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“Catatau”, os popcretos e a ditadura

Por Paulo de Toledo


A despeito da diferença física entre a monumentalidade do Catatau, romance de Paulo Leminski, e a concisão dos Popcretos, obra verbivocovisual de Augusto de Campos, acreditamos poder observar algumas similaridades de propósitos estéticos e ideológicos entre os dois autores.


Catatau foi escrito entre 1966 e 1975, ano em que foi publicado. Portanto, a gestação da obra leminskiana se deu em plena ditadura militar brasileira, fato este que, a nosso ver, é de fundamental importância para a compreensão da obra máxima de Paulo Leminski, como veremos mais adiante. Devido a seu posicionamento crítico diante do poder autoritário, o Catatau pode ser considerado um “romance de protesto” e não apenas uma obra experimental ou de vanguarda, como usualmente é abordado o livro de Leminski. Porém, diferentemente dos outros romances de protesto escritos no período chamado pós-64, o Catatau se caracteriza por sua linguagem barroca e pela filiação à longa tradição da literatura carnavalizada.


Em dezembro de 1964, Augusto de Campos expôs seus Popcretos na Galeria Atrium, em São Paulo. Popcretos são “expoemas” (como os designou Augusto) construídos com recortes de imagens e textos extraídos de jornais e revistas (procedimento, aliás, semelhante às colagens cubistas). Os títulos dos “expoemas” constantes da exposição foram: “SS”, “O ANTI-RUÍDO”, “GOLDwEATER” e “OLHO POR OLHO”.


Sobre esses poemas, afirmaria Augusto de Campos:


pop em parâmetros concretos: construção,

intencionalidade crítica. qualificar a quantificação.

quantilificar a qualitidade em quantilates. no escolho

da quantidade a qualidade da escolha: o olho.

concreções semânticas.

out-nov 1964

(CAMPOS, 2001, p. 124)



A semelhança mais clara entre as obras em estudo é a combinação de repertório erudito com popular, ou seja, a justaposição carnavalizante de alto e baixo. Gonzalo Aguilar afirma que o concretismo, nos Popcretos, “permanece como elemento configurador (‘-cretos’), mas deve dividir seu lugar com outros estilos (‘pop’)” (AGUILAR, 2005, p. 110).


Contudo, por ora, gostaríamos de chamar a atenção especialmente para um aspecto que une o Catatau e os Popcretos: a crítica ao regime militar.


Antes, porém, é importante observar que o engajamento político da poesia concreta teve início em 1961, quando Décio Pignatari cunhou a expressão “salto participante” e Haroldo de Campos criou o termo “poesia-para”, da qual é exemplo o poema “Servidão de Passagem”, também de 1961. Outros poemas importantes da “fase participante” concretista são “Greve” (1961), de Augusto de Campos, e “estela cubana”, de Décio Pignatari (1962). Esse engajamento, segundo Gonzalo Aguilar, foi motivado principalmente pela Revolução Cubana e pela possibilidade da tomada de poder pela esquerda brasileira.


Sem dúvida, o fato emblemático de todo esse processo foi a Revolução Cubana, que significou, por um lado, a possibilidade de regimes revolucionários nos países latino-americanos e, por outro, a reorganização das posições políticas em função de objetivos mais radicalizados. Diante dessa perspectiva, para muitos escritores o conflito representou um paradoxo de difícil resolução: como responder à sofisticação evolutiva do campo específico e, ao mesmo tempo, dar conta das exigências sociopolíticas (AGUILAR, 2005, p. 88).

 

Esse “paradoxo de difícil resolução” acabou por resultar também nos Popcretos, que, assim como os poemas engajados anteriormente citados (“estela cubana” e “Servidão de passagem”, por exemplo), são realizados por meio dos procedimentos concretistas (espacialização, montagem) e do discurso político antipoder. A diferença entre os Popcretos e aqueles outros poemas é que os primeiros, como dissemos acima, elaboram a mistura do repertório erudito (procedimentos de vanguarda) com o popular (utilização de recortes de jornais e revistas). Ou seja, o popular, o pop, é o grande diferencial dos Popcretos em relação aos poemas engajados da “fase participante” concretista verificada entre 1961 e 1962.


