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Metamorfose Metaformose

Por Tida Carvalho


“O que significam fábulas, além do prazer de fabular?” (LEMINSKI, 1994, p. 32). Metaformose – Uma viagem pelo imaginário grego é a tentativa de trazer à tona a complexidade banhada não só de antíteses, como de vida intelectual e coletiva em meio a aparentes contradições entre mito e “verdade”, entre sacralização do milagre do mundo e um ateísmo marxista ou “cristianismo ateu”. Faz sonhar um tempo mítico, símbolo de um tempo em que o mistério ainda habitava o mundo, um conflito não resolvido entre vida e história, corpo e razão, indivíduo e comunidade, mito e desmitifação, as metamorfoses do poder e a resistência da palavra. “Em que fábula me transformo? Que significam fábulas, além do prazer de fabular?” (LEMINSKI, 1994, p. 32).


Fabulemos juntos então. No prefácio ao livro Vidas imaginárias, Marcel Schwob (1997, p. 13) nos diz: “A arte está no oposto das ideias gerais, só descreve o individual, só deseja o único. Ela não classifica; desclassifica, “as ideias dos grandes homens são o patrimônio comum da humanidade: cada um deles só possui realmente suas bizarrias. “A arte do biógrafo consiste na escolha. Ele não tem que se preocupar em ser verdadeiro; deve criar dentro de um caos de traços humanos” (SCHWOB, 1997, p. 13). É o que Leminski faz às maravilhas nas biografias dos mitos. Narciso transfunde-se em Aristóteles ou Sócrates, ecoa em Eco e nos leva à explicação de Régis Bonvicino: “observava Aristóteles, na Poética, que o (bom)poeta deve ser mais um fabulador do que um versificador” (Bonvicino, 1994, p. 9).. Em Metaformose, também batizada de “uma viagem pelo imaginário grego”, Leminski se utiliza livremente dos “mitos como ponto de partida para fabulações ficcionais e poéticas” (LEMINSKI, 1994, p. 9).


“Nadam dois peixes na água celestial, cada um para um lado. O Carneiro. Os Gêmeos. O Caranguejo. O Leão. A Virgem. A Balança. O Escorpião. O Centauro Flecheiro. A Cabra Marinha. E Aquário, o aguadeiro. E o círculo rodando uma história sem fim, o eterno retorno, o dia, a noite, a vida, o eco, os doze signos, os doze trabalhos do herói” (LEMINSKI, 1994, p. 18).


Por meio dessa fluidez, Leminski salta de um mito para outro, de uma lenda para uma divindade, de uma fábula para um provérbio. Faz desabrochar do mito, da lenda e da fábula a estrutura de sua narrativa. Nesses saltos, o poeta mergulha no vasto arquivo imagético de nossa imaginação e nas formas do imaginário grego.


Pensemos em Borges, no conto “El jardín de senderos que se bifurcan”, quando utiliza o mito do labirinto, integra-o à própria estrutura labiríntica que fornece aos textos um elo maior com a significação do mito e vai além. Também Borges, o maravilhado leitor de Schwob, nos diz que “Suas vidas imaginárias datam de 1896. Para sua escritura inventou um método curioso. Os protagonistas são reais; os feitos podem ser fabulosos e não poucas vezes fantásticos. O sabor peculiar deste volume está nesse vaivém” (SCHWOB, 1997, p. 11), assim como em Metaformose e seus mitos imaginários.


Em Leminski, esse caráter de infinitude espaço-temporal reemerge Narciso nos mitos gregos, dos quais também faz parte, por meio de um rio infindável que proporciona novos caminhos e novos desvios para as narrativas já conhecidas. Em Metaformose, o tempo cronológico foge ao entendimento do texto e permite estabelecer uma leitura anacrônica dos fatos narrados na linha que nunca termina, na mutação das estruturas narrativas labirínticas, em metamorfoses ambulantes, performando o mecanismo próprio da leitura literária e mitológica.


