Por Lau Siqueira
Acompanho a produção poética de Paola Schroeder nas redes sociais já faz algum tempo. Uma artista cercada de multiplicidades. Artesanias e malabarismos conduzem o ritmo e a imagem nos seus versos. Um pé na filosofia, um passeio nas artes visuais, um baile de motivos freudianos e em tudo uma expressividade sagaz, um desaguadouro de emoções dilacerantes. Tudo ajustado cuidadosamente, planejado milimetricamente. Não sobram nem faltam palavras em seus poemas.
Paola nos revela um diálogo de plena luz com o “inconsciente estético”. Parece executar algo que Jacques Rancière julga revolucionário: “a abolição de um conjunto ordenado de relações entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade”. Ela sabe o chão que pisa e pisa forte. Talvez poucos percebam, mas o primeiro poema do livro é a capa, onde assina uma imagem de pura provocação poética. Uma colagem digital de grande expressividade. Tal qual seus versos, cuja complexidade se traduz em cada verso. O olho que tudo vê, também transforma e refaz-se na íris.
A produção de imagens arrebatadoras e provocantes faz parte da usina criativa desta paranaense, natural de Toledo, onde ainda reside. A reverberação dos seus silêncios habita cada uma das suas criações. Experimentações que buscam permanentemente o terreno movediço das exatidões. A imagem criada revela a extensão dos seus impulsos criativos. A sensualidade, a espiritualidade, o real e o irreal, a parcimônia e a sofreguidão. Ela possui a sensibilidade de quem, antes do canto, ausculta o pássaro no voo e o silvo da brisa na fresta da janela.
A beleza libertária da poesia de Paola está, pois, condensada na capa. Mais que isso. A imagem revela uma tradução da nossa inexplicável presença no mundo. No mais, encontraremos em cada página poemas de muita densidade. Um mix de volúpia e repouso no que se guarda para o jorro expansivo de cada verso. A poeta mergulha e emerge sem medo de expor as cicatrizes. Marcas que são próprias no exercício pleno de existir. Transformações permanentes na universalidade natural da arte. Demonstra uma força que traz a vida inteira pela mão e a coloca dentro do poema. Expõe, mas não confessa. Desnuda-se no que é sugerido e nunca revelado.
Edgar Morin dizia que sua vida intelectual era inseparável da sua vida: “não escrevo de uma torre que me separa da vida, mas de um redemoinho que me joga em minha vida e na vida.” Paola também destrói o mito da equidistância na produção poética. Rebela quando se revela. Tudo é transbordamento ao tempo em que oculta e omite. Lembra muito Décio Pignatari afirmando que a poesia é um tipo de artes plásticas. Sua poesia é impulsionada pelo ritmo que, conforme já foi dito por aí, estrutura a produção. No mais, tudo é imagem e movimento.
De uma geração que cresceu na explosão das redes sociais, Paola faz uma poesia refinada e despreocupada com as possíveis reações imediatas. Não coleciona clicks nem compartilhamentos. Estreia em livro cumprindo seu diário de amplitudes. Parece ter estabelecido um pacto com as trincheiras da sua pele. Não quero parecer precipitado. Afinal, estamos conversando sobre o primeiro livro de uma jovem poeta. Todavia Paola lembra Schopenhauer afirmando: “o estilo é a fisionomia do espírito”. Optou por desvendar sua identidade artística antes de expor-se no caldeirão das diluições contemporâneas. Nunca estamos prontos, mas posso dizer que sua poesia já tem rosto.
Paola construiu naturalmente uma unidade sonora dentro de uma diversidade temática que vai do erotismo às convulsões psíquicas do nosso tempo. Tudo em si é voo e mergulho. Com sua obra já devidamente lida e apreciada por gente experimentada na poesia, a poeta chega com jeito de quem já estava aqui. Linguagem madura, possui uma forma muito pessoal de constituir-se e reinventar-se em seus versos. Carrega a poética do sangue correndo nas veias, da pulsação e da calidez.
