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Leminski, todo poesia aos 80 anos

Por Amador Ribeiro Neto


Paulo Leminski viveu muito pouco. Apenas 44 anos: de 1944 a 1989. Alice Ruiz ratifica isto e vai além. Ao apresentar Toda poesia (S. Paulo: Companhia das Letras), observa: “Este livro é antes de tudo uma vida inteira de poesia. Uma vida totalmente dedicada ao fazer poético. Curta, é verdade, mas intensa, profícua e original”. A seguir, conclui sabiamente: “A análise crítica, melhor deixá-la aos especialistas”.


Não sou um especialista propriamente dito. Gosto de poesia. Gosto da sua companhia.  E gosto de pensá-la, sempre que instigado.  Este livro, que reúne toda a poesia de Leminski, incluindo poemas inéditos, instigou-me.


Lembro-me de aguardar, na década de 80, cada novo livro deste polaco-curitibano irreverente & criativo. Desde meados da década anterior ele já vinha publicando em Curitiba, mas seus livros não chegavam ao eixo Rio-São Paulo. Foi através de Caprichos & relaxos (1983) que travei contato com sua poesia pela primeira vez.


O livro promoveu um revertério em minha cabeça. Ela vivia cheia de poesia marginal, dentre outras facilidades e chatices dos anos 70 e 80.


Claro, todos os poetas marginais que conheço reivindicam Leminski como um dos seus pares. E não só: abarcam Glauco Mattoso e Waly Salomão também. Um fato inegável: tais poetas marginais sempre foram fraquinhos na poesia. Sem dúvida. Outro fato inegável: sempre foram fortes na retórica. Não há como negar.


Mas insisto: Leminski, Glauco e Waly não são poetas marginais. Estão inseridos aí pela linha cronológica. O quê não quer dizer nada. Ou vamos então afirmar que João Cabral pertenceu à Geração de 45? Aos aristotélicos, adeus.


Leminski não é poeta marginal. Antes: é um poeta do rigor. Do rigor a tal ponto estruturado que chega a parecer relaxamento. A este domínio da arte de fazer poesia bem elaborada, dando a impressão de facilidade, dá-se o nome de “consciência de linguagem poética”. Leminski sabia onde pôr o seu boné.


Depois de Caprichos, passei a aguardar ansiosamente cada publicação sua. Neste livro de estreia já aparecem poemas que mais tarde serão reconhecidos como a logomarca da sua linguagem. É o caso de 

 

Domingo

Canto dos passarinhos

Doce que dá pra pôr no café

 

O haicai capta o lirismo que brota da natureza. E o lança pra desabrochar na xícara de café. Manhã dominical na cidadezinha do interior? Por que não um diálogo com Bashô e Drummond?


Ou este antiecológico, politicamente incorreto e ultracorrosivo:


Gente que mantém

pássaros na gaiola

tem bom coração.

Os pássaros estão a salvo

de qualquer salvação


Fina irreverência que fura fundo na hipocrisia ambientalista. Afora a leveza da liberdade “a salvo de qualquer salvação”. Desconstrução: o vocábulo “salvo” está contido em “salvação”. A síntese como congraçamento da tese e da antítese. Ironia dialética pra marxista nenhum botar defeito. Ao menos os mais avisados. Claro.


Em Caprichos há um belíssimo jogo de olhares e espelhos. Reflexos de intimidades do olho-no-olho. E revelação súbita da cumplicidade poética:


eu

quando olho nos olhos

sei quando uma pessoa

está por dentro

ou está por fora

 

quem está por fora

não segura

um olhar que demora

 

de dentro do meu centro

este poema me olha

 

 

Cumplicidade de vida e linguagem. Melhor dizendo: de obra que se desdobra em metalinguagem. Leminski brinca, sabendo que brinca. Lição para quem se propõe a fazer poesia leve, coloquial, lúdica, antiacadêmica. Leminski é Mestre.


