantismo e que demonstra uma herança cultural de fundo cristão, vislumbra no homem a eterna condição de exílio à qual somente a morte pode colocar um ponto final. O grande poema Heloísa, 1963 – 1977, do livro A sombra da ausência, retrata bem o sentimento de exílio a que nos referimos:
“Não demorou muito a separação.
O retorno – do rio à fonte,
da árvore à sua semente.
A tua flor ainda adolescente
exposta ao sol por um momento
ascende ao éter seu aroma
enquanto as pétalas, pálpebras
caem e reúnem-se ao chão.
Não demorou muito a separação.
Entre o Céu e a Terra, a reconciliação.”[31]
Aqui, a natureza não é mais a união entre homem e espírito e sim a metáfora da desunião: a distância entre o céu e a terra é a distância entre homem e Deus. Moura não poderia ter escrito algo mais cristão – se considerarmos que esse mundo de duas dimensões é obra justamente do cristianismo, de seu mundo divido entre o terrenal e humano de um lado e o celestial e divino de outro. Cotejando a poesia homérica e os relatos bíblicos, Erich Auerbach ressalta não apenas a clareza do primeiro e a obscuridade do segundo, mas também a predominância de um só plano no primeiro e a multiplicidade de planos no segundo:
“Comparando os dois textos e, ao mesmo tempo, os dois estilos que encarnam, para obter um ponto de partida para os nossos ensaios sobre a representação literária da realidade na cultura europeia. Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tático, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofundamento do problemático.”[32]
Se o mundo grego era essencialmente unidade – unidade entre vida e lei, entre vida e poesia, entre homens e deuses, de onde se originou a cisão? Acima de tudo, originou-se do cristianismo, de seu mundo dualista dividido entre o terrenal e humano e o celestial e divino. Foi o cristianismo que divorciou, de uma vez por todas, as figuras humana e divina, que, no mundo homérico, estavam sempre unidas, entrelaçando-se nas batalhas em Tróia e na viagem de Ulisses de regresso à Ítaca.
Não é isso que lemos na poesia homérica? Seus versos não são, no fim das contas, uma sucessão de eventos onde homens e deuses se entrelaçam? Esse entrelaçamento só foi possível porque no mundo religioso grego não havia uma divisão rígida entre uma dimensão humana e uma dimensão divina. Se os deuses ajudam ou embaraçam determinado herói, na Guerra de Troia, é porque as dimensões, humana e divina, são uma única dimensão ou, ao menos, duas que se interligam imediatamente, sem divisões rígidas. Se os deuses são ouvidos, com frequência, pelos homens, deve-se concluir que a distância entre imortais e mortais é tênue e não rígida. Não é isso que nos mostram as leituras de Ilíada e Odisseia elaboradas pelos estudiosos? Penso que sim. Bernard Knox, ao ler o segundo livro homérico, sublinha que os deuses eram “(...) tão próximos da vida humana e tão envolvidos com os indivíduos, seja na afeição ou na raiva, que intervinham em sua vida e lhes apareciam em pessoa”[33]. Rachel Bespaloff, em sua leitura de Ilíada, ressalta os esforços de Apolo e Afrodite para manter intacta a beleza física do cadáver de Heitor, após a morte que lhe infligiu Aquiles[34].
Em um trecho de seu grande poema denominado Monumento a Pascal, do livro A sombra da ausência, Moura volta ao mundo bidimensional do Velho Testamento e demonstra mais uma vez vestígios de cristianismo, associando a verdade ao céu e a mentira ao terrenal:
“Dirigimos o olhar para o céu,
mas firmamo-nos na areia.
Um princípio de tudo.
Tudo por ele.
Tudo para ele.
Incapazes de ignorar totalmente
e de saber com certeza,
temos uma imagem da verdade
e possuímos a mentira.
Glória e refugo do universo.”[35]
A partir dessa visão de mundo bidimensional – nascida em Platão e consolidada acima de tudo a partir da religião cristã, Moura escreve, em A sombra da ausência, seu poema nomeado Canção do exílio, em que “Viver / é experimentar um breve exílio”[36]. Já em Rio silêncio, há um poema de nome Considerando a frio, imparcialmente, em que o poeta paraense associa a penetração masculina, na relação amorosa, à ânsia de voltar para casa: “e que este mesmo homem, quando penetra / em sua amada, quer, talvez, voltar”.[37] Podemos acrescentar, ainda de Rio silêncio, o poema A casa, que merece transcrição integral:
“Ventre-casa de onde saímos
para entrar na casa-ventre de
quatro paredes onde chegamos.
Um entre, onde ficamos em
convívio: pai, filho, espírito, espanto
quando um a um de nós caímos
no tumulto do mundo, largados
à miragem de estar sozinho,
até ver a imagem no espelho
que reflete o invisível, até ouvir
o indizível chamado para
voltar ao ventre, casa
sem uma única parede entre as estrelas
de onde, talvez, nunca tenhamos saído”.[38]
Aqui, Moura não apenas reafirma a condição humana de exílio e a ânsia de regresso à moradia “entre as estrelas”, mas acrescenta também o tema da queda humana, tão essencial ao cristianismo quanto o mundo dividido entre o celestial e divino de um lado e o terrenal e humano de outro. Ao escrever que “nós caímos / no tumulto do mundo, largados / à miragem de estar sozinho”, o poeta paraense, que já havia associado a mentira ao terrenal, acrescenta a solidão aos males de nosso mundo.
