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As cartas de Paulo Leminski: um testemunho geracional

Por Ricardo Barberena*

e Vinícius Carneiro**


A presença dos poetas concretos Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos faz-se espaçosa e pesada nas cartas de Leminski enviadas ao poeta e amigo Régis Bonvicino (encontradas tanto em Uma carta uma brasa através quanto em Envie meu dicionário), e isso não é por acaso. Na verdade, o concretismo foi fundamental na apresentação e consolidação de Leminski como poeta no campo literário brasileiro. Sua primeira publicação foi em 1964, na revista Invenção, encabeçada pelo grupo paulista. Catatau, por sua vez, foi dedicado aos três poetas, ficando a apresentação da redição crítica do “romance-ideia” em 2004 a cargo de Pignatari. Já Caprichos & Relaxos, o primeiro livro de poemas de Leminski publicado por uma grande editora e que teve circulação nacional, teve contracapa de Haroldo. Porém, a relação com o grupo não foi sempre estável. Em carta de dezembro de 1976, consta o enunciado

 

penso que o plano piloto

virou plano pirata,

 

numa referência clara ao plano piloto para poesia concreta, ensaio-manifesto concretista de 1958 que contém as ideias fundamentais do movimento de poesia concreta. Tal colocação insere-se no contexto específico do campo literário dos anos 1970 e 1980, quando diversos autores mantiveram relações com o grupo concreto, ao mesmo tempo em que buscavam o seu espaço relacionado aos seus respectivos habitus e capitais culturais. Contudo, a constituição de um novo habitus no contexto brasileiro, tal como foi o caso de Leminski, marcado pelo excesso, o desbunde, a rebeldia e o humor, esteve também relacionada a uma grande reconfiguração dos capitais culturais. Isso fica mais claro quando lemos outra carta anterior do ano de 1976:

 

nosso negócio

é gerar uma ecologia

um meio ambiente nosso

de trocas de mensagens

metalinguagens mútuas e recíprocas

(deixe que chamem de panelinha máfia autofagia etc)

UM MACROGESTO

só assim vamos ter força para continuar

permanecer

transformamo-nos sem mudar

aufhebung: o conceito hegeliano que quer dizer

ANIQUILAR E MANTER

 

A ideia de união (“nosso negócio”) aparece no enunciado como representação de um movimento no contexto literário nacional, a constituição de um grande gesto em conjunto, um “macrogesto” que torne visível a geração pós-64 como uma “geração”. Não se está falando de um conjunto de autores com necessariamente as mesmas características, mas certamente distinto quanto ao habitus dos grandes nomes da literatura brasileira dos anos 1930, 1940 e 1950. O “pirata” aponta então para um lugar outro, usurpador, itinerante quando se pensa nos capitais simbólicos, culturais e sociais, desterrado de um locus no campo literário e em busca do tesouro da permanência.

 

O deslocamento proposta por Leminski na carta é ambíguo, tendo em vista a manutenção de capitais culturais – no caso, a contribuição concreta e a posterior contribuição da música popular – e a necessária transformação destes para a constituição de um lugar no campo. O movimento, todavia, é nítido: do locus de um grupo conhecido no cenário cultural, o concretismo, para outro destino, incerto. Nesse sentido, a autocrítica da mesma carta de 1976 sobre o possível

 

Provincianismo

a loucura inconsequente

a queda do rigor

eruditismo livresco [do Catatau]

 

seja um autoquestionamento: onde esse conjunto de escritores gostaria de posicionar-se? Mas não se quer ir para qualquer endereço. O caminho da narrativa curta, da “curitiba de contistas”, também não interessa. Para diferenciar-se, tem-se, conforme a carta de agosto de 1977, que


“carregar nos sinais generacionais”

p/ obter um diferencial em relação ao concretismo clássico (horrível, não?).

 

Essa diferença, faz-se pela guerra,

 

a guerrilha dos signos!

 

as batalhas nunca são decisivas

as vitórias são confusas.

 

Leminski e os seus não querem ser nem concretos, nem clássicos. Encontrar e salientar os sinais “generacionais” é expor e valorizar os capitais culturais em jogo. O campo está aberto. Há vagas.

 

Voltando à carta de dezembro de 1976, Leminski pede para que Bonvicino

 

mostre ao augusto

ao décio se der

(esconda do risério

o riso está de castigo

o bandido

porq não me respondeu (e o Campanella que eu mandei?)

pesa sobre ele a maldição do faraó

escrevo agora para haroldo

sobre livrinho ensaios anseios ELOS.

 

O tom amistoso, além de denunciar de onde se fala – ou seja, de um grupo de poetas simpáticos aos concretos –, salienta o caráter performativo do próprio suporte “carta”, que não fica restrita a um interlocutor, mas, sim, a um grupo maior, atribuindo aos enunciados dessa correspondência uma promessa de expansão. O mesmo ocorre em carta de janeiro de 1977:

 

mandei pacotão para risério

artigos novos

 

mando minifesto III

página augusto plaza jardim please mostrar augusto

[…]

Logo mando poemas para risério. Mostre esse material para o augusto e se puder para o décio. Seja bonzinho. Tenha pena deste pobre poeta provinciano que quase que só escreve para você.

