Por Solange Rebuzzi
O livro de capa amarela brilha,
editora brasiliense, 2000.
Lemos nos poemas deste livro, alguns deles sem título e curtos, um poeta que afirma a vida de perto. A vida que passa rápido.
Assim, se “o bicho alfabeto/ tem vinte e três patas/ ou quase” o aprendiz e mestre, Leminski, deixa seu traço escrevendo versos, prosa, letras de música, até em pedaços de papel, inclusive escritos com tinta negra e desenhos feitos a mão. Ouvimos este senhor escritor por onde a página se anuncia “casa materna”. As mãos do poeta nos contam que o passo doído é pesado também.
O exemplar que adquirimos em 2001 guarda versos carregados de dor, carregados de luz, e, que não naufragam na estante nunca.
Ao contrário, parecem conter o brilho das estrelas. E segredos se anunciam, rapidamente, inclusive em forma de haikai, na pulsão da escrita que jorra.
Mallarmé Bashô
um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço
Se Mallarmé ou Bashô são recuperados, sabemos o porquê; o poeta jamais aboliu o acaso. O jogo sonoro do título brinca, afinal Mallarmé baixou.
E o sapo salta o verso ritmado no ‘som da água’ do poço.
Poderíamos recomeçar esta resenha n vezes, por lugares múltiplos de versos diversos embalados, hoje, “na pele/ na palma, na pétala, luz do momento”.
Ou mesmo “na surpresa de ser”. E até no susto repentino porque: “O papel é curto./ Viver é cumprido.” Mas, será?
Parecendo um livro testamento poético em um testemunho inventivo, Leminski escreveu estes versos com o pensamento nos caminhos.
Escreveu aos leitores amigos, aos pares distantes, aos poetas que já haviam partido, mas continuavam perto; en close. A vida repleta de espanto.
A todos os seus pares, nossos irmãos de língua ou não, e na luz de laços estéticos, no prazer e na dor da linguagem tradutora de mundos.
Qualquer que seja a página que possamos abrir há um verso ou uma maneira de dizer a vida que procura ser reinventada.
Profissão de febre
quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
(...)
Pontuação de chuva. O eu deslocado ou faltoso. Repito:
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
Um livro póstumo que reúne versos de tempos outros. Alice Ruiz esclarece na Orelha que reconhece os muitos poemas escritos quando viviam juntos.
Neste tempo de criação mútua, nascimento de filhos, nascimento de versos e de livros na terra natal, especialmente na casa da Cruz do Pilarzinho.
Nas páginas aqui reunidas por outros, o tempo se prolonga. Algo do silêncio e dos sonhos traduz a intimidade de um poeta.
Os poemas apresentam desenhos que a escrita em pilhas de papéis já disse. A vida cheia de angústia afinava o ouvido do poeta.
Não precisamos nomeá-lo em nenhuma corrente literária. O tempo dará, na sequência dos dias, um lugar ao seu trabalho, certamente.
A arte de escrever cartas e canções, os versos ritmados onde a rima brinca, a obediência às orações na escola, as línguas traduzidas e as biografias escritas. Ah, a trilha é longa e não é fácil ser poeta!
E pensem em Leminski de forma menos espetacular. Recuperamos Virginia Woolf quando afirmou ser mais interessante pensar “um poeta no qual vivem todos os poetas do passado, do qual brotarão todos os poetas do futuro”.
Quem sabe, possamos sentir com a caneta ou o lápis na mão, a página “casa materna”.
Rio de Janeiro, inverno de 2024.
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* Solange Rebuzzi nasceu no Rio de Janeiro. Estudou psicologia, psicanálise, filosofia e literatura. Tem pós-doutorado em Letras Estrangeiras Modernas na UFF, onde trabalhou com tradução de língua francesa. É autora de mais de vinte livros, entre eles em poesia: Livro das areias, Gradiva, verão, O riso do inverno e Livro das marés; os romances: Quase sem palavras e A bordo do Clementina e depois; os ensaios: Leminski, guerreiro da linguagem, O idioma pedra de João Cabral e Traduzir, testemunhar Francis Ponge; os diários: Diário de um tempo indeterminado e Caligrafias. Alguns livros infantis estão publicados na Lumme editor. O primeiro livro de poemas, Contornos, foi publicado pela Massao Ohno em 1991. Organizou os encontros literários “Café letrado” e o “Experiências de tradução” em tempos diversos nas últimas décadas. É membro da SLFP – Sociedade de Leitores de Francis Ponge. E escreve no blog www.solrebuzzi.blogspot.com.br.
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