Por isso, o exílio que atravessa a obra do poeta paraense nada tem em comum com o exílio que levou Ovídio à escrita de Tristezas. Se há, na obra de Moura, uma determinada ânsia pela morte, é porque o fim de vida terrenal promete a reconciliação com o infinito. No caso do poeta latino, a morte nada tem de reconciliadora. Ao contrário, Ovídio clama pela morte justamente porque a reconciliação com Roma lhe parece cada vez menos provável.
Temos, assim, dois modelos antagônicos de exílio. Ovídio é o típico homem do mundo antigo que foi modelado a partir da ideia de cidadão, enquanto Moura é típico homem do mundo moderno que foi educado a partir do humanismo – que, por sua vez, muito deve ao cristianismo[39]. Ao ser muito mais cidadão que pessoa humana, Ovídio era completamente incapaz de vislumbrar, para si, uma vida fora de Roma, isto é, uma vida dissociada de cidadania. Por isso, seu exílio, em Tristezas, é quase equivalente à morte:
“Lembro-me de Roma e de minha casa, e da saudade pelos lugares conhecidos,
e da parte de mim que fica na cidade abandonada.
Ai de mim! Tantas vezes bati à porta de meu sepulcro,
mas vez alguma ela me foi aberta!
Por que eu escapei de tantas espadas e tantas vezes nenhuma
tempestade ameaçadora foi capaz de destruir essa vida lastimosa?
Ó deuses, que percebo demasiado e constantemente injustos,
partícipes da ira que um único deus sente,
incentivai, eu peço, o fim dos meus dias (...)”.[40]
Se o exílio de Ovídio é político, o de Moura é metafísico. A reconciliação que o poeta paraense tanto anseia não é com alguma instituição política, com alguma Roma de seu tempo. Seu exílio, se é tão oposto àquele do poeta latino, assemelha-se ao de Georg Trakl, em cuja obra a figura do “solitário” aparece inúmeras vezes – a exemplo dos poemas Romance à noite, Alma da vida, Outono transfigurado, Num antigo álbum de família, Cantos do rosário, Uma noite de outono, A miséria humana e outros[41].
O que pode significar essa solidão, na poesia de Trakl, senão o sentimento de exílio? Quem está irremediavelmente sozinho, sem família, sem amante, sem concidadãos, só pode estar em pleno exílio. Contudo, a partir do momento em que a vida, em sua totalidade, torna-se exílio, o único remédio é a morte e Trakl anuncia a sua proximidade em Cantos do rosário[42], assim como a associa à reconciliação no poema intitulado Na aldeia[43].
Obviamente, esse sentimento não é necessariamente de origem ou de caracteres cristãos e Heidegger, conforme ressaltado anteriormente, nega-se a vislumbrar em Trakl qualquer crença cristã. Não nos interessa, aqui, polemizar com a leitura de Heidegger, mas não seria absurdo afirmar que o mundo desenhado na poesia de Trakl beira a escatologia – com suas “ruínas humanas”, “órfãos mortos”, “fetos e pedras antigas”, além de versos como “vozes profundas morreram” e “lábios podres sugam leite de / Peitos encarnados”. Se o seio materno, ao invés de alimentar a vida, está a alimentar a morte, repito que esse cenário, de fim de mundo, não está longe da escatologia. No entanto, se essa escatologia é cristã ou não, não nos cabe procurar aqui uma resposta.
A herança de fundo cristão de Antônio Moura, que vislumbro em A sombra da ausência e que vejo crescer em Rio silêncio, mantém-se viva em A outra voz – tanto quanto o outro Moura, pendente ao romantismo. Nesse livro, que reputo uma das maiores obras da poesia brasileira do Século XXI, o poeta paraense recorre à típica divisão cristã entre céu e inferno no poema Putas[44], assim como retoma a ideia de exílio no poema em homenagem a Tristan Tzara, no qual escreve: “A sombra azul é a única companhia no eterno exílio”[45], atribuindo eternidade não ao espírito e sim ao próprio exílio, o que pode se tratar de uma simples hipérbole ou, o que é mais provável, de uma leitura do poeta homenageado, cujo pseudônimo significaria “triste país” ou “triste em meu país”.
Ainda em A outra voz, o poeta paraense retorna ao tema do exílio em outro poema, intitulado Exílio, em que o mundo terrenal, outrora associado à mentira e à solidão, torna-se agora tédio e monotonia. A leitura do poema sugere que Moura o escreveu em um domingo qualquer:
“Aqui, onde a aranha do tédio
tece e destece o seu manto
de Penélope aborrecida pelo
enfadonho fio do tempo
Aqui, onde o Deus da mono
tonia exerce o seu domínio
e, dominical, uiva seu culto
de lobo faminto entre ovelhas
Aqui, onde só em sonhos
a centaura branca passa e
em seu rabo de cavalo preto
as estrelas zumbem feito moscas
Aqui, onde a estátua de sal
toca o seu monocórdio infinitas
vezes, meses e meses e meses
Aqui, de onde um dia vou partir
numa nuvem em forma de nada”.[46]
Apesar de haver, na segunda estrofe do poema, uma condenação direta e indiscreta ao cristianismo, entendo que a melhor interpretação aponta para uma crítica às instituições cristãs e não aos valores do cristianismo. O “lobo faminto” a que se refere o poeta não está no infinito do cristianismo e sim em sua parte finita, mais precisamente nos padres ou pastores que, enquanto agentes das igrejas cristãs, apropriam-se da religião para colherem vantagens em detrimento dos ignorantes ou inocentes. Essa interpretação pode ser confirmada pela leitura de outro poema do mesmo livro, no qual o poeta paraense ataca a “histérica pregação” de padres e pastores, censurando, simultaneamente, a barulheira do mundo moderno e o renascimento do fascismo:
“Você que agora caminho por este poema,
não está ouvindo, além do som das sílabas,
o som de sinistros passos ecoando secos
em seu encalço, como que para encarcerá-lo,
como que para amordaçá-lo? Não está agora
pressentindo atrás de sua própria sombra
uma outra sombra, que, aos poucos, se agiganta
querendo, de forma réptil, cobrir tudo, todos,
com sua escura manta? Não está sentindo,
agora, fazer ninho em seus ouvidos a gralha
a rasga-mortalha da histérica pregação,
que busca ensurdecê-lo com seu grasnado
para que ouça, unicamente, a voz intolerante,
a voz fanática e prepotente do Deus demente?