A agilidade com a qual Leminski mergulha e salta de um tema ou de um espaço para o outro sugere a nossa perene necessidade de deslocamento e mutação. Esse desejo de uma outra visibilidade ou percepção manifesta-se de várias maneiras. Uma delas, por exemplo, é quando o ritmo do espaço por nós habitado deixa de dialogar com a “percussão” e com os gestos do nosso corpo. Ou seja: quando a disritmia, a aspereza ou a falta de velocidade nos fazem perder o tom, é hora de acionar a nossa capacidade intuitiva e arquitetar, como nas artes marciais, outros golpes. É hora de mirar noutra direção; momento de voar para outro espaço. Como faz Perseu nas Metamorfoses, de Ovídio. Ou, como ensina Narciso nesta Metaformose: “O ser, esse sonho das metamorfoses... Não há ser, tudo é mudança, ecos, revérberos, câmbios perpétuos” (LEMINSKI, 1994, p. 19).


A história de Leminski com Narciso e Ovídio é antiga. Em 1975, o narrador do Catatau já anunciara: Anarquizo Narciso (LEMINSKI, 1989, p. 123); Todas as águas são de humor lunático... Amores de Narciso, preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar (p. 49). Como lemos ao mergulhar nesta Metaformose, o velho anúncio do Catatau cumpriu-se: saído do espelho, Narciso deixa de se ausentar. Além disso, o mito inscreve-se no espaço da exterioridade, numa imagética da alteridade, nas figurações da diferença. A escolha do mito de Narciso sugere uma certa porção romântica de Leminski enquanto poeta, embora ele releia o mito de forma bastante diferente da narrativa original.


Narciso narrador personifica a leitura de um mito às avessas, que transita no território da lírica – suas luzes e sombras –, um Narciso nublado, mas, às vezes, clarividente. Apesar de morrer de sede ao beber sua própria imagem, é interessante observar como nestas águas e formas recriadas, o mito relê outras imagens, assim, ele aciona sua própria lição original: centrar o olhar apenas em si sufoca, mata. Invertendo a narrativa original do mito, a releitura leminskiana estetiza uma outra ordem mítica: faz com que o Narciso narrador, ao deparar com a visão do outro, sua diferença, construa outras formas de olhar que o façam mover-se em múltiplas direções. Ovídio é uma das direções estéticas para onde se move Leminski. Dizendo assumir várias formas, o narrador do Catatau cita o autor de Matamorfose já na primeira página: dos exercícios de exílio de Ovídio é comigo (LEMINSKI, 1989, P. 13). Mais adiante, o leitor desse “romance-ideia” é provocado com a seguinte pergunta do narrador: Não somos os ossos de Ovídio? (LEMINSKI, 1989, p. 63). Não é difícil responder à indagação do autor e perceber os ossos – as formas – de Ovídio:


A literatura latina é pálido reflexo da grega, com a qual mantém uma relação espetacular, de original para espelho. Virgílio já está em todo Homero e Teócrito. ...Ovídio é uns alexandrinos... Em literatura, é a forma que é social. É o elemento material transmissível, a concretude do processo criativo. As formas é que são o material herdável. E da literatura grega a latina recebeu todas as suas formas. Seus ‘designs’ de texto. Seus programas. Seu ‘software’ morfológico. Suas configurações desejáveis... (LEMINSKI, 2001, p. 11).


Antes do mar, da terra, e céu que os cobre/ Não tinha mais que um rosto a Natureza:/ Este era o Caos, massa indigesta, rude,/ E consistente só num peso inerte... (Ovídio, Metamorfoses).


Antes do Caos, da Terra, do Tártaro e de Eros, antes das potestades que pulsam nas Origens, tenebrosas potências do abismo primordial... Antes do mar e da terra e do céu que tudo cobre, um só era o rosto da natureza no mundo, aquilo que chamamos Caos, massa rude e indigesta, apenas peso inerte, desconjuntada discórdia das sementes das coisas (Leminski, Metaformose).