Ao final do volume encontramos a parte intitulada “Sol-te”. Aí o poeta nos dá sua visada antropofágica da Poesia Concreta, da Poesia Visual, e da canção em si. Além de manter a irreverência crítico-criativa. Como nesta interação entre poesia e música popular:

 

tudo

que

li

me

irrita

quando

ouço

rita

lee

 

Logo veio Distraídos venceremos (1987), já no título uma rajada megairônica ao “slogan” sindical mais divulgado na época. Anárquico, o poeta sabia da necessidade do caos para o surgimento do acaso. Ao “unidos” contrapõe o “distraídos”. Não é à toa que um dia saiu-se com esta: a poesia é um “inutensílio”. Neologismo conceitual brilhante. Síntese conceitual teórica de tirar o chapéu. Curso de teoria da literatura em concisão absoluta.


Distraídos venceremos inicia-se com o poema “Aviso aos náufragos” em que, na leveza, repassa a história da poesia – e conclui com uma tirada inesperada sobre o que é a vida. É ler pra saber.


Para Leminski, vida e obra são uma coisa só. Coisa que quase todos querem fazer. Mas só a alguns é dado consegui-lo:

 

eu, hoje, acordei mais cedo

e, azul, tive uma ideia clara.

só existe um segredo.

tudo está na cara.

 

Poesia publicada postumamente


La vie en close, embora publicado em 1991, reúne poemas selecionados por Leminski e Alice Ruiz em 1988, um ano antes da morte do poeta. Este procedimento já fora adotado por ambos em 1987, quando ambos decidiam quais poemas integrariam Distraídos venceremos.


Neste livro encontramos vários poema-valise, tão presentes na obra de Leminski:


   A quem me queima

e, queimando reina,

   valha esta teima.

Um dia, melhor me queira.

 

Mais que as rimas consoantes (queima, teima), a frequência da rima em ditongo EI (queima, reina, teima, queira) dá origem à bela rima toante (reina, queira) quando a vogal tônica camufla-se no ditongo – como um intervalo, um espaço, um hiato. Coisa de poeta que sabe e sabe que sabe. Por isto faz.


Há também o poema em prosa, que  melhor seria dizer teoria da poesia em prosa poética. As citações entrelaçam-se em intertextualidades que tecem o poema que nasce – lenta luta, manhã por vir. O título cede a senha do poema: “Limites ao léu”:


POESIA: "words set to music" (Dante via Pound), "uma viagem ao desconhecido" (Maiakovski), "cernes e medulas" (Ezra Pound), "a fala do infalável (Goethe), "linguagem voltada para a sua própria materialidade" (Jakobson), "permanente hesitação entre som e sentido" (Paul Valéry), "fundação do ser mediante a palavra" (Heidegger), "a religião original da humanidade" (Novalis), "as melhores palavras na melhor ordem" (Coleridge), "emoção relembrada na tranquilidade" (Wordsworth), "ciência e paixão" (Alfred de Vigny), "se faz com palavras, não com idéias" (Mallarmé), "música que se faz com idéias" (Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), "um fingimento deveras" (Fernando Pessoa), "criticism of life" (Mathew Arnold), "palavra-coisa" (Sartre), "linguagem em estado de pureza selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to inspire" (Bob Dylan), "design de linguagem" (Décio Pignatari), "lo imposible hecho posible" (García Lorca), "aquilo que se perde na tradução" (Robert Frost), "a liberdade da minha linguagem" (Paulo Leminski)...

 

O ex-estranho (1996) teve seleção e organização de Alice Ruiz S e Áurea Leminski. A segunda parte do livro, intitulada “Parte de AM/OR”, reúne poemas inéditos que Alice e Leminski fizeram um para o outro. Estavam guardados numa pasta íntima que o casal mantinha. Coisas de casal de poetas apaixonados, pode reivindicar-se. Pode ser. Mas a verdade é que são poemas de qualidade duvidosa. Como este:


ah se pelo menos

eu te amasse menos

tudo era mais fácil

os dias mais amenos

folhas de dentro da alface

 

mas não

tinha que ser entre nós

esse fogo

esse ferro

essa pedreira

extremos

chamando extremos na distância

 

Aqui percebe-se uma inconsistência na linguagem poética. Uma fratura no cuidado com que Leminski tratava a palavra e adentra a frase feita sem segundo corte. Ou a busca do efeito inesperado com uma imagem que forja a rima de fácil com alface. Fica valendo a “intenção” do amor. Mas, pra se transformar em poesia, precisa passar pelo distanciamento dos sentimentos expostos e pelo mergulho na linguagem.