E não seria também uma espécie de Popcreto o poema leminskiano “PARKER”, publicado em Caprichos & relaxos, dentro da seção “Invenções”, seção esta de clara influência concreta?


PARKER

TEXACO

 

ESSO

FORD

 

ADAMS

FABER

 

MELHORAL

SONRISAL


RINSO

LEVER

GESSY


RCE

GE


MOBILOIL

  KOLYNOS

ELECTRIC                

COLGATE

MOTORS


GENERAL


casas pernambucanas

 

(LEMINSKI, 2013, p. 164)


As palavras (nomes das empresas) “coladas” no espaço composicional da folha não teriam o mesmo valor da colagem feita com os olhos das celebridades na peça “OLHO POR OLHO”? Marcas de empresas e olhos de celebridades não seriam os signos de um mesmo capitalismo repressivo e reificador?

 

Sobre o popcreto “OLHO POR OLHO”, afirma Augusto de Campos:


OLHO POR OLHO: ou a olhos vistos. ou, de novo, “questo visibile parlare” (dante). ou “ver com olhos livres” (oswald). videograma pop. revistas re-vistas. stars, starlets, políticos, poetas, uma onça preta, pignatari (décio), o uirapuru, pelé, sousândrade, aves, faróis, a máquina de lavar, sinais de tráfego. olhos. metamorfoses. bocas. a boca (dente por dente) de BB. uma babel do olho. haroldo batizou: BABOEIL (CAMPOS, 2001, p. 123).


No alto do poema (ou “expoema”), identificamos sinais de trânsito: “à esquerda, tráfego proibido; no centro, siga em frente; à direita, direção única à direita; e no vértice superior, termo da viagem, sinal geral de perigo” (CAMPOS, 1978, p. 86). A crítica ao regime de exceção aqui é, para quem tem olhos para ver, muito clara: a “direita” representa o governo ditatorial e a esquerda (proibida, cassada, perseguida) é a oposição ao Estado de exceção. Aqui o humor e a ironia são elementos importantes na composição da peça, o que não era muito comum nas obras de Augusto e Campos anteriores aos Popcretos, a não ser algumas raras exceções, como o poema “Luxo”, de 1965, e “Bestiário para fagote e esôfago”, de 1955.


A respeito do humor em “OLHO POR OLHO”, Kenneth David Jackson escreve em seu ensaio “Augusto de Campos e o trompe-l’oeil da poesia concreta”:


O humor e a paródia à cultura popular surgem às escondidas, na medida em que o leitor comece a identificar os não-olhos colocados entre os olhos: farol de carro, unha, mexilhão, estátua de profeta, estátua de Juscelino, lavadeira Westinghouse. A colagem é carnavalizada, através de máscaras que, paradoxalmente, “escondem” abertamente sua identidade não-olho, numa paródia da “leitura” do corpo, aqui carnavalizada (apud SÜSSEKIND, 2004, p. 14).


Outro Popcreto que produz um discurso “verbivocovisual” muito claro de crítica e de denúncia ao governo militar é “PSIU!”, de 1966. Nele, podemos distinguir palavras relacionadas ao contexto histórico brasileiro, tais como “ato 13”, “bomba”, “livre”, “revolução”, “dura”, “paz”, “vamos falar”, entre outras. E, no centro do poema, identificamos as imagens de uma boca e um dedo indicador expressando um pedido (ordem?) de silêncio. Silêncio que, durante o regime militar, significava censura e opressão.


Reproduzimos, a seguir, uma nota de rodapé do livro Poesia concreta brasileira, em que Gonzalo Aguilar fornece importantes informações sobre “PSIU!”:


O [ato] número 13, segundo o depoimento de Augusto de Campos, alegoriza a infelicidade da situação brasileira dessa época. A frase “Saber Viver, Saber ser preso, Saber ser Solto” pertence a Miguel Arraes, governador de Pernambuco e incentivador das Ligas Camponesas do Nordeste, preso em 1964. Libertado em 1965 por um habeas corpus, exilou-se na Argélia (AGUILAR, 2005, p. 110).


