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Duas palavras por "Giacomo Joyce"

Por Luis Henrique Garcia Ferreira


Giacomo Joyce, que é um gracioso prelúdio do que se “ouveria” nas aclamadas obras joyceanas “maiores”, só veio à luz editorial após a morte de seu autor, o modernista irlandês James Joyce (1882-1941). Foi escrito em Trieste, possivelmente entre 1911 e 1914 (ELLMANN in JOYCE, 1985, p. 10), colocando-se como uma espécie de liame entre a concepção de Um retrato do artista quando jovem (1916) e de Ulisses (1922), livros que, inclusive, utilizam trechos e ideias de Giacomo Joyce. Como diz Paulo Leminski (1944-1989), “quando o escreveu, Joyce, terminando o Retrato e grávido do Ulisses, já era, visivelmente, um dos maiores escritores da Europa” (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 92). Sua primeira publicação ocorreu em 1968, pela Faber and Faber. Ambientado na cosmopolita cidade italiana de Trieste, o manuscrito de 16 páginas possui explícito caráter autobiográfico, como já se nota na primeira parte do título, Giacomo, que é italianização de Joyce. O enredo versa, reversa e controversa sobre os platônicos sentimentos proibidos do professor Joyce – um endividado homem casado, que vive uma crise existencial com a perda da juventude – por sua jovem aluna Amalia Poper, uma judia triestina de família abastada.

 

Leminski define o livro como “uma novela, cinematográfica, ideogrâmica, como uma peça Nô, feita de flashes, um grande poema de amor, uma vertigem vista de soslaio” (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 94). Os versos são escritos de forma livre e dispostos no branco da página à moda mallarmaica. Dessa forma, remetem o leitor à imagem de uma partitura e o convidam à vocalização do poema, se é que podemos chamar a mestiçagem proso-poética de Giacomo Joyce (apenas) de poema.

 

A obra, embora curta, encapsula aforisticamente ideias e frases que são potencializadas em Um retrato, Ulisses e Finnegans wake. Situando Giacomo Joyce no corpus joyceano, Leminski faz a síntese abaixo:

 

Os Dublinenses: a Irlanda, vista do lado de fora.

Retrato do Artista: a Irlanda, vista de dentro.

Ulysses: entrechoque entre o fora e o dentro, monólogo interior, o Dia, a História.

Finnegans Wake: síntese dialética entre o fora e o dentro, pura linguagem, a Noite, o Sonho.

Na triunfal cavalgada das valquírias dessas quatro obras-primas, Giacomo Joyce faz às vezes, talvez, de um filho bastardo, fruto de um prazer furtivo, de um amor clandestino, de um erro da juventude, de uma fantasia erótica (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 92).

 

Assim, há um lirismo carregado por uma forte carga sexual, como vemos em praticamente todos os livros joyceanos. Também há temas recorrentes das outras obras, como o desejo por mulheres mais novas, o judaísmo, o vazio desejante e existencial, a animalização de personagens, o pecado, o sentimento de culpa etc. Não obstante, já estão presentes recursos estilísticos característicos de Joyce, como o trocadilho, o multilinguismo, o neologismo, o autobiografismo, a simultaneidade significante e a sinestesia verbivocovisual (FW, 341.19). De acordo com “o bandido que sabia latim”, um dos apelidos de Leminski, também se nota em Giacomo Joyce “o surgimento dos germes do monólogo interior, a técnica central do Ulysses e uma das grandes conquistas da ficção do século XX” (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 93).

 

Se a totalidade da obra de Joyce pode ser entendida como uma grande música (WEAVER, 1998), da qual Giacomo Joyce seria o prelúdio, é possível tomar o tradutor como instrumento e, ao mesmo tempo, como intérprete responsável por executar e transcriar essa musiscritura nos timbres da sua língua. E foi o que fez o multifacetado escritor e “traduautor” paranaense em sua tradução, o qual afirmou que

 

Pelo insuperável domínio dos poderes de som e sentido da língua em que escreve: a máquina material com que se expressa a alma de James Joyce só tem paralelo nos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski (...) (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 90).

