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Biografias de Paulo Leminski: escrita de vida

Por Ricardo Corona


É conhecido de alguns que Paulo Leminski manifestou sua vontade de que as quatro biografias que escreveu fossem reunidas em um único volume cujo título ele também antecipou: Vida. Por pouco o poeta não viu seu desejo se realizar. Em 1990, ano seguinte à sua partida, a Sulina publicou-as pela primeira vez e, em 2013, a Companhia das Letras, em tiragem maior e, portanto, destinada a um público mais amplo, colocou em circulação em um único livro as biografias: Matsuó Bashô: a lágrima do peixe (1983), Cruz e Sousa: o negro branco (1983), Jesus a.C. (1984) e Trótski: a paixão segundo a revolução (1986), que, nesta ordem, haviam sido publicadas originalmente em edições individuais pela Brasiliense.


O poeta estava certíssimo. Ler suas biografias uma após a outra, deixa ainda mais perceptível a sua audácia ficcional. Uma radicalidade que é difícil de encontrar em literatura do gênero. Cabe aqui uma rápida observação: Vida merece ser discutido ao lado de certas narrativas biográficas que vêm sendo produzidas na contemporaneidade, as quais se aproximam da novela autobiográfica, da ficção com enxerto biográfico, feita a do mexicano Mario Bellatin, de Biografia ilustrada de Mishima, por exemplo. Guardadas as diferenças, um tipo de narrativa que podemos dizer que Leminski é um dos precursores. Em Vida, a máquina de narrar leminskiana, em calibragem medida para que “verdades”, por um lado, mantivessem-se falíveis aos limites de fundo Histórico, e, por outro, potencializassem-se no processo criativo. Alquimia textual para poucos e investigando sempre no limite que busca afirmar a vida como matéria extraordinária. A vida é gesto em acontecimento e, por vezes, acesso direto à história, e, deste modo, objeto que requer escritas de vida que possam satisfazer a esse rastro que é a vida em seu processo, especialmente quando este é, em si, criativo, inventivo, radical. Incluídos aí, claro, o riso e a desconstrução de si mesmo. “Bios”, do grego, quer dizer “vida”, e “graphein”, “escrever, arranhar”. Em Leminski, a segunda acepção do vocábulo – “arranhar” –, em nada – cogito eu –, pareceu-lhe desconexa. A ideia de rasura é um agudo sentido de inacabamento que expõe a palavra (graphein) à sua vulnerabilidade. Ao narrar estas vidas, entrou em jogo a aproximação e o distanciamento do verbo (verbu). Ou, mais precisamente: do seu referente intelectivo que se supõe imanente por querer registrar a verdade: “dou minha palavra”. A armadilha do verbo sempre está armada, pois sugere a quem escreve que o que se está escrevendo é à vera, ou seja, pra valer, a sério, portanto. Sobretudo em escritas de vida. As biografias escritas por Leminski assumem um pertencimento mais propriamente da literatura, da escrita criativa, ao passo que, maravilhosamente (repito: a vida é um fenômeno extraordinário), não se furtam do acesso à história como entorno destas vidas.


Percebe-se que em Vida, desde o título até a poesia que envolve todas estas vidas, o autor se avizinhou de seus biografados e fez desta zona de vizinhança, ou melhor, destes estratos de vida, uma energia (um devir) para a sua escrita.


Ao lê-las não há como não entrar, por exemplo, nos quatro feelings preparados por Leminski para Cruz e Souza: Sabishisa, spleen, banzo e blues. E no caso de Jesus, o que há é um profeta-poeta de antes da ideia de Cristo. A busca ao vagalume do haikai é a caminhada até Bashô. E Trótski? Este é um personagem de um quase romance policial, além de atuante mor da revolução russa, claro.


Leminski escreveu com extratos biográficos que melhor puderam dizer sobre da radical experiência destas quatro vidas, o que, nas palavras de Manoel Ricardo de Lima, é “pedir providências e apontar como a vida poderia/deveria se manifestar através de uma radicalização política da arte como experiência” (texto de contracapa na edição da Cia. das Letras). E o fez num gesto duplamente amoroso, ou seja, com admiração e ousadia criativa. É que, distraidamente, certo dia Leminski escreveu: “podem ficar com a realidade / esse baixo astral / em que tudo entra pelo cano // eu quero viver de verdade / eu fico com o cinema americano”.

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* Este artigo foi publicado no Estado de S.Paulo, em 13 de dezembro de 2013, com o título “Leminski mostra sua audácia ficcional também nas biografias”.


** Ricardo Corona (1962) é poeta, editor e tradutor. Em 2020, recebeu o prêmio Reconhecimento de Trajetória (1º lugar); o seu livro de haikus Nuvens de bolso, recebeu o prêmio Outras palavras; e, em 2011, seu livro Curare, recebeu o prêmio Petrobras e foi finalista do Jabuti. É autor, entre outros, dos livros Amphibia (Porto, Portugal: Cosmorama, 2009), Curare (SP: Iluminuras, 2011), ¿Ahn? [Abominable Hombre de las Nieves] (Madri, Espanha: Poetas de Cabra Ediciones, 2012, Cuerpo sutil (Santiago de Querétano/México: Calygramma, 2014), Morada do vazio e Nuvens de bolso (SP: Iluminuras, 2023). Traduziu, entre outros, Palavrarmais (Medusa, 2017), da poeta chilena Cecilia Vicuña, e Retrato dos Meidosems, do poeta belga-francês Henri Michaux (Florianópolis-Curitiba: Cultura e Barbárie-Medusa, 2022).

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