Por Claudio Daniel
“A poesia – toda – é uma viagem ao desconhecido”, escreveu Maiakovski. Ou ainda, “permanente hesitação entre o som e o sentido”, segundo Valéry; “poesia é inspiração”, no dizer de Bob Dylan, “a linguagem voltada a sua materialidade”, no parecer de Jakobson, ou ainda “as melhores palavras na melhor ordem possível”, conforme Coleridge, o autor do poema sonhado Kublai Khan. Em No éter da voz, do poeta maranhense Neurivan de Sousa, encontramos muitas vozes, orquestradas por um autor que sabe unir com finíssima sensibilidade sua mitologia pessoal e rigoroso labor da linguagem. Ele é capaz de ações poéticas inusitadas, como “aprender com as formigas / o itinerário do inadiável”, “invocar orvalhos / sobre as córneas / do que me absurda”, ou ainda “cortar a língua do tempo / em pequenos pergaminhos”, sempre com medida precisão cabralina. É uma poesia fanopaica que não se contenta com o registro fotográfico de paisagens, objetos ou seres, com alta definição de cores, volumes, contornos; o seu olhar, ao contrário, transforma aquilo que vê, inclusive a si mesmo, num espelho de metamorfoses, o que permite ao poeta, à maneira de Lautréamont, “ter barbatanas às avessas”, “roer com os olhos” e “cortar a própria língua / pra ter voz no sangue”.
O poeta não pratica, porém, a escrita automática dos surrealistas; antes, busca o imprevisto a partir de imagens poéticas que recordam as “palavras peregrinas” da escritura poética barroca, em que não faltam jogos e enigmas como estes: “três almas aquáticas / atadas ao mesmo fio / de silêncios e distâncias / a contornar as margens / deste rio que as retém / o éter o óxido o hálito”. O espírito lúdico que habita esses poemas, fazendo das palavras matéria modelável, não exclui, ao lado da imersão metalinguística (“debaixo de cada pedra / repousa um verso em estado bruto”), a reflexão existencial; assim, em algumas das peças mais incisivas do volume, lemos: “no útero da palavra / me refúgio de mim”, “meu outro eu transita / entre papiros e papoulas / como mercador de memórias”, numa duplicação do eu que segue de perto a tradição portuguesa de um Sá de Miranda (“comigo me desavim / sou posto todo a perigo / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”) a Mário de Sá-Carneiro (“Perdi-me dentro de mim / Porque eu era labirinto / E hoje, quando me sinto, / É com saudades de mim”).
Há muitas outras vozes na poesia de Neurivan de Sousa, desde as referências regionais, presentes nos nomes de plantas ou aves (canarana, mandacaru, garça-branca, arara-azul) e a lírica amorosa (Teu nome quer / saltar da minha boca”) até um estranha anatomia (“entre fêmur e crânio / sob o escárnio do silêncio”), os desertos (“ossos silábicos – resistindo à aridez de um arizona”), imagens urbanas (“As sirenes e semáforos as buzinas e motoboys / o trânsito que dilacera / o cadáver do cotidiano”), as memórias da infância (“Da sua singer antiga / com mãos de moinho / mamãe costurava / sonhos para os filhos”), uma discreta religiosidade (“não alcanço na razão / essa tua onipresença / nua de materialidade / a extrapolar a mecânica / do tempo-espaço”) e a crítica a uma época mesquinha, como é a nossa (“Eis a humanidade, / o deserto se expande / cactos e calangos / onde a vida tinha barbatanas / os olhos das margens / agora são espantalhos”).
Destaca-se também o diálogo intertextual da poesia de Neurivan de Sousa com outros poetas, o que pode ser avaliado pelas dedicatórias, epígrafes e sobretudo no poema que escreveu à memória do jovem e talentoso poeta Carvalho Júnior, falecido em 2021, em que encontramos versos como estes: “um dizer que retine nas ranhuras / deste relevo de impermanências / para que o sol amanhã o decifre”. A escritura poética de Neurivan de Sousa, que se insurge “contra a voz do diabo / no milharal dos corvos”, não se resume a uma única linha temática ou de pesquisa formal; ele multiplica sua voz em muitas vozes, densas, inventivas, perturbadoras, que inserem o autor entre os mais interessantes da poesia brasileira contemporânea.
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