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HAICAIS DO DESERTO


Por Ademir Demarchi

Quem já viu filmes de Abbas Kiarostami como Gosto de cereja, Através das oliveiras, ou O salgueiro e o vento, certamente encontrará algo de ressonância no olhar lírico e delicado que se reflete nesses haicais de Nuvens de algodão, ainda que nos filmes predomine a secura típica do diretor, em que as pessoas, como corpos errantes, são registradas praticamente cegas a essas delicadezas da paisagem e do entorno em que vivem, obcecadas em sua existência precária.


Cópia fiel, outro de seus filmes, este passado na Europa, distante da paisagem iraniana que o consagrou, certamente causará estranhamento, uma vez que o olhar para o detalhe, ainda que exista, está distraído, nesse filme, para a argumentação e conversas entre os personagens.


É, portanto, àquela paisagem árida do Irã que remetem esses poemas, algo inesperados em um diretor de cinema, peculiares nos registros, como lampejos ou flashes de uma câmera. O olhar atento do diretor, como se enquadrasse uma cena, aparece em sua secura plena e imaginosa num haicai como este:


Centenas

de peixes pequenos e grandes

mergulham

na miragem do deserto.

Como cenas de filme, portanto, seu olhar vai percorrendo a paisagem iraniana, condensando-a nesses haicais, dos quais seleciono alguns a seguir.



Na tua ausência

converso

contigo,

na tua presença

converso comigo.



*



Hesitante

estou numa encruzilhada,

o único caminho que conheço

é o caminho de volta.



*



Um lobo

à espreita



*



Cem fontes secas

cem ovelhas sedentas

um velho pastor.



*



Pelas veredas de uma serra

segue um velho camponês

ao longe a voz de um jovem.



*



Uma monja

acaricia

um tecido de seda:

Será adequado a um hábito?



*


Um vira-lata

abana a cauda

a um caminhante cego.



*



Em um grupo de pessoas vestidas de luto

um garoto

olha encantado um pé de caqui.



*



Sob a luz tímida do lampião

um garoto

desenha


o pai dorme



*


__________________________________

→ KIAROSTAMI, Abbas. Nuvens de algodão. Trad. e org. Pedro Fonseca. Belo Horizonte/Veneza: Âyné, 2018.

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