 

Em 1985, a Editora Brasiliense publicou uma tradução integral de Giacomo Joyce para o português brasileiro, assinada pelo joyceano autor de Catatau (1975), que também escreveu notas ao longo da tradução e um breve posfácio intitulado “Investigando a vida de um texto bastardo”, o qual começa com a frase “Joyce é o maior prosador do século XX” (op. cit., p. 89). A edição bilíngue de pouco menos de 100 páginas trouxe, além da reprodução fac-símile dos manuscritos, uma detalhada introdução de Richard Ellmann (1918-1987), também presente na edição original de 1968, orelhas assinadas por Haroldo de Campos (1929-2003) e capa de Takashi Fukushima (1920-2001).


Bem recebida por público e crítica, a tradução ganhou elogios, como exemplifica o comentário de Antônio Houaiss (1915-1999), primeiro tradutor de Ulisses, feito na Folha de S.Paulo pouco depois da publicação da Editora Brasiliense: “texto destinado ao frêmito, à emoção, a fundas concupiscências interiores, é texto que dá prazer à vida pois dá prazer de ler: o que se logra, aqui, no original e na tradução” (HOUAISS in VAZ, 2001, p. 300).

 

À época, Leminski comentou: “é a primeira vez que o texto está sendo traduzido para o português” (LEMINSKI, 1986, p. 20). Todavia, fragmentos de Giacomo Joyce já haviam sido traduzidos por A. M. Goldberger para o livro Joyce e o romance moderno, publicado em 1969 pela Editora Documentos. Ainda assim, a tradução do “caboclo polaco-paranaense”, juntamente com a de José Antônio Arantes, está na vanguarda das traduções integrais, conforme a linha do tempo a seguir.

 

Linha do tempo das traduções de Giacomo Joyce para o português brasileiro



 

Na tradução, Leminski se manteve fiel ao original, sem apagar o sutil multilinguismo materializado em 6 línguas além do inglês: italiano, dialeto triestino, latim, inglês medieval e francês. Todavia, ele não hesitou em transcriar sempre que o trecho lhe permitiu, como pode ser visto em “tartaruguiforme” (JOYCE, 1985, p. 30) e em “exaustisábia” (op. cit., p. 36), criando interessantes neologismos no português brasileiro para as palavras-valise testudform (op. cit., 74) e wisdom-wearied (op. cit., 80), respectivamente. Suas notas também mostram que ele estava atento à ambiguidade visceral da escrita joyceana, o que pode ser observado pela sua análise do seguinte excerto tradutório.

 

Original

Tradução de Leminski

Eve, peace, the dusk of wonder… Hillo! Ostler! Hilloho! (JOYCE, 1985, p. 64, grifo meu).

Eva, paz, a neblina do espanto... Hillô! Cavalariço! Hillohô! (JOYCE, 1985, p. 25, grifo meu).

 Fonte: Elaboração do próprio autor (2024).

 

Na nota deste verso, Leminski comenta: “‘Eve’, em inglês, ‘véspera’ e ‘Eva’, nome próprio, ambiguidade típica de Joyce” (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 25). Ao escolher traduzir “Eve” por “Eva”, o “faixa preta da palavra” manteve a referência religiosa “Eva”, mas perdeu o significante temporal “véspera”. Assim, mesmo sendo um judoca dos bons, ele tomou um waza-ari do ambíguo Joyce e, como qualquer tradutor do irlandês, teve que lidar com perdas referenciais.

 

Como bom joyceano, o “catatauense” ficou de olhos e ouvidos bem abertos à poetaria de Giacomo Joyce e manteve os trocadilhos sexuais, o que fica claro no último aforismo proso-poético do livro, como consta na tabela a seguir.

 

Original

Tradução de Leminski

Unreadiness. A bare apartment. Torbid daylight. A long black piano: coffin of music. Poised on its edge a woman’s hat, red-flowered, and umbrella, furled. Her arms: a casque, gules, and blunt spear on a field, sable.

 

Envoy: Love me, love my umbrella (JOYCE, 1985, p. 83).

Despreparo. Um apartamento nu. Nojenta luz do dia. Um grande piano preto: túmulo da música. Equilibrado em sua borda um chapéu de mulher, com flores vermelhas, o guarda-chuva, fechado. Seu brasão: capacete, escarlate, e lança sem ponta sobre um fundo, preto.