Winterverno foi publicado em 2001 com desenhos de João Suplicy. Reúne poemas já publicados e outros inéditos. O livro é reproduzido em Toda poesia sem os desenhos e apenas com os poemas inéditos. Destacamos “a hora do tigre”:


um tigre

     quando se entigra

não é flor

      que se cheire

não é tigre

      que se queira

 

       ser tigre

dura a vida

                  inteira

 

Em comum, além da temática do tigre, que perpassa a história da poesia da Antiguidade Clássica a Blake, o tema da liberdade. Blake: “Tyger! Tyger! burning bright / In the forests of the night, / What immortal hand or eye / Could frame thy fearful symmetry?”. Na tradução de Augusto de Campos: “Tygre! Tygre! Brilho, brasa / que a furna noturna abrasa, / que olho ou mão armaria / tua feroz symmetrya?”.


Ao compor Caprichos & relaxos, Leminski não incluiu todos os poemas que publicara em Polonaises nem em Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, dois breves volumes da saga editorial curitibana. Esses poemas foram incluídos em Toda poesia sob o título de Poemas esparsos. Alguns se valem de um trocadilho constrangedor. Certamente Leminski dera-se conta disso. Vejamos:

 

Vão é tudo

Que não for prazer

Repartido prazer

Entre parceiros

 

Vãs

Todas as coisas que vão

 

A bem da verdade, a primeira quadra até que apresenta algum interesse na reiteração da aliteração do /p/ e do /r/ repartindo o prazer entre parceiros. Mais que isso: introduzindo o vão (substantivo) como espaço entre os vocábulos, mesmo ao negá-lo; “Vão é tudo / Que não for...”. A construção pela desconstrução, outro procedimento caro a Leminski, é bem realizada aqui. Todavia, a quadra seguinte (um dístico) assenta-se sobre a pasmaceira de um trocadilho tolo: vãs/vão. O poema conclui-se mal. Se fosse constituído apenas da primeira estrofe, seria um bom poema. Não é.

 

Ou este outro, com um refrão desanimador:

 

 

maldito

o que não deixa cantar

o canto é fraco

 

maldito

o que não deixa cantar

o canto é forte

 

maldito

o que não deixa cantar

o canto gera outro cantar

 

maldito

o que não deixa cantar

o canto nunca deixa de cantar

 

Vejamos este outro, bem ao modo de quem começa a fazer poesia:

 

no campo

em casa

no palácio

está nas últimas

a última flor do lácio

 

cretino

beócio

palhaço

dê o último adeus

à última flor do lácio

 

a fogo

a laço

ninguém segura

a queda da última flor do lácio

 

Mas, evidentemente, há bons poemas também. Este, brilhante, musicado por Arnaldo Antunes:


acenda a lâmpada às seis horas da tarde

acenda a luz dos lampiões

inflame

            a chama dos salões

            fogos de línguas de dragões

             vaga-lumes

 

numa nuvem de poeira de neon

tudo é claro

                   tudo é claro

                   a noite assim que é bom

 

a luz acesa na janela lá de casa

o fogo

            o foco lá no beco

                                          e o farol

 

esta noite vai ter sol

 

Eis Paulo Leminski: alguns escorregões, como qualquer poeta. Mas, acima de tudo, acentuada consciência de linguagem. E grande rigor poético. Tudo com a leveza que poucos conseguem. Ler Leminski é entranhar-se na selva lírica de signos do agora.

 

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* Amador Ribeiro Neto (Caconde-SP). Radicado em João Pessoa-PB há mais de três décadas. Professor titular aposentado do curso de Letras da UFPB. Poeta e crítico literário. Autor de Barrocidade, Ahô-ô-ô-ô-oxe, Poemail, entre outros.

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