Não está vendo uma venda que, lentamente,
cai sombria sobre seus olhos, sobre sua mente?
Você que agora caminho por este poema,
cuidado, aqui perto, no fim da Rua Extrema
a oficina do fascismo fabrica frias algemas.”[47]
Da mesma forma, deve-se entender que Moura, ao se referir a “Jesus armado” em um verso de seu mais recente livro, Caos, Cosmo,[48] está a condenar não o personagem histórico, que, ao invés de pegar em armas, morreu passivamente na cruz. Esse Jesus, o que de fato viveu entre os homens e sempre esteve ao lado dos humilhados e ofendidos, foi poupado até mesmo por Nietzsche[49], cujo martelo filosófico não tem o costume de poupar. Por isso, a condenação de Moura se dirige, em verdade, ao Jesus da perspectiva fascista, ao Jesus daqueles que hodiernamente se apresentam enquanto cristãos e que, simultaneamente, defendem uma sociedade civil livremente armada, na qual a palavra e o discurso deverão ser substituídos pela arma de fogo e pela violência enquanto meios de solução de temas políticos, jurídicos e sociais. A rigor, Moura está a defender Jesus daqueles que associam o seu nome à luta fascista contra uma das maiores conquistas políticas de todos os tempos, a qual devemos à polis grega e que é, segundo Arendt, a substituição da coerção e da violência pela persuasão e pelo discurso[50].
Críticas dessa espécie estão longe de ser novas. Não podemos esquecer que o próprio Lutero, ao lutar contra a Igreja Católica, não lutava contra o cristianismo e sim contra a maior instituição humana de todos os tempos. Foi Lutero quem desprendeu a religião cristã das garras da Igreja Católica, ao apequenar a parte meramente ritual ou institucional do cristianismo, a exemplo do batizado, do dízimo, da penitência e do jejum. Enquanto apequenou o que seria apenas secundário, Lutero agigantou a fé enquanto elemento principal, senão único, da religião cristã:
“(...) só a fé, sem todas as obras, torna-nos devotos e bem-aventurados (...). Os mandamentos nos ensinam e prescrevem todo tipo de boas obras, mas não é assim que se efetivam. Eles orientam, mas não ajudam; ensinam o que se deve fazer, mas não dão a força para isso. Consequentemente, eles só foram ordenados para que o homem veja neles a sua incapacidade de fazer o bem.”[51]
“Além disso, nenhuma obra má pode torná-lo mau e condenável, mas é a falta de fé que torna a pessoa e a árvore má e que realiza obras más e condenáveis.”[52]
A partir do exemplo de Lutero e a partir, sobretudo, do conjunto da obra do próprio Moura, permeada por alguns temas ou heranças do cristianismo, entendo lícito concluir que a crítica do poeta paraense, no poema Exílio, tem como alvo menos a religião cristã em si e mais as instituições que agem em seu nome – e em prejuízo a ele. Essa conclusão também se aplica ao Poema pintado com urucum, em que o “Jesus armado” não é, reitero, o homem que morreu na cruz e sim aquele invocado na atual narrativa da extrema-direita nacional.
Apresentamos, aqui, um poeta que ora se inclina ao romantismo e ora se inspira em algo da religião cristã – o que não significa professar a referida religião. Do romantismo, a sinfonia inumana de Moura lembra o bucolismo, o culto à natureza e o panteísmo apontados pelo eterno professor Benedito Nunes[53]. Do cristianismo, Moura recupera a divisão do mundo entre terrenal e celestial e a ideia de que o homem, a viver em perene estado de queda, só pode regressar do exílio após a morte.
Apesar de vislumbrarmos em Moura esses dois Mouras distintos, pode-se afirmar que ambos têm em comum um único buscar, cujo alvo é sempre o ser, seja ele os rios ou bosques ou a vida após a morte. Essa ânsia de essência justamente na época da existência é o que distingue Moura de seus pares – todos concentrados no condicionado, nas questões políticas e sociais, nas causas ambientais e lutas identitárias. Obviamente, não se ignora a relevância dessas questões e Moura, de sua parte, escreve contra o capitalismo e o fascismo desde os seus primeiros livros aos mais recentes – a exemplo do grande Poema para ler ao andar com cuidado. Contudo, Moura nunca se detém no condicionado e sempre vai, uma hora ou outra, atrás do incondicionado. Essa busca, que há em Moura e que também havia em Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes, tornou-se cada vez mais rara na poesia brasileira.
