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EVOCANDO HAROLDO, MAIS UMA VEZ

Por Carlos Ávila


Sobre Haroldo de Campos já dei um depoimento anterior, inserido no volume Signâncias: reflexões sobre Haroldo de Campos (SP, Risco Editorial, 2010), com organização de André Dick. Meu texto neste livro, “Evocando Haroldo na Casa das Rosas”, foi apresentado no evento “Hora H”, em 15 de agosto de 2009, na mesma Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo.


É bom frisar que na bela Casa das Rosas, em plena Avenida Paulista, está abrigada a preciosa biblioteca de Haroldo, sendo agora um ponto referencial para todos aqueles que se dedicam a ler e estudar sua fascinante e profícua obra, que inclui poesia, prosa experimental (Galáxias), tradução, ensaio e crítica. O legado de Haroldo, que neste ano completa vinte anos de morte, é admirável – e seu trabalho continua alimentando inúmeros estudos, teses universitárias, releituras e republicações de textos.


Como mencionei, já dei meu depoimento sobre Haroldo. Mas agora, a pedido do amigo André Dick, retorno ao querido e saudoso mestre-inventor, mas de maneira informal e bastante pessoal, relembrando e assinalando alguns aspectos de minha convivência com ele, de quem me tornei amicíssimo (assim como de Carmen, sua mulher, e de Ivan, seu filho único).


Os poetas concretos foram muito amigos de meus pais, os escritores mineiros Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo. Desde criança me recordo deles visitando a casa da Rua Cristina, 1300 – no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte. Ainda muito jovem, o primeiro dos poetas do grupo Noigandres que conheci mesmo, de conversar e conviver, foi Décio Pignatari. Ele aparecia algumas vezes na cidade, para dar aulas ou palestras, convidado pela UFMG (no curso de arquitetura, por ex, se me lembro bem) ou como participante da SBPC. Mais adiante, em eventos sobre livros e escritores, ou mesmo só “a passeio”, seguindo de BH para cidades históricas como Ouro Preto e Tiradentes. Certa vez se hospedou no meu primeiro e pequeno apartamento, no bairro do Cruzeiro.


Já a minha aproximação com Augusto se deu na sequência, através de cartas (a primeira carta que possuo dele, no meu arquivo, tem a data de 28/3/1973), num período pré-internet. Mais adiante, numa viagem que fiz a São Paulo, em 1977, quando nos conhecemos pessoalmente (ele já com 46 anos, eu com apenas 22), ainda no apartamento da Rua Bocaina, em Perdizes, onde ele morava com Lygia e os filhos – Roland e Cid. Também nos tornamos amigos, mas “à distância”, pois Augusto viajava menos que o Décio; eu, sim, fui diversas vezes a SP aproveitando para vê-lo e conversar. Ele gentilmente me enviava seus livros (muitas vezes, pequenas e raras publicações: cartões, plaquetes e cartazes), sempre com dedicatórias afetuosas.


Só conheci pessoalmente Haroldo em 1985 (embora já tivesse recebido publicações dele autografadas – por ex. a plaquete com o longo poema “Ode (explícita) em defesa da poesia no dia de São Lukács”, que resenhei no Estado de Minas, primeiro jornal em que trabalhei em BH, em 17/10/1981). Haroldo veio a Minas a convite do grupo Kuzala Circo Teatro, que estava montando uma peça baseada no “Tatuturema” de Sousândrade (o revolucionário poeta maranhense, autor do Guesa, que havia sido recuperado e reposto em circulação por ele e Augusto). Houve um debate-happening para lançamento do projeto, do qual Haroldo participou no Palácio das Artes, juntamente com Sérgio Santeiro (cineasta carioca que fez um curta sobre Sousândrade, exibido na ocasião) e ainda com o ator/poeta baiano Luciano Diniz, que havia participado em Salvador da montagem de uma peça também baseada no “Tatuturema” (Luciano exibiu trechos da peça em superoito).


Nossa sintonia foi total. Ficamos amigos e daí em diante estive mais próximo de Haroldo, por alguns anos, do que de Décio e de Augusto – embora os encontrasse aqui e ali, ou recebesse seus livros em BH. Haroldo, com seu espírito aberto, era extrovertido e bom conversador –, dando vazão, em diversas ocasiões, a lances de humor expansivo combinados com trocadilhos e boutades, além de uma marcante gargalhada barroca (muito bem lembrada num poema-homenagem por Augusto).


Estivemos juntos muitas vezes, não só em BH, como também em SP, Ouro Preto, Mariana e Salvador. Nas minhas idas à “Pauliceia Tresvariado-poluída”, sempre que podia visitava Haroldo no simpático sobrado da Rua Monte Alegre, nas Perdizes, atapetado de livros e quadros – a “bibliocasa”, na sua própria definição.


