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Haroldo de Campos

Atualizado: 3 de set. de 2023

Por Luiz Costa Lima


A velhice me trouxe um ou dois achados. Ainda tenho dúvidas se de fato creio no primeiro: a morte, diz ele, não é tão terrível enquanto apagamento completo de tudo e todos do que por seu percurso lento e tortuoso. Se tenho dúvidas crer de fato no que diz a frase, não as tenho quanto ao segundo achado. Aí me digo: ao longo da vida não sabemos apreciar devidamente certos eventos e certas pessoas e só o fazemos quando já não há maneira de tê-los presentes. Assim sucede no caso de minha relação de admiração e amizade com Haroldo de Campos. Como nunca fui atento a dados biográficos, o que aqui se mostra pode conter pequenos erros de datação. Mas estou certo que a influência que recebi de Haroldo se cumpriu desde muito cedo, por volta do fim dos anos de 1950.


Eu então vivia no Recife e já sabia que queria dedicar-me profissionalmente ao estudo da literatura. Nunca pensei em tornar-me poeta ou romancista. Embora eu vivesse longe do sul, particularmente de São Paulo, o conhecimento da poesia concreta e, no seu interior, da ensaística de Haroldo, era possibilitada por sua presença constante em suplemento então editado no Rio e distribuído pelo país. Se bem recordo, era o suplemento do jornal Correio da Manhã. A linhagem desenvolvida por Haroldo reforçava extraordinariamente a minha tendência de aproximar-me da literatura de um modo oposto ao que vigorava, a que eu chamava de “literatice”, o que poderia ser traduzido como aproximação da literatura por uma escrita igualmente literária. Sei que essa condução continua vigente e, para muitos, a via que assumi é desastrosa. O fato é que naqueles distantes anos da juventude a tentativa de conhecimento do literário era no máximo arranhada pela abordagem filológica de um Cavalcanti Proença ou histórico-social de um Antonio Candido. Embora eu reconhecesse a qualidade de ambas, nelas sentia a falta do que percebia palpitante na ensaística de Haroldo: a abertura para a teorização do poético.


Essa era a declaração de dívida para com a obra de Haroldo, que sentia haver faltado em tudo que até agora escrevi. Depois de dizê-lo, sinto-me mais tranquilo, como quem tirasse um peso das costas. Posso então acrescentar que nosso contato pessoal não teve a intensidade que hoje gostaria que tivesse tido. Contra isso, importava nunca termos morado próximos. No Brasil, Haroldo sempre viveu em São Paulo, ao passo que, depois de sair do Recife, em fins de 1064, passei a viver no Rio. Sim, a ida até São Paulo não exigiria grande investimento financeiro. Mas é também verdade que eu não teria meios para interromper meu então laborioso cotidiano.


Por isso foram muito poucas as ocasiões em que estivemos pessoalmente juntos. Lembro apenas uma situação – suponho, contudo, que ela seja suficiente para sentir-se nossa proximidade. Em 1971, tive a oportunidade de defender minha tese de doutoramento em teoria da literatura, na Universidade de São Paulo (USP). Não entrarei em detalhes a respeito. Basta-me dizer que minha notória dificuldade em enfrentar os dilemas da crua vida cotidiana fez com que escolhesse como tema o papel que o estruturalismo de Lévi-Strauss poderia desempenhar em uma reflexão sobre a literatura em um momento em que, para parte significativa da docência da USP, isso era sinônimo de adesão, simpatia ou, ao menos, de abordagem não crítica da ditadura sob que então vivíamos. Em poucas palavras, a dificuldade que seria inerente à defesa de uma tese, tornava-se de fato algo próximo do terrível. Esqueço todo esse quadro e me concentro em um pequeno detalhe. Estamos numa pequena sala em que se desenrolará minha defesa. A palavra é passada para o primeiro examinador. Ele toma a palavra e de imediato reclama dos erros de português de que a tese estaria repleta e dava como exemplo as inúmeras vezes em que apareceria o verbo “decodificar”, quando, dizia ele, o correto seria “descodificar”. Não tive tempo sequer de pensar como poderia responder quando da plateia irrompeu o vozerio de Haroldo, que dizia algo semelhante a: “sim, do aeroporto deve-se ouvir que o avião acaba de descolar”. Não preciso me estender sobre as consequências. A risadaria do auditório até pode haver tornado mais difíceis os próximos passos da defesa, mas, de imediato, a arrogância do examinador perdeu a jogada.


Paro por aqui porque tais lembranças não seriam capazes de dizer o quanto de fato devo à presença da obra de Haroldo no que tenho feito. Apenas recordo o que poderia ter sido nosso último encontro. Eu me achava em um simpósio em New York, se bem recordo em que Haroldo seria homenageado. Mas assim terminou não sucedendo porque, vindo de outro simpósio, Haroldo chegou doente e sequer se apresentou, Não sei dizer se foi por conta desse seu mal-estar que Haroldo faleceu. O fato é que não tornei mais a vê-lo.

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* Luiz Costa Lima é crítico literário e professor emérito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Publicou importantes livros de ensaios, entre eles Mímesis e a modernidade (1980), Vida e mímesis (2000), O controle do imaginário e a afirmação do romance (2009) e Frestas: a teorização em um país periférico (2013). Pela Editora Unesp, publicou, em 2017, Melancolia: literatura; em 2021, O chão da mente: A pergunta pela ficção; e, em 2022, A ousadia do poema: Ensaios sobre a poesia moderna e contemporânea brasileira.


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