O poeta e compositor Arnaldo Antunes, no artigo “Vida ou vida”, diz que Metaformose é um texto inclassificável como gênero, e indaga: “narrativa ou reflexão? poema em prosa ou ensaio? ficção ou texto didático?” (2000, p. 133). É possível que o exercício da ruptura de gêneros acionado pelo poeta que biografou Jesus, Trotsky, Cruz e Sousa e Bashô, em Vida, faça com que o texto de Metaformose seja um pouco disso tudo que Arnaldo indaga. Pode tratar-se, sobretudo, de uma prosa-poética produtora de significantes, através dos quais a língua mais celebra e goza enquanto cria sentidos.


Desde Catatau (1975), Leminski sempre rompeu com a noção de gênero literário. Metaformose (1994) é também um instigante monólogo, cujo título – desentranhado de um poema do próprio autor, feito nos anos 60 – já anuncia essa ruptura. A partir do título, o poeta reconstrói uma usina de signos, sons e formas; o que nos remete a uma pluralidade de significantes, como: meta, metáfora, morfologia, metamorfose, forma... Usa os limites, as crises do seu tempo e seus paradoxos como matéria-prima, como fontes de criação. O poeta transforma a crise em substância. De posse do arquivo de formas da tradição, ele rompe com a noção de gênero literário, simula estilos, recicla ditos, relê mitos e provérbios recriando a estrutura da língua.

     

Palavras da Pítia: “todo diverso em idêntico se converta, toda a diferença consigo mesma coincida” (LEMINSKI, 1994, p. 19).


Como quando uma história tem dois finais, como quando uma história tem vários começos, como quando uma história conta uma outra história” (LEMINSKI, 1994, p. 20). Busca-se interpretar a maneira como é tratado o mito de Aracne, refletindo sobre a reinvenção e releitura da Mitologia e da Literatura greco-latinas na escrita contemporânea.


Atribui-se a Ovídio, autor das Metamorfoses, nosso conhecimento do mito de Narciso, no qual dois aspectos chamam a atenção: o espelho formado pela água límpida da fonte, no qual Narciso contempla e se apaixona pela sua imagem, e sua metamorfose, ou transformação na flor narciso. Esses aspectos são importantes ao considerar a temática de Narciso que Freud introduziu na psicanálise, dando início a outro longo percurso na história da disciplina. Essa temática remete à questão das origens da própria constituição do ser humano – em Freud, que postulou um narcisismo primário como fundamento do humano; e em Lacan, com seu famoso artigo sobre o estádio do espelho, condição imprescindível para a constituição do sujeito. Nesse artigo, Lacan, mesmo sem se referir ao mito, vai abordar a relação entre o sujeito e a imagem, seja por meio do espelho, seja pelo olhar do próximo, podendo ser considerado no seu todo, o estádio do espelho, como inserido no campo narcísico.


Augusto de Campos, no artigo “Metamorfoses das Metamorfoses”, comenta que a obra de Ovidio é umas das poucas puramente cinematográficas, pois no cinema há a magia por meio de imagens sequenciadas, assim como nas Metamorfoses, que “[...] projetam sobre o leitor na sua enxurrada fantástica de transformações, onde a todo momento afloram ao primeiro plano as “fusões” de seres animados e inanimados, ‘mudadas formas em novos corpos’ (CAMPOS, 1978, p. 191).


No artigo “Trans/paralelas”, Leminski parece dar pistas sobre o que pensava da interpretação do universo greco-romano, quando diz que se pode entender como “tradução todas as aproximações do tipo da paródia (= canto paralelo), que tem intuitos burlescos, da paráfrase, que tem intenções serias […] da diluição de uma mensagem original em (quase)-similares, mais ou menos afastados do seu protótipo” (2001, p. 82). Portanto, para Leminski toda vida cultural de uma sociedade é um processo constante de traduções que se transformam em novos originais. 