Ao afirmar o valor da história sem emprestar-lhe um caráter absoluto, Moura tem algo em comum com Albert Camus, que, em plena maturidade, ao escrever o prefácio para a reedição de obra de sua juventude, afirmou: “Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo”.[54] Moura e Camus, cada um em seu tempo, escreveram contra o fascismo e resistiram, mas ambos negam à história o valor absoluto que seus pares lhe atribuem. Se o sol ensinou a Camus que a história não é tudo, foi a noite, tão sublimada na poesia de Moura, que o transmitiu essa erudição.
Se Roberto Calasso escreveu que o fim da crença e do culto religioso transformou os deuses em meros personagens de livros[55], a poesia brasileira contemporânea afirma justamente o contrário. Sua obra atual apresenta ares por demais marxistas – se é verdade que em Marx o único incondicionado é justamente o condicionado[56], ou algo do perspectivismo da filosofia nietzscheana – com suas lutas identitárias e com seu relativismo contrário ao ser e a todo e qualquer incondicionado.
Nesse sentido, Moura é uma exceção. Na contramão de seu tempo e de seus pares, o poeta paraense é provavelmente o único nome hodierno da poesia brasileira a confirmar a tese de Calasso, o único cujos livros abrigam, acima de tudo, os deuses. Seu poema Ágrafo, escrito com excelência e presente no livro Caos, Cosmo, confirma o seu o papel enquanto poeta dos deuses:
“A boca sopra a palavra deuses
e milhões de mundos se iluminam
e se apagam sem ouvi-la
Da mão sai o rabisco-arabesco esperança,
linha de horizonte que mais se afasta
quanto mais se avança
No crânio ecoa a substantiva justiç,
pronúncia que não termina
em forma humana nem divina
A natureza não reconhece o que eu digo,
assim como não tenho sentidos para traduzir
seu idioma inescrito.”[57]
Em Ágrafo, Moura diz que milhões de mundos não têm ouvidos para ouvir o som da palavra deuses. Em resposta, eu o diria que todos esses mundos são, em verdade, somente um: o mundo moderno do “burburinho terrível do mutismo”, condenado por Nietzsche e Hermann Broch. Esse mundo, que trocou o inalienável pelo alienável e o incalculável pelo calculável, está povoado por homens de ouvidos tapados, todos surdos para o canto das sereias, com a exceção de Moura, cuja poesia é o ouvido em sua abertura para os deuses e para a sinfonia inumana, que são, a rigor, apenas dois nomes diversos para a denominação do ser. Na época em que o meio ambiente se tornou questão de grande relevo nos debates políticos, a poesia de Moura se torna indispensável enquanto recuperação da luta romântica contra a cisão operada pelo racionalismo moderno entre homem e natureza, a qual pode ser encontrada, por exemplo, na filosofia de Hegel[58]. Moura erige, enfim, uma sinfonia que é inumana, mas também política.
Belém, 09 de julho de 2024.
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NOTAS
[1] MOURA, Antônio. A outra voz – São Paulo/SP: Editora Patuá, 2018, págs. 86 a 88.
[2] Idem, ibidem, págs. 92 e 93.
[3] MOURA, Antônio. Hong Kong & outros poemas – São Paulo/SP: Ateliê Editorial, 1999, pág. 17.
[4] Tradução livre de minha autoria da parte final do poema que, na versão italiana, chama-se Visione:
“Chi va verso Dio e ha rinunciato a ogni bene terreno
trova alla fine l’antiterra.
E chi, stato da Dio, ritorna indietro, ricco ancora una volta di tutto,
incontra di nuovo l’uomo.”
HOLAN, Vladimír. Addio?; traduzione di Vlasta Fesslová – Milano/Italia: Arcipelago Edizioni, 2014, pág. 99.
[5] “Il tentativo de emettere un giudizio sullo statuto cristiano del dettato d’origine de Trakl dovrebbe ben ponderare innanzitutto i suoi due ultimi dettati: Lamento e Grodek. Sarebbe necessario chiedere: perché il poeta – se fosse davvero così fermamente cristiano –, qui, nell’estremo bisogno del suo ultimo dire, non invoca Dio? Perché non implora il Cristo? Perché egli evoca, invence, ‘l’ombra della sorella’ nel suo ‘oscillare’ e la sorella stessa come colei che ‘saluta’? Perché la canzone non si chiude con la fiduciosa prospettiva sulla redenzione cristiana, mas con quell’espressione che suona: ‘i disingeniti, i nipoti’? Perché la sorella compare anche nell’altro dettato ultimo (Lamento)? Perché ‘l’eternitá’ viene qui detta ‘la gelida onda’? Tutto ciò è pensato cristianamente? Questa non è neppure disperazione cristiana.”
HEIDEGGER, Martin. Georg Trakl: Il canto dell’esule; traduzione di Gino Zaccaria e Ivo De Gennaro – Milano/Italia: Christian Marinotti Edizioni, 2003, pág. 361.
[6] MOURA, Antônio. A outra voz – São Paulo/SP: Editora Patuá, 2018, pág. 100.
[7] “(...) e, se a fé na ‘prerrogativa da maioria’ faz revoluções e fará revoluções, é o cristianismo, não se duvide, são os juízos de valor cristãos, que toda revolução apenas traduz em sangue e em crimes!”
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: maldição ao cristianismo; tradução de Paulo César de Souza – São Paulo/SP: Companhia de Bolso, 2016, pág. 50.
[8] “Esta é a missão do proletariado: fazer surgir a suprema dignidade da suprema humilhação. Por suas dores e lutas, ele é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação. Ele é inicialmente o portador multiforme da negação total e, em seguida, o arauto da afirmação definitiva.”
CAMUS, Albert. O homem revoltado; tradução de Valerie Rumjanek – Rio de Janeiro/RJ: Record, 1997, pág. 239.
