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MAR PARAGUAYO, DE WILSON BUENO

Por Samuel León, Adalberto Muller e Douglas Diegues.


Este livro é uma edição comemorativa dos trinta anos da publicação de Mar Paraguayo em 1992, por esta editora. Trata-se de um livro único em nossa literatura, haja vista o fato de que foi escrito numa língua fronteiriça — que se vale do português, do espanhol e do guarani —, e que, talvez por isso mesmo, foi republicado (sem ser traduzido) no Chile, na Argentina e no México (ver Bibliografia), transformando-se num caso raro de objeto literário transnacional não identificado.


Os leitores encontrarão nesta edição (na primeira parte) a mesma apresentação da edição de 1992. No entanto, o texto foi revisto em confronto com o datiloscrito original, e a ortografia dos termos em guarani foi uniformizada de acordo com critérios de transcrição usados no material bibliográfico com o qual Wilson Bueno trabalhou durante a escrita da novela. Os parâmetros usados para a transcrição e para a revisão do texto estão explicitados nas “Notas lançadas ao Mar Paraguayo”, que abrem a segunda parte desta edição. Aí também os leitores encontrarão notas mais desenvolvidas sobre o uso que Bueno faz do idioma guarani, e sobre algumas palavras específicas, que abrem verdadeiros abismos interpretativos. Em seguida, na “Pequena História Bibliográfica de Mar Paraguayo”, Douglas Diegues guia os leitores pelas praias e pelas ondas do Mar Paraguayo, revelando algumas das fontes de criação da obra, comentando as edições estrangeiras e iluminando alguns aspectos do processo de escrita de Wilson Bueno, além de apontar para os seus desdobramentos. Na terceira parte, apresentamos três leituras de Mar Paraguayo (por Adrian Cangi, Reynaldo Jiménez e Andrés Sjens) publicados originalmente nas edições argentina e chilena da novela de Bueno.


Com esse texto estabelecido e esse aparato crítico, acreditamos fazer jus ao autor paranaense que marcou o meio literário dos anos 1980 e 1990, e que nos deixou órfãos de uma literatura transgressiva, potente e iluminadora.

Os editores




SOPA PARAGUAIA


Néstor Perlongher


A publicação de Mar Paraguayo, de Wilson Bueno, coloca-nos diante de um acontecimento. Os acontecimentos costumam chegar em silêncio, quase imperceptíveis, somente os mais avisados os detectam. Mas, uma vez que se instalam, que tomam lugar, é como se esse lugar lhes tivesse sido destinado desde sempre. Tudo parece igual, porém, de uma maneira sutil, tudo se modificou. O acontecimento provocou uma alteração nos hábitos rotineiros, acaso nos ritmos cósmicos; uma perturbação que tem um não sei quê de irreversível, de definitivo.


Neste caso, o acontecimento passa pela invenção de uma língua. A imitação e a invenção representam, diria Gabriel Tarde, grandes paixões (práticas) dos homens. Será que foi realmente Wilson Bueno quem “inventou” o portunhol (um portunhol malhado de guarani, que realiza por debaixo, na medula palpitante da língua, aquilo que o poeta argentino — ou, melhor, correntino — Francisco Madariaga invocava do alto de um úmido surrealismo luxurioso: gaúcho-beduíno-afro-hispano-guarani); ou, do seu altazor artístico, ele o pegou, o foi tomando de um ou outro trecho de conversa, banal, boba, com a cuia na mão e a “china” (ou a gringa...) passando o chimarrão, em cadeirinhas de palha, no quintal atrás da cozinha. Ele o foi pegando, em português e em espanhol (onde tem o sentido de “colar”), foi deixando que entrasse por um ouvido sem que pudesse sair pelo outro. Embora pareça surpreendente, Wilson Bueno tem algo de Manuel Puig (porque a sua escritura se baseia na conversa, ela joga conversa fora), e também algo de cronista, pois recolhe um modo de falar bastante difundido: praticamente todos os hispano-americanos residentes no Brasil usam os inconstantes, precários, volúveis achados da mistura de línguas para se expressar.