 

Dedicatória: Me ame, ame meu guarda-chuva (JOYCE, 1985, p. 40).

Fonte: Elaboração do próprio autor (2024).

 

A respeito desse trecho, o “samurai malandro” comenta que a escrita é composta por uma

 

Linguagem heráldica, com signos mortos, que Joyce fecha, melancolicamente, sua história de um amor impossível. A partir do trocadilho “her arms”, ao mesmo, tempo, “seus braços”, e “seu brasão”, “suas armas”, Giacomo desenha um cômico brasão de armas, carregado de significados sexuais: o capacete vermelho, uma metáfora da glande, a lança de ponta quebrada, um símbolo fálico evidente, o hieróglifo de um tesão para sempre frustrado (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 40).

 

Na mesma nota, o “polaco loco paca” faz observações sobre a trocadilhesca ambiguidade plurililíngue do trecho, comentando que


No inglês medieval da linguagem heráldica, “gules” é a cor vermelha no esmalte dos brasões (em português, “goles”) e “sable”, o preto (embora eu desconfie que aqui, Joyce joga também com o francês “sable”, “areia”, expressando assim a esterilidade do seu “affair”. Com o polilíngue Joyce, nunca se “sable”... (LEMINSKI in JOYCE, 1985, p. 40).


Tradutor de diversos autores, como os experimentalistas Beckett e Ionesco, em 1988 Leminski se aventurou em uma selva de ambiguidades joyceanas ainda mais densa do que Giacomo Joyce, traduzindo um fragmento de outra obra do escritor irlandês, Finnegans Wake, uma complexa musiscritura de trocadilhos plurilíngues. Para o “polilíngue paroquiano cósmico”, “Finnegans wake (O despertar de Finnegans) é a mais alta realização literária deste século! talvez de todos os séculos” (LEMINSKI, 2010).

 

Leitor e tradutor de Joyce, Leminski contribuiu para a divulgação e o enriquecimento de sua obra no português brasileiro. Na mão dupla dessa via, ou desse “vicus of recirculation” (FW, 03.02), ele foi poroso à influência do irlandês, principalmente de Finnegans Wake, no denso fluxo de palavras-valise que é o Catatau. Ao ler as obras plurais dos dois escritores, uma das raras certezas que se pode ter é a de que elas não se fecham e, pela potência da forma e por suas ambiguidades latentes, mantêm-se abertas a uma rizomática construção em comum de leitores e tradutores.


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* Luis Henrique Garcia Ferreira é graduado em Jornalismo pela PUC-Campinas (2003), Mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Coletivo Finnegans Wake, no qual foi tradutor de dois capítulos de Finnegans Rivolta, vencedor do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Tradução.


Referências

 

JOYCE, James. Giacomo Joyce. Introduction and notes by Richard Ellmann. Londres: Faber and Faber, 1968.

 

______. Giacomo Joyce. Tradução de A. M. Goldberger. In: BUTOR, Michel; SVEVO, Italo; ECO, Umberto et al. Joyce e o romance moderno. São Paulo: Documentos, 1969. p. 87-91.

 

______. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

 

_____. Giacomo Joyce. Tradução e introdução de Paulo Leminski. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

_____. Giacomo Joyce. Tradução, notas e introdução de José Antonio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 1999.

 

______. Finnegans Wake. Londres: Wordsworth, 2012.

 

_____. Giacomo Joyce. In: JOYCE, James. Finn’s Hotel. Trad. Caetano Waldrigues Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 131-153.

 

_____. Giacomo Joyce. Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho. São Paulo: Lumme, 2015.

 

______. Um retrato do artista quando jovem. Tradução de Caetano Waldrigues Galindo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.

 

LEMINSKI, Paulo. O Leminski de Curitiba, a Curitiba de Leminski. Correio de Notícias. Programe-se, 19 set. 1986, p. 20.

 

______. Joyce Finnegans Wake. Scientia Traductionis, n. 8, 2010 (observação: publicado inicialmente em 12 de junho de 1988 em Nicolau).

 

______. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2011.

 

VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.

 

WEAVER, Jack W. Joyce’s music and noise: Theme und variation in his writings. Flórida: Editora da Universidade de Flórida, 1998.

 


 

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