[9] “Creio que reconhecemos na história do marxismo cada um dos atributos que citámos como sendo característicos de uma mitologia de molde completamente teológico. Temos a visão do profeta e os textos canônicos, legados aos fiéis pelo apóstolo mais importante. Veja-se a relação entre Marx e Engels; o acabamento póstumo do Kapital; a publicação dos primeiros textos sagrados. Temos uma história de conflito feroz entre os herdeiros ortodoxos do mestre e os hereges, uma linhagem de fissão ininterrupta desde os tempos dos mencheviques a Trotsky e, actualmente, a Mao. (...) Como tudo isso é familiar aos estudantes da história da Cristandade.”
STEINER, George. Nostalgia do absoluto; tradução de José Gabriel Flores – (S.L.): Relógio D’Água Editores, 2003, págs. 20 e 21.
[10] Refiro-me ao poema de Ritsos que, na tradução para o italiano, chama-se Cambiamenti e que transcrevo a seguir na íntegra:
“Quelli che se ne sono andati erano gente nostra. Ci sono mancati.
Quelli che sono tornati, affatto sconosciutti per noi.
Una volta non portavano occhiali. Ora li portano.
Non sai se dietro gli occhiali vi siano occhi.
Bisogna vederli quando dormono,
quando le loro valigie aperte in corridoio
esalano l’aria estranea della biancheria nuova,
quando fuori in strada si accende il grande fanale
e illumina le porte dei negozi chiusi
e l’impenetrabile diventa accessibile, perché
non hai più niente da comprare o da vendere”.
RITSOS, Ghiannis. Molto tardi nella notte; traduzione di Nicole Crocetti – Italia: Crocetti editore, 2022, pág. 145.
[11] CARSON, Anne. Sobre aquilo em que eu mais penso; tradução de Sofia Nestrovski – São Paulo/SP: Editora 34, 2023, pág. 141.
[12] “A historiografia contemporânea duvida desta história, porque põe em jogo valores que já não pertencem à nossa época dita democrática: o sentido de honra, a coragem, a importância da palavra dada, o desprezo da morte. Com efeito, a nossa época preza exatamente o contrário e lava as dívidas de honra com pagamentos de danos e juros; ignora o que é a coragem física, moral, ética e física, e refugia-se na farmácia ansiolítica para resolver o mais pequeno problema; abole a verdade e coloca no poder pessoas cujo ofício é a mentira e o perjúrio; esconde os seus mortos em caixões de aço refrigerados e maquilha-os para parecem vivos.”
ONFRAY, Michel. Sabedoria: saber viver ao pé de um vulcão; tradução de Pedro Elói Duarte – Coimbra/Portugal: Edições 70, 2023, pág. 188.
[13] Idem, ibidem, págs. 31 e 32.
[14] “Que medo é maior nos nossos dias do que o que há perante o pensar? Falar de obras imortais e do valor eterno da arte terá sentido e conteúdo? Ou tudo isto não são mais do que modos de falar, meio pensados, numa época em que a grande arte, e com ela a sua essência, abandonou o homem?”.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte; tradução de Maria da Conceição Costa – (S.L.): Edições 70, 2019, pág. 67.
[15] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte; tradução de Maria da Conceição Costa – (S.L.): Edições 70, 2019, pág. 64.
[16] “Não é justamente a característica de um mundo que se tornou radicalmente desplatonizado e positivista que ele, com o mesmo radicalismo que desdenha tudo que é metafísico, seja obrigado a expulsar toda e qualquer consideração estética para a esfera dos problemas filosóficos aparentes?”
BROCH, Hermann. Espírito e espírito de época: ensaios sobre a cultura da modernidade; tradução de Marcelo Backes – São Paulo/SP: Benvirá, 2014, pág. 8.
“Em que pese toda a rejeição positivista a determinações especulativas e teológicas, em que pese a preferência (alimentada pela mesma fonte positivista) por fundação de valores não especulativas, sentimentais e intuitivas, esse objetivo é inconfundivelmente platônico, pois terá de acabar em um sistema de valores racional (...).”
Idem, ibidem págs. 9 e 10.
“Pode até parecer blasfemo querer responsabilizar o espírito positivista, ao qual o Ocidente deve tanto, e que provavelmente tenha levado a Europa a sua posição dominante no mundo – Colombo não teria chegado às Américas nem a máquina de vapor teria sido inventada se o terreno europeu não se tivesse tornado um terreno dos fatos – sim, pode até parecer blasfemo, pois, querer responsabilizar a postura positivista pelos métodos mudos de gângster com os quais a Europa desnuda suas próprias conquistas e com os quais também acabará por perdê-las.”
Idem, ibidem, pág. 52.
[17] Broch, tal qual Heidegger, enxerga na ascensão do espírito científico um simultâneo declínio da arte, ao menos da arte escrita:
“Com essa eliminação de tudo que é especulativo no âmbito da ciência, começou, no entanto, também a eliminação do linguístico.”
Idem, ibidem, pág. 53.
[18] MOURA, Antônio. Silence river; translated by Stefan Tobler – Todmorden/UK: Arc Publications, 2012, pág. 68.
[19] Broch encontrou e usou essa feliz expressão em seu ensaio “Espírito e espírito de época”.
Idem, ibidem, pág. 51.
[20] NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência; tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima – São Paulo/SP: Hemus, 1976, págs. 212 e 213.
[21] MOURA, Antônio. A outra voz – São Paulo/SP: Editora Patuá, 2018, pág. 62.
