Por Oscar Cesarotto e Samuel Leon
A verve ímpar do argentino Néstor Perlongher pretendia operar uma subversão do sentido da linguagem, criando o cenário de uma poética abjeta que corroesse o uso trivial da palavra. A empreitada superou todas as expectativas.
Dizer que alguém é produto da sua época pode parecer evidente, embora inescapável. Nos anos 1960, especificamente, “a experiência” dava o tom do ser-no-mundo; embora alguns se poupassem, muitos eram os que ousavam, provando desafios inéditos para revolucionar a própria vida e, de quebra, mudar a sociedade. Foi por isso que Che Guevara, eternizado como uma figura paradigmática, pagou com sua existência a intensidade de um desejo indômito, longe da prudência ou da sensatez dos que nada arriscam e se mantêm distantes, bem cuidados, porém covardes e/ou entediados.
Salvando as diferenças, outro que o destino levou para fora da sua terra, Perlongher, também era afoito e audacioso, tanto no plano pessoal quanto na escrita, fosse ela poética ou engajada. Longe das abstrações e das burocracias, soube ser um intelectual comprometido com as situações do cotidiano, daqueles capazes de refletir no calor do conflito, para teorizar só depois. Sua bagagem contracultural incluía as autocríticas da esquerda após a Revolução Cubana, o espontaneísmo de Maio de 1968, e ainda o hippismo e as vivências estético-vitais daqueles tempos.
Todas estas leituras da realidade indiciavam a política e os políticos no banco dos réus, assim como o papel do artista, a partir do momento em que ficou impossível pensar a prática sem fazer parte da linha de frente, botando o binômio corpo-ideia onde antes se colocava apenas a última. A consequência foi uma passagem à ação direta, atitude jamais isenta de risco.
Como a sua opção sexual nunca foi nem privada nem vergonhosa, apregoou-a, chegando a participar com brio de uma Frente de Libertação Homossexual, inviável na Argentina dos anos de chumbo. Nem direita nem esquerda admitiam semelhante erotização do compromisso político. O segredo vivido atrás das portas, agora nas ruas, contaminava o espaço social. A exposição pública daquela sexualidade “degenerada”, inscrita assim na práxis partidária que, ingenuamente, dividia o mundo em bons e maus, era uma bomba de efeito moral sempre prestes a explodir. O discurso bem-pensante ficava esvaziado, quando confrontado com os fluxos desejantes.
Ao mesmo tempo, e desde muito cedo, Perlongher dedicou-se à literatura, sob a forma versificada do desconcerto. Com o passar dos anos, vários livros seus foram publicados, e a fama de poeta lhe trouxe projeção no mundo hispanofalante. O primeiro foi Áustria-Hungria, em 1980. Depois viriam Alambres, Hule, Parque Lezama, Águas Aéreas; Chorreo de las Iluminaciones e Lamê — antologia brasileira com excelente tradução de Josely Vianna Baptista. As duas últimas foram editadas post-mortem.
A maior parte de sua obra poética foi escrita no Brasil, exclusivamente em castelhano, e disseminada, de início, em Buenos Aires. O impacto provocado pela sua lírica causou espécie e admiração, ganhando, de imediato, inúmeros admiradores, além de críticas exultantes. Nela, como não poderia deixar de ser, poesia e vida estão fusionadas, numa opção radical de imersão no pantanoso terreno da linguagem.
Contra uma certa intencionalidade discursiva, em que o referente teria por função informar, o gesto de Perlongher pretendia fazer desfazendo, torcendo, retorcendo, e contorcendo as palavras até elas produzirem os efeitos multiplicadores de uma transformação total, tendo como meta o orifício de engate com o próprio sujeito da escrita. De certa maneira, era tributário das propostas do grupo reunido em torno da revista Literal, no início dos anos 1970, onde conhecera a Osvaldo Lamborghini e seu original passeio pela temática “gauchesca” — gênero em desuso — de quem, provavelmente, incorporou os anacronismos que deliciavam sua verbigraça.