Em “PSIU!”, podemos igualmente observar a utilização do humor em frases como “TUDO MAIS BARATO” e “SEM ENTRADA”. Essas frases, típicas de anúncios publicitários, misturadas às outras já citadas e que indicariam a opressão do regime, sugerem-nos a crítica do poeta à alienação provocada pelo Capital, que, por sua vez, seria um dos sustentáculos do governo autoritário brasileiro. Sobre essa relação entre o poder do Capital e o governo militar, Elio Gaspari revela o exemplar episódio da criação da Operação Bandeirante (Oban), departamento militar de repressão e tortura, para a qual o empresariado paulista fez generosas contribuições:


Na Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe. A Ford e a Volkswagen forneciam carros, a Ultragás emprestava caminhões, e a Supergel abastecia a carceragem da rua Tutóia com refeições congeladas. Segundo Paulo Egydio Martins, que em 1974 assumiria o governo de São Paulo, “àquela época, levando- se em conta o clima, pode-se afirmar que todos os grandes grupos comerciais e industriais do Estado contribuíram para o início da Oban” (GASPARI, 2002, p. 62).


Interessante lembrar que “FORD” é um dos vocábulos que compõem o poema “PARKER” e é muito provável que outras empresas citadas no poema leminskiano também tenham dado sua contribuição para o “quepe” da repressão militar paulista.


O Catatau, tal qual os Popcretos, também produz uma crítica ao regime de exceção. A truculenta ditadura, no Catatau, é mostrada pelo que há nela de risível, de ridículo e, para tanto, Leminski usa de todo um arsenal tipicamente carnavalesco: paródias, degradações, trocadilhos, inversões, satirizações etc.


Vejamos alguns exemplos dentre os muitos encontrados.


Bombas relógio, emissas intra geneticam catenam a explodir a seu bel prazo produzindo mudas: traga o afilhado da Fortuna! E traga fazendo continência! (LEMINSKI, 1989, p. 127).

 

Neste trecho, retrata-se o período militar e a violência da tortura. Porém, o horror produzido pelo regime é ridicularizado pelo efeito cômico sugerido pela cena de um torturado (“afilhado da Fortuna”, que, por sua vez, sugere a expressão de baixo calão "filho da puta") sendo levado a um militar/policial e este exigindo que o torturado venha “fazendo continência”.


A utopia e a noção de “tempo alegre”, também características da concepção carnavalesca da realidade, aparecem no Catatau como mais uma das formas de combate ao governo repressor:


Um dia isto será apenas capítulo na história da repressão escrita numa catacumba das cidades futuras por netos, de renato não feitos, recebendo todo esse eco. O cão do lado de cada palavreado isca os pêlos do pegador de arrepio, pau de sebo onde ninguém sobe de surpresa (LEMINSKI, 1989, p. 128).


Aqui o “pau de sebo onde ninguém sobe de surpresa” sugere o pau-de-arara, hediondo instrumento de tortura muito utilizado no período da repressão militar. E o “tempo alegre” é caracterizado pelo “Um dia” que inicia a primeira frase, sugerindo que a repressão da ditadura “um dia” será apenas mais uma história (que saiu por uma porta) para ser contada a nossos netos.

Afirma Bakhtin:

 

Com todas as suas imagens, cenas, obscenidades, imprecações afirmativas, o carnaval representa o drama da imortalidade e da indestrutibilidade do povo. Nesse universo, a sensação da imortalidade do povo associa-se à de relatividade do poder existente e da verdade dominante (BAKHTIN, 1996, p. 223).


Em outros momentos, Leminski desenvolve, por meio de uma linguagem intencionalmente redundante (porém altamente inventiva), o horror dos intermináveis inquéritos policialescos:


Inquérito, fagulha inquieta: ver. (...) Pelos poros, procurando um porão para passar, e pelo muito que lhe perguntam respondeu que sim afirmativamente dando a entender por sons e ademanes que tal ato praticara e por mais não dizer foi-lhe perguntado e quantas vezes e ele respondeu também por sons e ademanes que não sabia dizer ao certo quantas vezes tal ato praticara e assim o entendemos todos que não sabia quantas vezes tal ato praticara e sabia que tal ato praticara pois com palavras e ademanes respondera que sim e afirmativamente e disse sim e não negou negativamente mas declarou ter tal ato praticado e não sabia quantas vezes e respondeu sim positivamente e assim o entendemos todos pelo muito claro de seus sons e ademanes (LEMINSKI, 1989, p. 133).