[22] “Ele indubitavelmente conseguiu, em A morte de Virgílio, transformar a forma da novela, apesar de suas tendências intrinsecamente especiosas ou naturalistas, em poesia autêntica (...).”
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios; tradução de Denise Bottmann – São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2008, pág. 129.
[23] “Esta radical oposição entre o mundo da natureza e o mundo espiritual encontrará nos pós-kantianos diversas tentativas de superação (...)”.
BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. In: O Romantismo/J. Guinsburg, organização – São Paulo/SP: Perspectiva, 2013, (Stylus: 3/dirigida por J. Guinsburg), pág. 85.
Ainda no mesmo texto, Bornheim acrescenta: “A reconquista da unidade, do infinito sempre distante, determina a nostalgia romântica.”
Idem, ibidem, pág. 92.
[24] Em um trecho de sua obra, Rousseau defende a ideia de que a medicina, tão valiosa em nossa civilização, seria desnecessária ao homem em estado de natureza, cuja vida, ao contrário da nossa, ignorava a doença: “(...) eis as funestas provas de que a maioria de nossos males são obra nossa e que nós evitaríamos quase todos eles se conservássemos a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a ser sadios, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contranatural e que o homem que medita é um animal depravado. Quando se pensa na boa constituição dos selvagens, pelo menos dos que nós não desgraçamos com nossos licores fortes, quando se sabe que eles quase não conhecem doenças, fora os ferimentos e a velhice, somos levados a crer que escrevíamos facilmente a história das doenças humanas acompanhando a das sociedades civis. Em todo caso, é essa a opinião de Platão, que julga, com base em certos remédios empregados ou aprovados por Podalírio e Macaão no cerco de Tróia, que diversas doenças que esses remédios suscitariam ainda não eram conhecidas entre os homens.”
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A origem da desigualdade entre os homens; tradução de Eduardo Brandão – São Paulo/SP: Penguim Classics Companhia das Letras, 2017, pág. 42.
[25] “Poiché quella natura à la prima esteriorità e visibilità di Dio, è un pensiero naturale considerarla come il corpo della Deità, mente quell’Oltre-essente come lo spirito che governa questo corpo.”
SCHELLING, Friedrich W. J. Le età del mondo; a cura di Vito Limone; traduzione di Vincenzo Cicero – Milano: Bompiani, 2013, pág. 559.
“Ma come può l’Eterno, che non la trova entro sé, individuare questa distinzione in un altro fuori di sé? Questo altro è, per lo spirito dell’eternità, la natura, alla quale egli sta in riferimento. Nella natura lo spirito si riconosce come colui che era, poiché la pone come suo passato eterno, dunque riconosce anche Sé come colui che in eterno doveva necessariamente essere essente (...).”
Idem, ibidem, pág. 557.
[26] A crítica de Schelling ao pensamento de Espinosa transparece, inicialmente, em Sobre o eu como princípio da filosofia ou sobre o incondicionado no saber humano: “O primeiro a ver que o erro de Espinosa não estava naquela ideia, mas sim em tê-la posto fora de todo eu, o compreendeu e achou o caminho para a ciência.”
SCHELLING, Friedrich. Sobre a forma da filosofia e sobre o eu; tradução de Caio Heleno da Costa Pereira – São Paulo/SP: Iluminuras, 2021, pág. 63.
Posteriormente, em Investigações filosóficas, Schelling retoma a crítica: “Eis aqui, então, de uma vez por todas, a nossa opinião precisa acerca do espinosismo! Este sistema não é nenhum fatalismo pelo facto de deixar que as coisas sejam concebidas em Deus; porque, tal como indicamos já, o panteísmo não torna impossível pelo menos a liberdade formal; portanto, Espinosa só pode ser fatalista por uma razão totalmente diferente e independente do panteísmo. O erro do seu sistema não reside, de forma alguma, no facto de ele colocar as coisas em Deus, mas no facto de elas serem coisas; reside no conceito abstrato de seres mundanos (Weltwesen), já que a própria substância infinita é, para ele, também uma coisa.”
SCHELLING, Friedrich. Investigações filosóficas; tradução de Carlos Morujão – Lisboa/Portugal: Edições 70, 1993, pág. 44.
[27] Idem, ibidem, pág. 40.
[28] Idem, ibidem, pág. 48.
[29] Contrastando os homens dos mundos bucólico e civilizado, Schiller exalta a pureza do primeiro em desfavor da artificialidade do segundo: “O ingênuo na maneira de pensar jamais pode, por isso, ser uma qualidade de homens corrompidos, mas concerne apenas a crianças e homens de intenção infantil. Muitas vezes estes últimos agem e pensam ingenuamente em meio às relações artificializadas do grande mundo; esquecem-se, por própria e bela humanidade, de que têm de lidar com um mundo corrompido e conduzem-se mesmo nas cortes reais com uma ingenuidade e inocência só encontradas num mundo bucólico.”
SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental; tradução de Márcio Suzuki – São Paulo: Iluminuras, 1991, pág. 49.
[30] Minha fonte é a tradução assinada por Claudia Cavalcanti e publicada pela editora Iluminuras.
TRAKL, Georg. De Profundis e outros poemas; tradução de Claudia Cavalcanti – São Paulo/SP: Iluminuras, 2010.
[31] MOURA, Antônio. A guerra invisível – Belém/PA: AMO! Editora, 2021, pág. 91.
[32] AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental – São Paulo/SP: Perspectiva, 2013, págs. 19 e 20.