Sem ser descritiva vai descortinando significados, desconstruindo e reinventando seus códigos. Ciente do fingimento pessoano também reencontra Morin, para quem “a sinceridade só pode ser pura em um momento particular de combustão, entre os gases que que a alimentam e a fumaça que dela se desprende”. Lapidar, refinar, desobstruir passam a ser verbos consolidados nas suas escolhas. Ela sabe que tudo é uma permanente transformação na metalurgia da palavra.
Em Paola, as impermanências se interpenetram. Tudo é invenção e desconstrução. Somente a soma de significados é permanente. Imagens surgem e desaparecem no horizonte de cada verso. A soma das suas subtrações revela a sangria social de cada esquina do mundo em versos como: “A ideia de pátria se dissolve/ na carne cortada pelo frio. /O beijo do menino é levado pelas ondas/ e amanhece cravado na areia. /Seu corpo sem vida”. Nada mais revelador da brutalidade que escreve as fronteiras do mundo.
Criadora de imagens inusitadas, Paola não estabelece limites ao tempo em que expande sua verve. Não faz concessões às brutalidades banalizadas. É uma monja das delicadezas. Não negocia com os mercadores da facilidade. Sabe onde quer chegar e caminha a passos largos. Sabe que a beleza é difícil e até mesmo o que parece simples, nunca é fácil. Assim escreve e reescreve cotidianamente de forma estendida. Revela sua inquietação maior na construção de metáforas pouco comuns. Afinal, como dizia Borges, “por que diabos os poetas pelo mundo afora, e pelos tempos afora, haveriam de usar as mesmas metáforas surradas quando há tantas combinações possíveis?
A poeta transita nos extremos para arrancar o que sentimos enquanto metáfora. Reverbera seus silêncios enquanto revela-se na sonoridade de cada verso. Tipo “Película na roda dentada” ou “Tua cor devorada”. Em sua poesia encontramos a sensualidade sem concessões. Sem os apelos casuais que aguçam instintos e instintivamente desaparecem. Para ela, nada é explícito. Todavia tudo é revelação. Eis a poeta e suas estacas, demarcando os territórios sem impor os muros do lugar comum.
“Afiar as garras no coração. / Unhas negras sangram os olhos. / Pelo envolto em face, seios./ Fome que atravessa o corpo./ Fêmea enfurecida espreita o desejo./ Arisca recua antes da presa gemer./ Por instinto tua caça é perpétua./ Ofereço minha carne.” Escreve a poeta no poema ‘Sussuarana’. Em poemas assim as possibilidades do leitor ou da leitora assume a reorganização dos significados. Ela despreza as obviedades, as revelações muito mais instintivas que cerebrais. Em verso algum, palavra alguma é revelação.
Tudo é descoberta. Tudo vai serenando até entorpecer de encantos sua inesgotável leitura. “Em cada braço uma força/ e em cada força uma braçada./ Habito um lugar de passagem. Neste espaço a esperança se finda. / Emerjo amplificando o que não existe.” A poeta vai descrevendo emoções que perambulam pelas esquinas. Como se fosse portadora de uma chave que prefere sempre deixar a porta aberta, mostrando as sombras, os murmúrios, as pequenas batidas de uma intimidade que nos habita naturalmente.
Paola caminha com “O pé umedecido pelos musgos.” Sabe o quanto é escorregadio viver. Sabe lidar com a intuição que, segundo Fayga Ostrower, “ao contrário do instinto, permite-lhe lidar com situações novas e inesperadas. Fayga também escreveu que “criar é um processo existencial”. Paola, consciente ou inconscientemente, sabe disso. Por isso faz da vida um espelho d’água, onde vê seu rosto tremulando nas calmarias, ou mergulhado em tempestades. A interpretação de si mesma enquanto um ser de linguagem, faz da poeta um ponto fora da curva na mesmice imperial desse estranho ofício de escrever poemas.
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