Assim, habitavam sua poesia inúmeros termos perimidos e obsoletos que, na torção mencionada, funcionam como uma memória destinada a desenferrujar a língua, cada vez mais entregue aos usos triviais da comunicação. Um uso gregário do significante, em que o humor que esses restos de fala coloquial provocam, traz a lembrança de uma sedução já acontecida, agora proliferando como gozosa deriva.
Hoje, três décadas depois, quando as tendências conservadoras se consolidam, e não só na literatura, seu texto parece atual como nunca, devassando ao discurso não por falta, e sim por excesso. Uma exuberância que traz, desde Áustria-Hungria, a plena dissolução do sentido comum, obtendo dos seus tropos internos e de sua vazão o cenário metafórico de uma poética desbragada.
Como lógico corolário, foi reconhecido com o Prêmio Boris Vian em 1987, consagração oferecida por seus pares em Buenos Aires. Mais tarde, lhe seria outorgada a cobiçada Bolsa Guggenheim. Todavia, o que dizer sobre seu estilo? Nunca poderia ser esquecida a denominação que seu autor lhe dera, neobarroso. Isto é, tributário do barroco hispano-americano, na herança impoluta do cubano Lezama Lima, mas atualizado, amaciado e miscigenado “por las aguas lamacientas del Plata, chirles, chulas y cholas”.
O preciosismo literário permitiu que Perlongher misturasse o bairro e o barro, o profano linguajar do dia a dia e suas fruições escusas com as baixarias das altas culturas. Nas escâncaras de um talento arteiro e impagável, gostava de debochar de qualquer parnasianismo com bom gosto e picardia. Produzida em um vernáculo intimista, parecia impraticável, para sua lavra, qualquer tentativa de tradução. Contudo, acabou vertido para o português, primeiro na antologia Caribe transplatino: Poesia neobarroca cubana e rioplatense (Editora Iluminuras), que ele organizara em 1991, e mais tarde, em Lamê, edição póstuma de homenagem prestada pela Unicamp.
Sim, porque Perlongher, além de versero, era também professor de antropologia na citada universidade. Seu trabalho de conclusão de mestrado, lançado mais tarde com o título de O negócio do michê (Editora Brasiliense), dava conta de uma pesquisa de campo na área dos devires urbanos, abordando um território até então nunca explorado de forma sistemática, e menos ainda teorizado: a prostituição viril em São Paulo. Ali, invertendo o paradigma acadêmico de não se entregar a seu objeto de estudo, a investigação tinha como palco seu próprio corpo, na inserção da agudeza das observações in loco.
Pouco depois, nos primeiros tempos do flagelo, escreveu um livro de divulgação sobre a Aids, documentado e didático, que resultaria fatalmente profético. Simultaneamente, costumava publicar artigos em jornais e revistas, nacionais e longínquas, sobre os assuntos que lhe concerniam, ou seja, a poesia e as políticas do desejo.
Perto do final da vida, sua curiosidade, sempre mais materialista do que mística, o aproximou de uma seita que cultua um poderoso e santo vegetal para abrir as portas da percepção e trazer nova inspiração. O saldo dessa aventura foi Águas Aéreas, culminando seu conluio com as musas. A mesma questão, vista da perspectiva do êxtase, teria sido seu tema de doutoramento, mas a Parca, inapelável, ceifou sua carreira.
Há trinta anos da sua morte, Néstor é lembrado com carinho por aqueles que alguma vez o conheceram lépido, fagueiro e provocador. Enquanto isso, seus leitores latino-americanos, cada vez mais numerosos, acabam descobrindo nos seus livros um tesouro escondido a céu aberto. Se, no país de origem, continua a ser considerado exclusivamente um poeta, por estas bandas, foi como antropólogo que obteve notoriedade. Em paralelo, Evita vive e outras prosas (Editora Iluminuras, 2001; segunda edição, 2022), junto com Lamê, indicam a presença do autor nas letras brasileiras, permitindo que os leitores do vernáculo também fiquem extasiados com “o pretíssimo azeviche onde trinam as latrinas, entre vaporosas dobras e borlas em flor, para o desespero fulo de um marinheiro só. Abur”.
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