Em um dos nossos encontros em BH, passei às suas mãos os originais do meu segundo livro, Sinal de menos, que ele levou para ler em Ouro Preto. Eu pensava apenas em saber sua opinião sobre os poemas. Na sua volta, num reencontro desta vez em Sabará – em que estavam também Affonso e Laís, Sebastião Nunes e mais alguns amigos –, ele me devolveu os originais com uma bela surpresa anexada: um “Poema à porta” manuscrito, à caneta, com sua letra personalíssima. Tratava-se, nada mais, nada menos, de um poema-prefácio para o livro, o que me deixou “comovido como o diabo” – evocando aqui o Drummond do “Poema de sete faces”. Drummond, aliás, que me levou ao título do volume: “sinal de menos” foi extraído do seu “Poema-orelha”, denotando uma poesia antirretórica, sintética e fragmentária. O livro teve edição artesanal, em 1989, com tipos móveis, pela Gráfica do Fundo de Ouro Preto, do meu amigo Guilherme Mansur, tipógrafo-poeta, e capa de outro querido amigo, o saudoso “ubáiano” Erthos Albino de Souza, poeta-engenheiro, pioneiro na utilização do computador na poesia brasileira. O “Poema à porta” de Haroldo foi reproduzido no pórtico do livro, a partir do original manuscrito. Posteriormente, Haroldo incluiu o “Poema à porta” na seção “Personário” (“poemas dedicados a amigos poetas”) do seu livro Crisantempo.


Dessa forma, estabeleceu-se uma amizade poético-afetiva entre nós. Também um diálogo intelectual por meio do qual aprendi muito, aprofundei meus estudos e leituras, estabelecendo também contato, por intermédio de Haroldo, com outros poetas, tradutores, críticos, músicos, gente de cinema e teatro.


Mais adiante, já nos anos 1990, em SP, ao voltar com Haroldo para sua casa, após um almoço num restaurante vizinho, para tomar um “digestivo” e conversar mais um pouco, o poeta me fez outra bela surpresa: o convite para editar uma coletânea de minha poesia (até então restrita a apenas dois livros de pequenas editoras alternativas) na sua coleção Signos, da Editora Perspectiva. Haroldo vinha abrindo a coleção para poetas da minha geração, como Frederico Barbosa, Régis Bonvicino, Antônio Risério, Arnaldo Antunes etc. Aproveitei a ocasião para não só republicar Aqui & agora e Sinal de menos – como para incluir minha produção mais recente e então inédita, a série de poemas Ásperos. O livro saiu em 1999 (número 25 da coleção), com capa de Guilherme Mansur e uma espécie de posfácio intitulado “Outras palavras”, com a reunião de alguma recepção crítica e um ensaio sobre minha poesia de Maria Esther Maciel (Profa./Doutora da UFMG).

Acompanhei sempre com vivo interesse toda a extensa produção intelectual de Haroldo, um dos nomes fortes da poesia brasileira do século 20 (o mais produtivo e importante período de nossa poesia – superior ao séc. 19 e, até agora, ao séc. 21, em minha opinião). Entre seus vários e criativos livros de poemas, o refinado A educação dos cinco sentidos é o meu preferido, juntamente com as cintilantes Galáxias.


Mas há também seus diversos estudos e ensaios, de leitura obrigatória, publicados em Metalinguagem, A arte no horizonte do provável, Ideograma e em muitos outros volumes. Afora isso, ele prestou um serviço inestimável, trazendo para a nossa língua poetas chineses e japoneses, Dante, Cavalcanti, Goethe, Leopardi, Mallarmé, Pound, Joyce, Ponge, Maiakovski, Ungaretti, Kaváfis etc. E, finalmente, as poéticas bíblica e homérica (incluindo a monumental versão integral da Ilíada, um verdadeiro tour de force). As excepcionais traduções de Haroldo (assim como as de Augusto, também de alto nível), que ele prefere chamar de “transcriações”, formam um potente corpus fundamental para o conhecimento por aqui da melhor poesia mundial.


Haroldo faz falta. Era generoso e rigoroso, a um só tempo. Tenho gratidão eterna pelo apoio e impulso que deu à minha produção poética (cinco livros até o momento: Aqui & agora, Sinal de menos, Bissexto sentido, Área de risco e Anexo de ecos) e à minha militância crítico-jornalística, da qual uma pequena parte está reunida no volume Poesia pensada (já tenho outro preparado, ainda inédito).


Há, com certeza, muito ainda a descobrir na extensa e intensa produção de Haroldo. Como já afirmei antes, sua obra reclama uma reunião em vários volumes (à feição da que foi realizada, no México, com Octavio Paz, pelo Fondo de Cultura Económico), incluindo todos os domínios ou áreas em que atuou. Sim, ele merece. Haroldo não tem fim.

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* A imagem em destaque do texto de Carlos Ávila traz uma dedicatória de Boris, Haroldo e Augusto para a “troica poética” (Affonso, Laís e Carlos) no volume Poesia russa moderna.


** O poeta e jornalista Carlos Ávila nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1955. Publicou os livros de poemas Aqui & agora, Sinal de menos, Bissexto sentido, Área de risco e Anexo de ecos, assim como o volume de ensaios Poesia pensada. Está presente em diversas antologias no Brasil e no exterior. Durante a década de 1970, contribui com revistas literárias como Poesia em Greve, Muda e Qorpo Estranho. Foi editor, por quatro anos (1995/98), do Suplemento Literário de Minas Gerais.



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