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Haroldo de Campos revisita clássicos em suas traduções

Por Susana Kampff Lages


Numa manhã de julho de 1814, ao passar por sua terra natal a caminho de uma estação de repouso, o velho Goethe entreviu pela névoa da manhã um arco-íris branco. Essa visão deixou sua marca na vida e na poesia do poeta alemão, que a interpretou como um presságio de rejuvenescimento. Referência explícita a esse episódio, vivido pelo Goethe sexagenário (figura literária que inevitavelmente nos remete, em espelho e, guardadas as diferenças históricas, ao próprio Haroldo de Campos). O arco-íris branco concentra várias das intrincadas redes intertextuais trabalhadas ao longo dos dezesseis ensaios nele coligidos.


Sua singularidade está precisamente no caráter metafórico que anuncia, de imediato, uma das dimensões fundamentais não só dessa obra em particular, como da atividade poética haroldiana em suas diferentes vertentes (poética, tradução, crítica, ensaística): a dimensão intertextual entendida como diálogo com diferentes textos da tradição e da contemporaneidade.


Um dos mais consistentes produtos da ensaística de Haroldo de Campos está concentrado na primeira metade do livro, na qual estão reunidos os ensaios referentes à sessão de abertura, o “domínio alemão”. A ele seguem-se mais três seções (domínio chinês, espanhol e francês, além do último ensaio de caráter literário cultural). Assim reunidas (e não submetidas a uma cronologia neutralizadora), suas reflexões e, sobretudo, as traduções, realizadas ao longo de 40 anos, evidenciam o caráter transcultural ou, para usar um termo menos em moda, universal, das preocupações do autor. Essa universalidade é a fim daquela da Weltliteratur goetheana: o escritor precisa, por um lado, trazer a literatura estrangeira para o seio da própria e, assim, transformá-la criativamente.


Uma característica básica determina o andamento e a própria estrutura da maior parte dos ensaios, o comentário sobre a tradução dos textos, tendo em vista particularidades das diferentes línguas em confronto em alguns casos, o comentário sobre outras traduções e a justificativa das próprias escolhas ao traduzir. Dessa forma, o autor introduz o leitor, tal qual iniciado em seu laboratório de alquimia textual.


Prática fascinante e sobretudo didática, tanto para aqueles que desejam se introduzir na tradução literária de tipo criativo (ou transcriativo, como prefere Campos), quanto para aqueles que, ainda que sem variedades literárias, queiram traduzir literatura, pois Haroldo de Campos considera a tradução auxiliar crucial no comércio entre as literaturas, servindo como substrato indispensável para a versão de tipo invertido.


Nesse sentido, justifica-se a dissecação minuciosa a que muitos textos são submetidos, num tour de force filológico que, para o leitor menos especializado, é de fato, um tanto árido. Mas essa aridez é pontual e alcança, no mais das vezes, irrigada por uma vigorosa seiva interpretativa. Em ensaios sobre a tradução do poema L’araignée (A aranha), de Francis Ponge, Haroldo de Campos comenta “Traduzi secrête por secreta, sabendo que a fórmula vernácula é segrega”.


A dissemia que existe em francês entre a forma verbal e a adjetiva, e de que o texto tira proveito sobretudo na 4ª parte (“A teia urdida”), tinha de ser preservada em português. Aqui o tradutor deve seguir o preceito de Goethe e Pannwitz, alargando as fronteiras de suas línguas e derrogando-lhe os dogmas sob influência do original estrangeiro. “A fonte comum é o latim secretare, forma frequentativa de secemere, pôr à parte” (p. 211).


Essa atenção minuciosa às palavras, aliadas a uma particular inflexão retórica que caracteriza toda a prosa haroldiana, traz uma paixão pela palavra que se encontra num âmbito que não é o poético, embora confine com ele o âmbito da retórica jurídica. O ensaio “Kafka: Um realismo de Linguagem?” é um formidável exercício de virtuosismo hermenêutico, que evidencia um domínio dos meandros vertiginosos da retórica jurisprudência por parte do poeta – e jurista atuante – Haroldo de Campos. Daí o tom militante dessa prosa que precisa defender com unhas e dentes cada uma de suas interpretações para criar uma identidade poética própria, junto ao limiar entre diferentes tradições culturais.


Transitando com erudição por culturas muito diferentes e por épocas variadas, passando da multifacetada cultura alemã (que não coincide com nenhum conceito (im)possível de literatura nacional alemã) à cultura chinesa, de nós absolutamente distantes, indo do século 8 chinês à contemporaneidade, os ensaios de O arco-íris branco acabam por evidenciar, no diálogo que estabeleceu entre si, o vezo densamente teorizante das reflexões do autor.


A teoria poética de Haroldo Campos está centrada numa ampliação irisada do conceito de tradução como vertente legítima da criação literária: tradução como usurpação luciferina, metempsicose, operação transmutadora, como transfusão de personae goetheana, paródica fáustica, ironia goetheana, “transumanização” e trapassar il segno dantesco, empresa de limites, processo hídrico, transcrição, reimaginação, recriação, transluciferação, transiluminação, transparadizaçao, tradução icônica, versão do impossível, transleitura, metamorfose. Para levar a cabo tal empresa plurificada, é preciso “deslocar a tirania logocêntrica do original, rasurar a origem” (p. 44).


Dessa forma, Campos alinha-se ao pensamento de Jacques Derrida, o filósofo francês da “desconstrução”, com o qual partilha o interesse pelas reflexões sobre tradução realizadas por Walter Benjamin, sobretudo o Benjamin do intrincado ensaio “A tarefa do tradutor” que lhe serve de referência constante. Para Haroldo de Campos, traduzir um texto e também uma operação de “desconstrução”, na qual o tradutor atua sobre a linguagem em sua totalidade, seja ela sonora (daí o cuidado com os elementos métricos e músicos) ou gráfico visual, inevitavelmente deslocando o feixe alusivo do texto estrangeiro para outras dimensões da sua própria cultura.


Ao leitor da poesia desse final deste final de milênio resta esperar que, por contaminação mágico-analógica, a visão do velho Goethe e uma certa comum nostalgia do paradigma grego possam fazer com que Haroldo de Campos continue alimentando a literatura de língua portuguesa com o diálogo poético com outras literaturas do presente e do passado, com a nossa própria e com outras culturas.


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* Resenha publicada anteriormente em O Estado de S.Paulo, 15 agosto 1998.


** Susana Kampff Lages tem como principal foco de pesquisa autores do campo das literaturas de língua alemã e da literatura brasileira da modernidade, adotando como marco teórico privilegiado a obra de Walter Benjamin e suas reflexões sobre a modernidade e a tradução, tendo recebido o Prêmio Jabuti (2003) por seu livro sobre a teoria da tradução de Walter Benjamin.



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