[33] KNOX, Bernard. In: Odisseia/Homero; tradução e prefácio de Frederico Lourenço – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, pág. 61.
[34] “The gods, however, who took everything else that belonged to Hector, have neither the power nor the wish to deprive him of the beauty that outlives force. Stretched out prone in the dirt, he remains beautiful: ‘Apollo spares his body all pollution … Aphrodite, night and day, keeps the dogs from him’. And, intact thus in his young warrior’s beauty, he will be given back to Priam.”
BEFPALOFF, Rachel. In: War and the Iliad/Simone Weil and Rachel Bespaloff; translated by Mary McCarthy; introduction by Christopher Benfey; afterword by Hermann Broch – New York: New York Review of Books, 2005, pág. 48.
[35] MOURA, Antônio. A guerra invisível – Belém/PA: AMO! Editora, 2021, pág. 110.
[36] Idem, ibidem, pág. 97.
[37] Idem, ibidem, pág. 44.
[38] Idem, ibidem, pág. 36.
[39] É o que ensina, entre outros, Karl Lowith: “O mundo histórico que permitiu formar o ‘preconceito’ de que todo aquele que tem um rosto humano já como tal teria a ‘dignidade’ e a ‘determinação’ de ser homem não foi originalmente o mundo agora declinante da mera humanidade, que teve sua origem no ‘uomo universale’, mas também ‘terrible’ da Renascença, mas o mundo do Cristianismo, no qual o homem tem seu lugar delimitado para si e seu próximo através do homem-deus Cristo. A imagem que transformou o homo do mundo europeu em homem em geral foi profundamente determinada pela representação que o cristão fez de si mesmo como uma imagem prototípica de Deus. A proposição de que ‘todos nós’ somos homens se limita, pois, àquela humanidade que o cristianismo produziu em conjunto com o estoicismo.”
LOWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: a ruptura revolucionária no pensamento do Século XIX: Marx e Kierkegaard; tradução de Flamarion Caldeira Ramos e Luiz Fernando Barrére Martin – São Paulo: Editora da Unesp, 2014, pág. 365.
[40] OVÍDIO, Públio Nasão. Tristezas; tradução de Pedro Schmidt – Araçoiaba da Serra/SP: Editora Mnema, 2023, pág. 167.
[41] Extraio essa seleção da tradução elaborada por Antônio de Castro Caeiro e publicada pela editora Abysmo.
TRAKL, Georg. Poemas; tradução de Antônio de Castro Caeiro – Lisboa/Portugal: Abysmo, 2019.
[42] “Oh! A proximidade da morte! Rezemos.”
Idem, ibidem, pág. 97.
[43] “A morte reconcilia quartos frescos.”
Idem, ibidem, pág. 107.
[44] Idem, ibidem, pág. 33.
[45] Idem, ibidem, pág. 68.
[46] Idem, ibidem, pág. 36.
[47] Idem, ibidem, pág. 89.
[48] O verso faz parte de poema intitulado Poema pintado com urucum.
MOURA, Antônio. Caos, Cosmo – Cajazeiras: Arribaçã, 2024, pág. 43.
[49] Em o Anticristo, Nietzsche investe não contra Jesus Cristo e sim contra Paulo. Enquanto Jesus teria sido, no fundo, o único cristão, o único a abolir, com o seu sacrifício, “o próprio conceito de culpa”, o único a negar “todo abismo entre Deus e homem”, o único a viver “essa unidade de Deus e homem”, Paulo seria, enquanto fundador da Igreja e fundador do rebanho, o sacerdote com sede de poder: “O que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais lançou sua doutrina – Sua necessidade era o poder; com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder – ele tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas, símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos. Qual a única coisa que Maomé tomaria depois ao cristianismo? A invenção de Paulo, seu meio para a tirania sacerdotal, para a formação de rebanho: a fé na imortalidade (...).”
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: maldição ao cristianismo; tradução de Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia de Bolso, 2016, págs. 48 e 49.
[50] “Na experiência da pólis, que tem sido considerada, não sem razão, o mais loquaz dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia política que dela surgiu, a ação e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão (...). Ser político, viver em uma pólis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não pela força e violência.”
ARENDT, Hannah. A condição humana; tradução de Roberto Raposo – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016, pág. 32.
[51] LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão; tradução de Erlon José Paschoal – São Paulo: Ed. Unesp, 2015, pág. 31.
[52] Idem, ibidem, pág. 55.
[53] “Para o poeta romântico, as formas naturais com que ele dialoga, e que falam à sua alma, falam-lhe de alguma outra coisa: falam-lhe do elemento espiritual que se traduz nas coisas, ao mesmo tempo signos visíveis e obras sensíveis, atestando, de maneira eloquente, a existência onipresente do invisível e do suprassensível. A natureza transforma-se numa teofania. Os bosques, as florestas, o vento, os rios, o amanhecer e o anoitecer, os ruídos, os murmúrios, as sombras, as luzes – de tudo que não é humano e se constitui em espetáculo para o homem.”
NUNES, Benedito. A visão romântica. In: O Romantismo/J. Guinsburg, organização – São Paulo/SP: Perspectiva, 2013, (Stylus: 3/dirigida por J. Guinsburg), pág. 65.
[54] CAMUS, Albert. O avesso e o direito; tradução de Valerie Rumjanek – Rio de Janeiro/RJ: Record, 1996, pág. 18.