 

Tal procedimento propositivo e argumentativo de uma geração de agentes, a de Leminski, que busca o diálogo com outra, mais antiga, consolidada, é recorrente e implica na quase suspensão de tudo que ali se enuncia. A ausência de um revisionismo bélico e dissidente neste momento da correspondência aponta tanto a importância do diálogo mais abrangente com outra formação discursiva, a do grupo concreto, como a falta de unidade de uma formação discursiva que se constituía naquele momento, a de Leminski e seus pares.

 

Em carta de julho de 1977, ao falar da poesia de Bonvicino, Leminski assume um impasse:

 

v. tem imaginação estrutural hiper-desenvolvida

é isso que faz com que v. pareça mais “concretista”

do que riso e eu

 

em matéria de régis-poesia

eu sou mais SILÊNCIO e POEMA PARA DUDA

os dois extremos mais altos que acho v. atingiu

um – poema verbivocovisual desbundadíssimo

o outro um laissez aller de letra de música

coloquial charmoso com swing e bossa

 

entre esses dois extremos

v. certamente tem um espaço enorme para fazer a sua música

que considero maravilhosa

 

Dá-se destaque a um capital cultural de intersecção, entre o rigor da poesia concreta e a dicção do cotidiano, extremos que se encontram num rendez-vous inusitado, no qual se perde uma hierarquia de valor entre verbivocovisualidade e prosódia da fala na canção popular, entre poesia concreta e humor. O encontro de admiradores do concretismo, ou seja, a valorização do mesmo capital cultural, é elemento fundamental para a configuração desse capital cultural, social e simbólico. Antes do encontro entre os diversos agentes, cada um deles isolado poderia sentir-se como

 

um fóssil vivo por ainda me preocupar com poesia concreta

plano piloto e quejandes.

 

O reconhecimento de si no outro permite a ratificação de um capital simbólico. Leminski diria…


tive a deliciosa e insubstituível sensação de que estive sempre certo.

 

A poesia concreta é considerada mais do que influência ou inspiração. Para explicar, uma parábola:

 

existe um livro chinês A TRANSMISSÃO DA LÂMPADA se chama

é s história dos 47 patriarcas zen

a começar do 1o Mahakasispa discípulo de Buda

os chineses chamaram “transmissão da lâmpada”

ao ato de transmissão de poderes de patriarca

de um patriarca a outro

 

a última vez q estive com décio

aí no riso

nós todos na sala

quando o décio me disse:

– é preciso acabar com o concretismo, e quem pode fazer isso são vocês,

e apontou para você para riso para mim para pedrinho

senti algo assim como A TRANSMISSÃO DA LÂMPADA

 

nós já estamos chegando lá

isto é

em muitos momentos do nosso trabalho

às vezes mais às vezes menos

já consegui ver a fímbria de algo

q já não é mais concretismo

embora o pressuponha e o tenha deglutido

 

acho que não devemos mais nos preocupar com palavras

afinal nós vamos chegar lá fazendo

e não falando.

 

 

A parábola da transmissão da lâmpada não apenas evidencia a filiação entre as duas gerações de poetas, a dos concretos e a do desbunde, como permite visualizar o próprio movimento no campo, de desligamento das asas do concretismo e de constituição de um locus de enunciação. Na carta, tal movimento fica cada vez mais explícito:

 

passei muitos anos de olhos voltados para S. Paulo

para o grupo Noigandres

para Augusto, principalmente

escrevendo para eles

preocupado em saber  O QUE ELES IAM ACHAR

 

nessa época eu era “concretista”

 

mas eu era uma porção de outras coisas também

e quando eu deixei que elas agissem mais forte

fiz o Catatau.

               

 

Porém, o que parece ser total desprendimento, cujo resultado redundaria no livro de 1975, acaba retornando ao ponto inicial: os concretos. Através dessas cartas, é possível entrever a leitura de Leminski do grupo concreto:

 

a reação dos patriarcas em relação  ao Catatau

foi curiosa

 

estranha isomórfica ao livro

 

não sei dizer bem se eles gostaram ou não

enfim, o que é gostar?

 

tenho certeza que para o paladar weberiano-joãogilbertesco

de Augusto

o Catatau deve ter parecido bagunçado demais

irregular demais

entrópico demais

 

Augusto nunca foi muito claro comigo acerca do q ele achou do Catatau produto final

o saque  cartésio x trópico a anedota eu sei q ele adora

 

décio se refere ao Catatau falando em “monolito”, “é uma boa”, coisas assim

 

haroldo, de haroldo nunca ouvi nem uma palavra

[…]

somos os últimos concretistas e os primeiros não sei o que lá.

