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Distraidamente, Leminski

Por Danilo Bueno


Reler Distraídos venceremos (1987), do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989), com mais de trinta e cinco anos da primeira leitura, e das leituras subsequentes da juventude, continua uma experiência transformadora, que mesmo do alto de sua elaboração e fineza formal, consegue colocar em primeiro plano a emoção poética mais direta, capaz de captar uma variada gama de leitores, tarefa sabidamente árdua para um poeta.


Desde o título, Distraídos venceremos constrói, por meio da ironia, sutilezas contra o óbvio e a rotina que enrijecem a visão poética da vida. O poema de abertura “Aviso aos náufragos” termina com a potente pergunta retórica, cheia de oralidade: “Não é assim que é a vida?”, que eleva para além do uso cotidiano a percepção de vivenciar a poesia: “nasceu para ser última/ a que não nasceu ainda”.   


Esse poema inicial ressoa no arquicitado início de “Incenso fosse música”: “isso de querer / ser exatamente aquilo / que a gente é / ainda vai / nos levar além”. Neste passo, a voz do poema registra a autenticidade primordial do ser humano como chave para o sentido da vida, em uma resposta bem-humorada para os mistérios da transcendência, resposta essa que não deixa de ser também mais um enigma, como toda grande poesia.  


As múltiplas influências do poeta, entre o oriental e o ocidental, e entre o erudito e o popular, estão sintetizadas nesse livro-testamento, que ao mesmo tempo funciona como a coroação de uma trajetória e uma abertura para o futuro. Em outras palavras, o balanço da obra publicada em vida dá a dimensão da grandeza de Leminski, poeta que soube dialogar com o Concretismo, com a poesia marginal e com os acenos que os anos de 1980 permitiam. Em Distraídos venceremos é possível encontrar vertentes do que melhor se pensou em poesia no século XXI, seja no epigonismo mais escrachado, seja no pensamento mais cuidado de toda a herança do poeta curitibano.


Mesmo a metalinguagem, uma espécie de veio central da melhor e da pior poesia brasileira publicada dos anos de 1990 até hoje, em Distraídos venceremos ela é sempre leve, despretensiosa, sem colocar o poema como acontecimento “divinal” da “inteligência” suprema do poeta. O poema como assunto da poesia é tratado nesses termos:


Plena pausa

 

Lugar onde se faz

o que já foi feito,

branco da página,

soma de todos os textos,

foi-se o tempo

quando, escrevendo,

era preciso

uma folha isenta.

 

Nenhuma página

jamais foi limpa.

Mesmo a mais Saara,

ártica, significa.

Nunca houve isso,

uma página em branco.

No fundo, todas gritam,

pálidas de tanto.

 

A percepção de que a memória literária, como arte velha, de milênios, nunca poderia ter uma página em branco, pois toda a tradição pesa sobre as escolhas do poeta. Não existe poema “limpo” ou “isento”, pois todos são escritos a partir da memória de outros seres humanos. Ou seja, a poesia (ou seria a revolução?) será feita por todos.


A forma como Leminski aborda o tempo e a memória, capturando momentos efêmeros, ora refletindo sobre a passagem do tempo, ora consagrando a vida, por meio do diálogo com a forma poética do haicai, no fechamento do volume, mostra como, mesmo ao transitar por uma tradição diversa, sua expressividade não descamba; longe de qualquer artificialismo, ele escreve versos que hoje muitos poetas e admiradores de poesia sabem de cor, citados e recitados pelas mais variadas pessoas. Desse modo, em Leminski, a aproximação ao haicai vira conseguimento popular, meio próprio para o poder de maravilhamento, como nesta beleza: “enfim/ nu,/ como vim”.


Outro aspecto relevante é o domínio pleno da musicalidade, marca inconfundível da obra de Leminski, cheia de ritmo, sonoridade e cadência, características que refletem sua vivência com a música. Seus poemas muitas vezes se assemelham a canções, com versos que reverberam e ecoam na mente do leitor. A tarefa de ser um poeta que funciona no “papel” e no assobio, é para poucos. Em Leminski, o sofisticado nunca sobrepõe o vivido e o revivido. Se há muito trabalho em seus poemas, muita reescrita, dez anos para um bom poema, há, sobretudo, a irmandade com o leitor, e a generosidade na partilha de se gastar uma década em um refrão cantarolado pela rua.


A irreverência e o humor são formas poderosas de resistência e de subversão. Não é possível ser um grande poeta que não saiba rir ou dançar. Essa ideia, cara à Friedrich Nietzsche (1844-1900), ganha em Distraídos venceremos contornos programáticos, seja pelo impactante “Merda e ouro”, seja pela profunda percepção do que é o ser humano, capaz de “transformar amor em nada”. Se o humor advém de um primeiro modernismo radical dos anos de 1920, o contexto do Concretismo e da Tropicália colocam Leminski em uma zona múltipla entre tendências e possibilidades, que ele soube arquitetar com maestria e desenvoltura. Na obra do poeta curitibano, as influências não são pesadelos, mas formas de viver a poesia. Isso, como se sabe, é o signo da generosidade: conversar com todos os irmãos e irmãs de forma horizontal e polivalente.


O legado de Paulo Leminski é vasto e multifacetado e a cada ano está em expansão. Distraídos venceremos é uma obra que modula muitas das qualidades que o tornaram uma referência incontornável, que merece ser (re)lido e fruído, pensado e repensado. É destino das obras de relevo o leitor futuro, que trarão novos olhares e leituras. A obra do poeta curitibano poderá, então, mostrar toda a sua amplitude, em um tempo feito de muitos tempos, em que todos os filhos serão nossos filhos, em que toda a herança será também a herança de todos.

 

São Paulo, agosto de 2024

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* Danilo Bueno é poeta e crítico literário, autor de Para viver automaticamente e Sete e meio ou Waterloo. É graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (2004) e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).

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