Essa mistura tão imbricada não se estrutura com um código predeterminado de significação; quase diríamos que ela não mantém fidelidade exceto a seu próprio capricho, desvio ou erro.


O efeito do portunhol é imediatamente poético. Há entre as duas línguas um vacilo, uma tensão, uma oscilação permanente: uma é o “erro” da outra, seu devir possível, incerto e improvável. Um singular fascínio advém desse entrecruzamento de “desvios” (como diria um linguista preso à lei). Não há lei: há uma gramática, mas é uma gramática sem lei; há uma certa ortografia, mas é uma ortografia errática: chuva e Iluvia (grafadas de ambas as maneiras) podem coexistir no mesmo parágrafo, só para mencionar um dos incontáveis exemplos.


Mescla aberrante, Mar Paraguayo tem algo de sopa paraguaia. Tal prato não boia, como poderia se supor, na água do caldo: é uma espécie sui generis de omelete ou empanada. As ondas desse Mar são titubeantes: não se sabe para onde vão, carecem de porto ou roteiro, tudo boia, como numa suspensão barroca, entre a prosa e a poesia, entre o devir animal e o devir mulher.


Em toda a extensão do frondoso Mar Paraguayo — associável a um poema épico-escolar: “incomensurável, aberto e misterioso a seus pés”, do romântico rio-platense Esteban Echeverría — a poesia nos espia, pula sobre nosso colo como um cachorrinho — o microscópico Brinks ora brincalhão, ora feroz. Poesia do acaso: ela sai, criticariam adustos escribas, como que casualmente, não há determinação na indeterminação... Cabe lembrar, por exemplo, que em espanhol sin, ao invés de “sim”, quer dizer “sem”, com o qual se retira da afirmação a sua existência. Algo infinitamente cómico espreita, do mesmo modo, na substituição de son (são) por san (santo).


A comicidade desenfreada, não provocada, mas filha “natural” do próprio amálgama lingual, é, ainda, outra marca deste inquietante texto. Experiência de vanguarda, cabe compará-lo, talvez, ao Catatau de Paulo Leminski (significativamente, também paranaense) e, mais além, mais ousadamente, a Larva de Julián Ríos: todos eles brincam com a língua, inventando ou reinventando-a. Mas se em Catatau há um fundo de alta cultura, que, a despeito dos desmoronamentos, destruições e reconstruções, impregna o subtexto, no livro de Bueno esse fundo é cômico (um riso patético, desgarrado), é a tragicomédia das misérias cotidianas encarnada nos deslizes dos idiomas, um quê de telenovela trágica que acaba mal ou não acaba... Claro que tudo dotado de maior densidade, espessa: pode até soar divertido, mas não se trata de nenhum divertimento.

O mérito de Mar Paraguayo reside exatamente nesse trabalho microscópico, molecular, nesse entre-línguas (ou entre-rios) a cavalo, nessa indeterminação que passa a funcionar como uma espécie de língua menor (diriam Deleuze e Guattari), que mina a impostada majestosidade das línguas maiores, com relação às quais ela vaga, como que sem querer, sem sistema, completamente intempestiva e surpreendente, como a boa poesia, a que não se quer previsível. E como o quilométrico cachorrinho da marafona guaratubense, que estica num quilométrico diminutivo (tomado, flor da terra, do guarani, cuja salpicada irrupção intensifica a temperatura poética do relato) a microscopia da sua grandeza, nos arrasta e seduz com o movimento da sua cauda bifurcada, como se fosse uma sereia fingindo ser manati, um manati fingindo ser sereia, e no fagulhar de escamas nos afogássemos, no êxtase iridescente deste mar vasto e profundo.


Por último, como ler Mar Paraguayo? Aqueles que têm obsessão pelo argumento (que existe, mas é tão indeciso e emaranhado quanto a matéria porosa que o compõe) e deixam de lado o elemento poético das evoluções e mutações da língua, perderão o melhor, como esses leitores de romances melosos (mal) traduzidos que se contentam com o resumo mastigado. Mar Paraguayo não é um romance para se contar por telefone.


São Paulo, setembro de 1992


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