           

 

Não se quer o plano-piloto, programático e combativo, mas algo diferente, falsificado, deglutidor, um plano-pirata. Dos concretos, não se quer a benção, mas sente-se falta quando não há. Então, quais seriam os elementos, além do coloquialismo da prosódia da música, que diferenciariam poetas como Leminski dos anos 1970 dos agentes dos 1950? Um deles ecoa no enunciado sobre a parábola: a cultura oriental. Utilizar a metáfora da história chinesa da transmissão da lâmpada dos patriarcas é valer-se de um capital cultural alheio ao campo literário brasileiro para a própria explicação do funcionamento do mesmo. Deste modo, introjeta-se o elemento distintivo, as culturas orientais, entre o grupo concreto e a nova geração identificada por Leminski, na tentativa de explicação do que essa geração seria.

 

O sincretismo dos capitais culturais explicita-se no enunciado final da mesma carta:

 

somos os últimos concretistas e os primeiros não sei o que lá

somos centauros

metade decadentes alexandrinos bizantinos

e metade bandeirantes pioneiros Marcopolos

Sinbad

Livingstones

Davy Crockets.

 

A enumeração de desbravadores, colonizadores, conquistadores, destruidores de culturas e edificadores de outras, aniquiladores de um passado e mantenedores de outro, é a metáfora da busca por um espaço no campo literário, tanto na história da literatura brasileira quanto no mercado editorial. Algo semelhante reaparece em carta posterior:

 

descobri: a poesia concreta, para mim, é como um cavalo. para o cavaleiro, o cavalo não é a meta. talvez, cavalgando a poesia concreta, eu chegue ao que me interessa: a minha poesia. acho que estou chegando.

 

Não há dúvida de que se parte da poesia concreta e dos capitais culturais a ela pertinentes. Com o deslocamento, o local de chegada é a incógnita. Conforme a carta de abril de 1978, não se pode negar as contribuições do concretismo, suas conquistas, pois a consequência em fazê-lo é a estagnação:

 

o preço de olhar pra trás

é virar ferreira gular.

 

Faz-se referência aqui à dissidência do poeta maranhense com o grupo concreto, cuja alegação era de que o concretismo estava muito preocupado com um esteticismo formalista e nada interessado em abordar as “verdadeiras” mazelas do Brasil. Para uma geração de escritores, o debate político não se instaurava nem na denúncia da censura nem no engajamento tido como populista à la Gullar, conforme a carta outubro de 1978:

 

Aí mando ensaio último meu, síntese das coisas q tem me assediado lately. Pensar: função da poesia de invenção numa sociedade aberta, democrática, quer dizer, popular, quer dizer de massas, quer dizer socialista. NADA ME INTERESSA MAIS EM TERMOS DE TRABALHO.

O esteticismo dos campos compromete todo o projeto. Eles vêem slogans e “tolices esquerdistas”, onde se trata de problemas de verdade perante os quais nenhum intelectual do 3º mundo (viva otávio paz!) pode ficar fazendo palavras cruzadas… como se o problema de uma revolução brasileira se resumisse em dar ou não razão a ferreira gular!…

Vou ter que salvar essa merda. Eu, discípulo do osasquense operário bárbaro bizantino, décio pignatari, o nó da questão!

 

A revolução está não na procura pelo “novo”, como o concretismo fez, nem no simples engajamento, mas na tessitura da aranha, no percurso de procurar,

 

bashô disse: não siga as pegadas dos antigos.

procure o que eles procuraram

 

eles procuraram a poesia. Vamos procurá-la. A nossa moda.

 

Entretanto, Gullar, como aponta Leminski sobre comentário de Pignatari, estava certo em um ponto: é necessário comunicar-se,

 

desestetizar o poema: desestetizar os veículos (livros, revistas, jornais)

e ambientes (sala galeria show).

 

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* Ricardo Barberena é professor de Letras (Teoria Literária), com ênfase em Literatura Brasileira Contemporânea, na PUCRS, onde também é diretor do Instituto de Cultura. Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2000), doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005) e pós-doutorado (2009), com trabalho intitulado Paisagens limiares na contemporaneidade brasileira: representações da identidade no Cinema e na Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras (PUCRS), coordena o Grupo de Pesquisa “Limiares Comparatistas e Diásporas Disciplinares: Estudo de Paisagens Identitárias na Contemporaneidade”.


** Vinícius Carneiro é doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS (2015). Tradutor, pesquisador e professor na Universidade de Lille desde 2017, coeditou as obras Das luzes às soleiras: perspectivas críticas na literatura brasileira contemporânea (Luminara, 2014), Guia de Leitura – 100 poetas que você precisa ler (L&PM, 2015) e Cartas de Haroldo de Campos a Inês Oseki-Dépré (Ed. UFRJ, 2022). É membro do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea (Gelbc) da UnB e do Centre d’études en civilisations, langues et lettres étrangères de l’Université de Lille (Cecille). Entre outros, traduziu do francês os textos Lettres à une noire, de Françoise Ega (Todavia, 2021), e Ellis Island, de Georges Perec (Fósforo, 2023). Atualmente, pesquisa sobre a literatura marginal brasileira e o diálogo entre concretismo e Oulipo.

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