O subtítulo, “uma viagem pelo imaginário grego”, atualiza o tema da transformação e Leminski reinventa Ovídio, reconta uma série de mitos gregos, sob a ótica de um poeta ocidental culto e sob a experiência de letrado multidisciplinar. O narrador Narciso enlouquece com as metamorfoses, as “mudanças de tudo em tudo”, sobretudo evidencia o projeto leminskiano de autoleitura, em que o narrador-personagem se confunde com o narrador-Leminski. O jogo dos espelhos é um tema presente na obra do autor, e na metamorfose de Eco, relaciona o som das palavras com sua forma concreta como os sons que se fixam com as letras do alfabeto: “Que é um eco senão a transformação de uma voz em pedra, no eternamente idêntico a si mesmo, como fazem as letras do alfabeto” (LEMINSKI, 1994, p. 31).


Metaformose, obra póstuma, consolida o erudito, o literato e o homem fascinado pelo submundo, os marginais e o insólito. Nesta metamórfica obra, Leminski sacramenta a negação das fronteiras tradicionais entre os gêneros, entretecendo, como Aracne, mito e ficção, conto e poema em prosa, mesclados de aforismos. À concepção tradicional de intriga e cronologia, opõe narrativas curtas de formas inovadoras que apresentam não uma realidade catalogável e sim o trajeto de uma experiência, a narrativa enigma. Com Metaformose, reinaugura o gênero, agora dos mitos, alheio à história, retraçando o individual de cada mito, recriação da Grécia antiga com a erudição como meio de reescritura, com um texto excepcionalmente imagético, nos dá falsas e lindas pistas, mistifica e mitifica, faz passar o real pelo imaginário e o imaginário pelo real, em um eterno recriar da multiplicação infindável de reminiscências literárias, Leminski continua anunciando sua filosofia e mí(s)tica pessoal numa dialética poética que integra o eterno ao fugidio, a criação à destruição, a vida à criação.


O objeto, o mito, não é a representação, senão a ideia, o gesto. Sabemos que não repetimos o passado, a não ser o que dele chega ao futuro. Buscar no futuro o que falta do passado.


No prefácio de As palavras e as coisas, Foucault afirma que a monstruosidade que Borges faz circular em sua enumeração caótica consiste em que o espaço comum do encontro se encontra mesmo nas ruínas. Espaços e tempos heterogêneos não cessam de encontrar-se, confrontar-se, cruzar-se ou amalgamar-se. No mito, tudo pode voltar a começar sempre, não por castigo como o de Sísifo, mas por prazer renovado por redescobrir, por reinventar, como o faz Leminski.


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* Tida Carvalho é doutora em Literatura Comparada pela UFMG e tem pós-doutorado com o trabalho As vanguardas no tempo – Um lance de viagem da e na linguagem jamais abolirá o barroco: o resgate da máquina do mundo galáctico de Haroldo de Campos, também pela UFMG. Ensaísta, professora de Literatura Brasileira e afins, na Universidade Estadual de Montes Claros. Autora dos livros O Catatau de Paulo Leminski, (des)coordenadas cartesianas, Dois quartos, poemas, com Hugo Lima, e Pretéritos amanhãs.


Referências


ANTUNES, Arnaldo. Vida ou vida. In: ______. 40 escritos (Org. João Bandeira). São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 133-135.

BONVICINO, Régis. Notas sobre Metaformose de Paulo Leminski. In: LEMINSKI, Paulo. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 9-12.

BORGES, J. L. El jardin de los senderos que se bifurcan. In: Ficciones. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

CAMPOS, A. de Metamorfose das Metamorfoses. In: ______. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 191-198.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes 2019.

LEMINSKI, P. Catatau. Porto Alegre: Sulina, 1989.

_______. Latim com gosto de vinho tinto. In: ______. Ensaios Crípticos 2. Curitiba: Criar Edições, 2001. p. 9-17.

_______. Trans/paralelas. In: ______. Ensaios Crípticos 2. Curitiba: Criar Edições, 2001. p. 81-83.

 

_______. Metaformose: uma viagem pelo imaginário grego. São Paulo: Iluminuras, 1994.

OVIDIO, P. Metamorfoses. Tradução de Bocage. São Paulo: Hedra, 2007.

SCHWOB, Marcel. Vidas imaginárias. São Paulo: Ed. 34, 1997.

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