[55] “O poder de suas histórias continua a agir. Mas a situação tem algo de peculiar: a compósita tribo dos deuses sobrevive, hoje, somente em suas histórias e em seus ídolos dispersos. A via do culto está obstruída. Ou porque não existe mais um povo de devotos que faça os gestos rituais. Ou porque esses gestos terminam cedo demais (...). Esta, podemos dizer, passou a ser a condição natural dos deuses: aparecer nos livros.”
CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses; tradução de Jônatas Batista Neto – São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2004, págs. 22 e 23.
[56] É o que sentencia Karl Lowith: “Marx considera como único incondicionado justamente esse caráter condicionado de toda existência histórica.”
Idem, ibidem, pág. 124.
[57] Idem, ibidem, pág. 35.
[58] Na obra filosófica de Hegel, há um antagonismo inconciliável entre a liberdade humana e a natureza, na medida em que a liberdade humana é encarada sobretudo na potência humana de ir além do que lhe é dado pela natureza: “O animal tem um círculo restrito de meios e modos de satisfação de suas carências, igualmente restritas. O homem, mesmo nessa dependência, prova o seu ir além da mesma e a sua universalidade, inicialmente pela multiplicação das carências e dos meios e, em seguida, pela decomposição e diferenciação da carência concreta em partes e aspectos singulares, que se tornam carências distintas, particularizadas e, por isso, mais abstratas.”
HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Linhas fundamentais da filosofia do direito: direito natural e ciência do Estado no seu traçado fundamental; tradução de Marcos Lutz Muller – São Paulo: Editora 34, 2022, pág. 452.
Na mesma obra, Hegel ainda reforça, em outra passagem, esse antagonismo entre liberdade humana e natureza: ““A representação segundo a qual, com respeito às carências, o homem viveria em liberdade num pretenso estado de natureza, no qual só teria carências pretensamente naturais e só usaria para a sua satisfação meios que uma natureza contingente lhe proveria imediatamente – desconsiderando o momento da libertação que reside no trabalho, do que se tratará mais adiante –, é uma opinião falsa, porque a carência natural enquanto tal e a sua satisfação imediata seria somente o estado de natureza da espiritualidade imersa na natureza, e, portanto, um estado de rudeza e de não liberdade, ao passo que a liberdade reside unicamente na reflexão do espiritual (a) dentro de si, na sua diferenciação do que é natural e no seu reflexo sobre esse.”
Idem, ibidem, págs. 455 e 456.
______________________________________________________________________________________Referências:
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios; tradução de Denise Bottmann – São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2008.
______. A condição humana; tradução de Roberto Raposo – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental – São Paulo/SP: Perspectiva, 2013.
BEFPALOFF, Rachel. In: War and the Iliad/Simone Weil and Rachel Bespaloff; translated by Mary McCarthy; introduction by Christopher Benfey; afterword by Hermann Broch – New York: New York Review of Books, 2005.
BORNHEIM, Gerd. Filosofia do Romantismo. In: O Romantismo/J. Guinsburg, organização – São Paulo/SP: Perspectiva, 2013, (Stylus: 3/dirigida por J. Guinsburg).
BROCH, Hermann. Espírito e espírito de época: ensaios sobre a cultura da modernidade; tradução de Marcelo Backes – São Paulo/SP: Benvirá, 2014.
CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses; tradução de Jônatas Batista Neto – São Paulo/SP: Companhia das Letras, 2004.
CAMUS, Albert. O homem revoltado; tradução de Valerie Rumjanek – Rio de Janeiro/RJ: Record, 1997.
______. O avesso e o direito; tradução de Valerie Rumjanek – Rio de Janeiro/RJ: Record, 1996.
CARSON, Anne. Sobre aquilo em que eu mais penso; tradução de Sofia Nestrovski – São Paulo/SP: Editora 34, 2023.
HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Linhas fundamentais da filosofia do direito: direito natural e ciência do Estado no seu traçado fundamental; tradução de Marcos Lutz Muller – São Paulo: Editora 34, 2022.
HEIDEGGER, Martin. Georg Trakl: Il canto dell’esule; traduzione di Gino Zaccaria e Ivo De Gennaro – Milano/Italia: Christian Marinotti Edizioni, 2003.
HOLAN, Vladimír. Addio?; traduzione di Vlasta Fesslová – Milano/Italia: Arcipelago Edizioni, 2014.
______. A origem da obra de arte; tradução de Maria da Conceição Costa – (S.L.): Edições 70, 2019.
KNOX, Bernard. In: Odisseia/Homero; tradução e prefácio de Frederico Lourenço – São Paulo/SP: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
LOWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: a ruptura revolucionária no pensamento do Século XIX: Marx e Kierkegaard; tradução de Flamarion Caldeira Ramos e Luiz Fernando Barrére Martin – São Paulo: Editora da Unesp, 2014.
LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão; tradução de Erlon José Paschoal – São Paulo: Ed. Unesp, 2015.
MOURA, Antônio. A guerra invisível – Belém/PA: AMO! Editora, 2021.
______. A outra voz – São Paulo/SP: Editora Patuá, 2018.
______. Hong Kong & outros poemas – São Paulo/SP: Ateliê Editorial, 1999.
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______. Caos, Cosmo – Cajazeiras: Arribaçã, 2024.
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: maldição ao cristianismo; tradução de Paulo César de Souza – São Paulo/SP: Companhia de Bolso, 2016.
______. Gaia ciência; tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de Paula Lima – São Paulo/SP: Hemus, 1976.
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ONFRAY, Michel. Sabedoria: saber viver ao pé de um vulcão; tradução de Pedro Elói Duarte – Coimbra/Portugal: Edições 70, 2023.
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