Por Amador Ribeiro Neto
Cida Predrosa nasceu em Bodocó-PE, 1963. Poetisa, advogada, feminista, comunista, desde a adolescência mantém-se engajada em movimentos pelos direitos humanos. Estreou aos dezenove anos com Restos do fim (1982). Publicou Gume (2005), As filhas de Lilith (2009), Claranã (2015) – os dois anteriores finalistas do Prêmio Oceanos de Literatura – Solo para vialejo (2019), vencedor do prêmio Jabuti nas categorias poesia e livro do ano, Estesia (2021). Formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e especializou-se em Ciência Política pela Universidade Católica. Atualmente vereadora da Câmara Municipal de Recife.
Araras vermelhas, de Cida Pedrosa, (Companhia das Letras, 2022) tematiza a Guerrilha do Araguaia, a resistência revolucionária dos militantes contra a ditadura militar imposta pelo golpe de 31 de março de 1964 e os horrores repressivos militares que, vale lembrar, ainda hoje permanecem impunes.
A poesia política, ou engajada, ou social, tem um lugar reservado na história da poesia e, particularmente, na brasileira. No barroco temos uma poesia de resistência à invasão dos estrangeiros e à exploração do comércio tanto extrativista como de troca. Os poetas românticos souberam ser abolicionistas, os modernistas, ao mesmo tempo que louvavam o progresso, protestavam contra a exploração que o capital impunha – e assim por diante, a poesia sempre esteve engajada socialmente, cumprindo um papel social de relevância.
Até aí tudo bem. O problema começa a surgir e a minar, ou até mesmo, a destruir ou negar a poesia, quando o engajamento se dá como matéria exclusiva, como essência do texto, sufocando a forma poética. Antonio Candido alerta: quando o externo (social) não se torna interno (estrutura) a literatura deixa de ser literatura. Passa a ser qualquer coisa – sociologia, história, antropologia, etc. – menos obra literária.
Cida Pedrosa envereda pelo caminho da poesia social. Por um lado é uma boa escolha, porque necessária à nossa historiografia poética, em muitos aspectos carente neste aspecto. No recorte que ela faz, absolutamente carente. Por outro, é uma escolha delicada, pois precisa manter-se social e, acima disto, poética. E aí, quer parecer-me, o livro não cumpre exatamente o que se propõe.
Inicia-se com um “Prólogo” formado por duas estrofes em décimas de martelo agalopado, e metalinguísticas, de tirar o fôlego do mais exigente leitor. Beleza aproximada reaparece na poética nordestina, e universal, das sete estrofes de septilhas de cordel do “Epílogo”. Aqui também numa evocação metalinguística, “a musa de cor vermelha / que se esvai em poesia” finaliza o poema narrativo saudando a guerrilha “pensada como estratégia / do socialismo...” saudada na beleza simples e rara da poesia popular.
Estes dois momentos do livro abrem asas sobre todo o restante. São momentos de poeticidade e inventividade que sobressaem ao conjunto da obra. A poetisa, mais no Prólogo, embora em ambos, revela-se exímia compositora de versos na tessitura da sonoridade, na filigrana das imagens e na engenhosidade das ideias.
No mais, ao optar por novas formas de expressão muito bem-vindas, e que, particularmente me interessam deveras – como o uso do espaço em branco da página, os poemas verbovocovisuais, a reiteração paronomásica, o uso de paródia e paráfrase, a intertextualidade, as incorporações, as citações – o livro perde-se ao esvaziá-las sem reinvenção, sem recriação, sem personaliza-las com a marca da poetisa. Em outras palavras: Cida Pedrosa vale-se destes recursos empobrecidos pelo uso corriqueiro e repetitivo que já se fez dele à exaustão. Lê-se cada um de seus cinco cantos como sem nenhuma surpresa, sem o advento de nenhuma epifania que toda poesia deve despertar em seu leitor.
Onde o alumbramento? Na informação dos acontecimentos? Mas isto não é poesia. Pode ser história. Sociologia. Jornalismo. Qualquer documento. E documento não é literatura. Literatura é linguagem – ou estrutura, nas palavras de Antonio Candido. A informação é rica, mas é elemento externo, e enquanto não se converte em interno à obra (estrutura) não é literatura, não é linguagem literária, não é poesia. A arte não pode submeter-se à ideologia, já afirmava Bakhtin quando assinava sob o nome de Voloshinov.
Este é o fundamento da questão que deve sustentar qualquer obra literária. Ela não pode ser instrumentalizada para fins políticos, ou outros fins, enfim. Ou não será obra literária. Não se trata de negar valor às questões políticas, de gênero, de identidade, históricas, sociais, etc. São importantíssimas, imprescindíveis e urgentes. Mas se vão parar num livro de poesia, há necessidade de portarem-se como poesias.
Claro que poesia é um gênero plural, vivo, mutante. Mas há um distintivo que faz ser poesia. Diferente da sociologia, da história, da política, da didática, etc.
Ao comentar o livro “Authority and Freedon: A Defense of the Arts”, de Jed Perl, na Ilustríssima de 26.02.2023, observa João Pereira Coutinho: “atualmente vivemos um retorno aos momentos mais sombrios do século 20, com a submissão da arte a imperativos extra-artísticos”.
