Por Claudio Daniel
A poesia brasileira produzida na última década – período conturbado de nossa história, abalado por um golpe de estado seguido por um regime semifascista que ameaçou destruir a democracia e os direitos sociais – é uma poesia tão heterogênea que não se enquadra nos escaninhos habituais da crítica literária. Hoje não temos novas teorias poéticas ou movimentos de vanguarda, ao contrário do que houve das décadas de 1950-1960 (Poesia Concreta, Poesia Processo, Poesia Semiótica, entre outras), nem mesmo tendências bem delineadas, como nas décadas de 1990-2010 (minimalismo, neobarroco, etnopoesia, para citar poucas linhas criativas), e é possível reconhecer mesmo um certo conformismo estético, ideológico e comportamental em muitos autores de agora, mais interessados em concursos, prêmios e na temporária fama midiática do que em pesquisar novas possibilidades para a escrita poética. Para esses autores, uma citação em algum jornal diário, uma entrevista, uma publicação por uma grande editora ou o prestígio na universidade são os objetivos a serem alcançados. A crítica literária, por sua vez – ou o pouco que sobrou dela, após a extinção dos suplementos literários, dos cadernos de cultura e das poucas colunas dedicadas à poesia – abriu mão dos conceitos de inovação e qualidade, colocando em seu lugar o culto aos autores da moda, publicados por grandes editoras, que exercem sua influência explícita em concursos e festivais literários, impondo o monopólio de seu catálogo editorial, nova bíblia do deus Mercado. O que prevalece hoje não é uma poesia formalista, nem informal, mas a-formal, indiferente ao trabalho de investigação estética. É um triste paradoxo que esse quadro – no qual se insere também a quase extinção das grandes livrarias – surja exatamente numa época em que há tantas ferramentas tecnológicas à disposição para a divulgação literária e o trabalho poético! Além das mídias sociais, da publicação banal de selfies e vídeos, há uma infinidade de recursos eletrônicos que poderiam ser utilizados em formas poéticas totalmente novas, mas esse talvez será um desafio para outro futuro, ainda distante, quando poesia e tecnologia enfim se reconhecerem como irmãs siamesmas. Mas vamos falar sobre o hoje! Na contramão da passividade conformista, do “coro dos contentes” e milk-shakes angelicais, que nada acrescentam à evolução das formas na poesia brasileira, há autores que estudam, pesquisam, se interessam pelos poetas mais densos, herméticos e inventivos da Modernidade – de Cummings a Lezama Lima, de Paul Celan a Herberto Helder, de João Cabral a Haroldo de Campos – e se lançam a escrever aceitando todos os riscos, inspirados por um ideal ético e estético confuciano, traduzido por Ezra Pound como make it new: faça-o novo. Ou, como traduz Augusto de Campos: “Renovar / dia a dia / sol a sol / renovar”. O diálogo criativo com a tradição literária não significa imitar o inimitável, mastigar o já mastigado, e sim iluminar os trajetos ainda não totalmente explorados na arte poética: o que significa buscar desde a poesia asteca e suméria, iorubá ou coreana, mongol ou yanomâmi até as invenções ainda não plenamente assimiladas de Sousândrade, Pedro Kilkerry, Arno Holz, Gerard Manley Hopkins, para citar poucos nomes. Sem dúvida, aceitar o desafio histórico de investir na densidade, na consistência, na experimentação, é trabalho para poucos valorosos argonautas, e é com felicidade que reúno nesta breve antologia alguns dos novos poetas brasileiros que pertencem à excêntrica família dos insatisfeitos com a banalidade; jovens ou autores maduros que estudam, pesquisam, estão com as antenas bem ligadas, recebendo os “estranhos sinais de Saturno”, como diria Roberto Piva, para a busca de outras fronteiras, outros roteiros, outros pontos de vista sobre o que é escrever poesia hoje. Como escreveu certa vez o poeta francês Charles Baudelaire, toda crítica literária é parcial, e esta antologia aceita, sem temores, a audácia de suas escolhas e recusas: é uma antologia crítica, que reuniu 36 autores que apresentam notável trabalho de pesquisa de linguagem e experimentação. A sequência dos poetas e poemas na antologia não obedeceu a critérios de ordem alfabética, cronológica ou temática; os textos foram colocados em ordem aparentemente aleatória, mas seguindo um roteiro plástico e rítmico, pela combinação de cores, timbres, tons e alturas numa “música possível”, para citarmos Drummond. Dedicamos essa mostra poética à memória do maranhense Carvalho Júnior (1986-2021), um dos mais inventivos poetas da nova geração, que nos deixou precocemente, aos 35 anos de idade, vítima da pandemia do Covid-19 – e sobretudo do descaso do estado brasileiro na época em relação à saúde pública, que alguns comparam a uma política deliberada (e impune) de genocídio. Que os ventos de mudança surgidos após a derrota do semifascismo tragam bons augúrios a nosso país, inclusive no campo da poesia.
No Ano do Dragão de Madeira
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*Prefácio do livro Novas vozes da poesia brasileira (Uma antologia crítica), organizada por Claudio Daniel, que pode ser adquirido na página:
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