Por João Carlos Barbosa Gonçalves

“Canto para Govinda” é a tradução para a língua portuguesa do Gītagovinda, um poema composto em sânscrito no século XII por um poeta que assinou como Jayadeva. Com cerca de trezentas estrofes, a obra traz 24 canções que expressam um diálogo amoroso entre Govinda e Rādhā. Pela história da representação deste poema, sabemos que suas canções estão sendo cantadas desde o século XIV em templos hinduístas e posteriormente no contexto das artes indianas consideradas “clássicas”. Sua herança manuscrita apresenta no início de cada canção indicações rítmicas e melódicas, de acordo com a terminologia e conceitualização da música indiana. O nome original da obra é a soma das palavras “gīta” e “Govinda”. “Gīta” significa “cantado” e “canto”, no sentido de “ato de cantar”. “Govinda” é um nome próprio que remete ao significado de “pastor” ou “chefe dos pastores” e é um dos muitos nomes atribuídos à figura divina que se popularizou muito além da Índia sob o nome Kṛṣṇa/Krishna. Gītagovinda significa “Govinda cantado” ou “Govinda [retratado] em canto”. Ou também “Govinda em poesia cantada”. Sua poesia comporta harmoniosamente o sentimento passional e o sentimento místico.
A pastora Rādhā
A dança de Govinda junto a pastoras é parte do repertório mítico antigo que precede o poema de Jayadeva. Na literatura religiosa conhecida como purânica (do sânscrito Purāṇa), celebra-se essa dança, com episódios que narram as pastoras abandonando seus maridos, filhos e familiares em casa para dançar sensualmente com Govinda.
No “Canto para Govinda”, a presença de Rādhā individualiza a relação passional antes tratada como uma alegoria do amor divino e estabelece, em seus múltiplos planos de significação, outra natureza de relação. Rādhā, enquanto personagem, mostra um Govinda individualizado, com sentimentos humanos que reconhecemos a partir de nossas próprias relações amorosas. Assim, é possível ver um pastor que se apaixona, entristece, pede perdão, sofre a separação, perde as forças, se ilude, deseja e vive de forma intensa tudo o que humanamente vivemos.
Gītagovinda em tradução literária
“Canto para Govinda” é uma tradução realizada entre 2000 e 2006, desde o início com propósito literário. Foi apresentada junto a um estudo do poema, de seu vocabulário e de seu contexto mítico como dissertação de mestrado na FFLCH-USP, sob a orientação do saudoso professor Mário Ferreira. Veio junto ao interesse coletivo por discussões relativas à teoria da tradução, recriação poética, nas vias da linguística e da semiótica. Desde o início, foi caso pensado compor um texto em língua portuguesa com versos metrificados e rimados. Além do campo sonoro, em suas múltiplas propriedades, houve a intenção de reestabelecer os efeitos estéticos da obra original, consideradas as assimetrias inerentes ao ato de tradução. Na falta de simetrias entre as estruturas das línguas, os recursos próprios à língua de chegada foram invocados, entendendo tradução literária como busca incessante por equivalências relativas, e não absolutas. Em meio aos dois polos, da língua sânscrita e da língua portuguesa, o poder de significação do poema nos entrega, a partir da tradição poética do sânscrito, belas analogias e um repertório infalível de figuras nativas de muito interesse para o olhar poético.
Quase vinte anos depois, a tradução retorna revisada com o intuito de ganhar em beleza e fluidez, o que nos pareceu viável fazer sem romper com o tom da primeira tradução. Sendo um poema de cerca de três centenas de estrofes, espero que a graça e a beleza da poesia de Jayadeva possa ser desfrutada.
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