É isso que constato em Araras vermelhas, bem como em boa parte da produção poética atual. Escritores que se alimentam de discursos ideológicos de vários matizes, impregnando livros e mais livros em versos, sem conseguir fazer poesia.
Araras vermelhas chaga-nos composto por cinco cantos. Cada um deles precedido por uma narração em prosa sobre acontecimentos das décadas de 70: fatos biográficos da própria poeta, dados da música pop, comentários esportivos, notas de colunas sociais, fatos histórico-sócio-políticos. A seguir vêm os poemas com as formas citadas há pouco: intertextualidades, caligramas, citações, paráfrases, paródias, apropriações, uso intenso de espacializações, refrães – tudo concorrendo para marcar intensamente o ritmo do livro.
É um livro para ler-se em voz alta. Afirmo que é obra de dramaturgia poética, mais que um livro de poesia. Nas orelhas, Edmilson Pereira de Oliveira, observa, “Cida Pedrosa escreve no limite das relações entre a fatura estética e a denúncia de fatos trágicos da vida social brasileira”.
Neste limite reside seu risco e escorrego. Os cinco cantos traem-se no afã do registro das denúncias e fatos. Fica no mero “externo” ou, o que é igualmente grave, cai no pastiche estético.
O pastiche é a imitação rarefeita do que já existe. Não é a cópia, o que configuraria plágio. E em momento algum é plágio. É a imitação criativa de baixa qualidade. Infelizmente é o que se encontra em cada um dos cantos de Araras vermelhas. Um dèjá-vu de qualidade insuficiente, que cansa o leitor. Este frustra-se ao ver retratado um momento tão importante, quanto desconhecido, de nossa história política e social, por uma poesia que é pastiche de Cecília Meirelles, em Romanceiro da Inconfidência, de Ferreira Gullar, em Poema Sujo, entre outros, como o “poema-bomba” de Augusto de Campos, etc.
O esforço histórico de Cida Pedrosa é louvável. A Guerrilha do Araguaia e todo este período histórico precisa ser cantado em poesia. Infelizmente não foi neste livro. Exceto pelo brilhante Prólogo e pelo bom Epílogo, que anunciam um modus operandi a ser seguido como modelo, quem sabe. Ou outro modo, com os mesmos recursos de que se valeu a poetisa, fugindo-se do pastiche.
Vamos aos poemas:
PRÓLOGO
O poema acampado no palácio
Diz que o povo tá em busca de alforria
Leva a lança, o broquel e a cantoria
Traz no corpo os escritos de Horácio
É um sopro de amor da flor do Lácio
Aos que gritam num ritmo sincopado
E combatem a fera lado a lado
Confrontando a patente carrancuda
Treme o sol, trema a terra, o tempo muda,
Eu cantando o martelo agalopado.
Venho lá das veredas do sertão
Onde firmam as asas como guia
E no qual a esperança sucumbia
Toda vez que o torpor cravava o chão
E as sementes perdiam-se ao clarão
Do Astro-Rei, que havia decepado
Todo sopro de vida, transplantado
Para o nada da fome, tão desnuda!
Treme o sol, trema a terra, o tempo muda,
Eu cantando o martelo agalopado.
Cito um fragmento do Canto Quinto:
vivia com a mulher e os três filhos que foram presos
e torturados no início da terceira campanha de cerco
e aniquilamento das forças guerrilheiras pelas forças
armadas
aderiu à guerrilha aprendeu a ler e escrever em pouco
tempo e sonhava
e sonhava
e sonhava
e falava e contava e dizia e repetia a exploração vai acabar,
o cativeiro terá fim.
josé lourival paulino alfredo joaquinzão carretel frederico
luizão luizinho camponeses-guerrilheiros sem
fotografias para apresentar suas existências
josé
alfredo
joaquinzão
frederico
luizão
luizinho
camponeses guerrilheiros camponeses guerrilheiros
guerrilheiros
joca gostava de ouvir música clássica no rádio edinho
sabia tocar piano e na mata passou a tocar flauta rústica
josé carlos gostava de desenhar cartuns amauri tocava
no violão as canções que ele mesmo compunha
mundico gostava de fazer cordéis
rosalindo de sousa codinome mundico e o cordel
com os 27 pontos defendidos pelos guerrilheiros
defendidos
pelos guerrilheiros
o cordel
o cordel
o cordel recitado pelos camponeses
até hoje moradores do araguaia recitam estrofes do
romance da libertação
o romance da libertação o romance da libertação
o romance da libertação
de um guerrilheiro que escrevia romance de cordel
romance de cordel
romance de cordel
ângelo arroyo diz no relatório que os hinos da guerrilha
elaborados lá mesmo, eram cantados pela massa. nas
sessões de terecô se faziam cantorias de elogio à guerrilha.
tambor da mata
tambor da mata
tambor da mata
encantaria
encantaria
encantaria
tambor de mina
tambor de mina
tambor de mina
terecô
terecô
terecô
os cabocos a mata o transe a cantoria os caboclos a
mata o transe a guerrilha a cantoria
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