O “aporismo” (referência a Drummond?) do interrogado (“procurando um porão”: porão = poro grande), que, preso num dos “porões da ditadura”, procura escapar do torturante interrogatório, afirmando qualquer coisa que lhe ordenarem, é construído por meio de uma narrativa que gira em torno de si mesma, altamente redundante em seu léxico e sintaxe, que mimetiza o tautológico discurso do torturado na sua quase loucura.


As sessões de tortura são tratadas outra vez com humor carnavalesco, como no trecho a seguir: “Maltratado que nem cavalo de exu, apanha mais que cachorro de bugre, mais bem apanhado que arara caída do pau!” (LEMINSKI, 1989, p. 134).


O pau-de-arara é identificado, nesse trecho, mais explicitamente (“arara caída do pau!”). Já o humor é conseguido por meio da criação de imagens absurdas contendo animais sendo maltratados (“cavalo de exu”, “cachorro de bugre” e “arara”), numa linguagem que soa o falar do povo em dia de feira ou em pleno carnaval. A tortura, máquina repressiva, é desmontada pelo humor, pela eterna inventividade provinda do povo e de seu riso poderosamente subversivo.


O “tema” da tortura surge mais uma vez, no excerto seguinte, construído com uma linguagem franca, próxima da linguagem oral, desobediente das convenções e etiquetas verbais, além de carregada de humor: “Me enfiam um trabuco goelas abaixo, confesso tudo e ainda reclamam do sotaque!” (LEMINSKI, 1989, p. 156).


Novamente, no trecho seguinte, a violência da ditadura é tratada de forma cômica: “Uma das especialidades da nossa cozinha local é a mais deslavada ausência de tempero: pau, e pau lhe damos, quebrou, pagou!” (LEMINSKI, 1989, p. 184). Nossa “cozinha local”, com seu destempero típico, é revelada em toda a sua truculência no trecho citado, no qual a linguagem, próxima do registro oral e cheia de vocábulos gírios, remete-nos ao falar das ruas, onde Paulo Leminski foi buscar os ingredientes para o seu macarrônico Catatau.


Catatau e Popcretos são produto de um momento histórico brasileiro em que conviveram repressão política e modernização econômica, censura e liberação sexual, nacionalismo e importação de cultura pop (especialmente a norte-americana). Se a poesia concreta, como todo movimento de vanguarda, necessitava de um “horizonte utópico” que unisse seus participantes em torno de um projeto estético comum, Catatau e Popcretos acreditamos ser, para usar um termo caro a Haroldo de Campos, pós-utópicos. Depois do golpe militar de 1964 e do AI-5, a possibilidade da criação de um Brasil civilizado e socialmente justo – almejado pelo pensamento progressista – parecia um sonho que acabou (“the dream is over”, diria John Lennon). Restava aos poetas e escritores, como Paulo Leminski e Augusto de Campos, o “princípio-realidade”:


Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica. Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. Ao príncipio-esperança, voltado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundamento ancorado no presente (CAMPOS, 1997, p. 268).


E, com os pés fincados no presente, Augusto e Leminski (e tantos outros) combateram o regime autoritário com amor (pela liberdade) e humor (contra a seriedade do tipo “Tradição, Família e Propriedade”), criando obras que, até hoje, devem ser consideradas grandes exemplos de subversão estética e política.


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* Este artigo é uma adaptação de trechos da nossa dissertação de mestrado denominada “Catatau: um ‘romance de protesto’ barroco e carnavalizado”.

 

* Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Publicou os livros de poemas Torrão e outros poemas, A rubrica do inventor e 51 Mendicantos, assim como Eu.E.Cummings, com traduções do poeta norte-americano.


Referências


AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2005.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Edunb, 1996.

CAMPOS, Augusto de. Viva Vaia. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2001.

CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LEMINSKI, Paulo. Catatau. Porto Alegre: Sulina, 1989.

LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SÜSSEKIND, Flora; GUIMARÃES, Júlio Castañon (org.). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras; Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004.

 


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