top of page

O Andarilho e a Ostra Velha

Foto do escritor: jornalbanquetejornalbanquete

Por Thales Estefani


A recém-criada Ah! Editora, de Juiz de Fora (MG), acaba de publicar em versão impressa e e-book sua terceira obra. Trata-se do livro ilustrado de Lucas Lins e Silva (texto e ilustração) e Maria Inês Martins (ilustração), que traz no título a indicação relacional entre dois personagens – O Andarilho e a Ostra Velha –, mas apresenta para o leitor um ambiente ficcionalmuito mais amplo e complexo, cheio de vida em cada canto.

 

O cenário principal é uma praia, a Praia das Conchas, que, como o próprio nome sugere, é repleta de conchas de diferentes tamanhos e cores. Próximo desse local, há um campo gramado e, mais ao longe, a casa de uma família. Além deles, o único humano a ocupar esse cenário paradisíaco é um Andarilho que chega à praia e lá permanece por algum tempo. É este mesmo personagem que narra os acontecimentos da Praia das Conchas. Embora a construção visual do ambiente, feita tanto pela descrição no texto quanto pelas ilustrações, sugira calmaria e contemplação, o Andarilho descobre logo, ao encostar a cabeça na areia, que lá havia mais vida do que ele supunha: as conchas conversavam, sonhavam, andavam e viviam um mundo próprio, mantido secreto para as pessoas.

 

As ilustrações do livro, feitas todas à mão, em aquarela, conjugam-se em tema e substância com o cenário aquoso da história. Vemos, assim, por aguadas multicoloridas em que prevalecem os tons azuis, verdes e amarelos, serem representados o vai-e-vem das ondas, o fundo do mar, o Andarilho deitado ao chão, o sopro do vento nos coqueiros e no campo próximo à praia, onde pastam calmamente ovelhas que mais parecem cabras – há de se verificar isso!

 

Vale dizer que O Andarilho e a Ostra Velha teve a sua primeira edição publicada em Portugal pela Cordel d’ Prata em novembro de 2023, sob o título A Ostra Velha. A nova edição, feita pela Ah! Editora, além da modificação do título e adaptações textuais convenientes, reapresenta as ilustrações de Lucas e Maria Inês com todos os traços e evidências de sua criação. O corte das imagens no limite das páginas não esconde mais o falhar do pincel quando a tinta acaba, ou as anotações na beirada do desenho, as margens feitas à lápis… Assim, o retrato ilustrado do ambiente costeiro habitado pelas conchas parece, de fato, um diário imagético feito à mão, sobre as experiências vividas e histórias ouvidas por aquele Andarilho.

 

Estando o leitor já familiarizado como sereno cenário da história, o que haveria de acontecer para desestabilizar a situação inicial e dar origema uma jornada; que tipo de busca ou desejo movem os seres que lá estão? As conchas, segundo nos conta o Andarilho, nascem juntas, formadas por duas metades idênticas e perfeitas, que por algum motivo se separam um dia. Na Praia das Conchas, algumas delas esperam que as ondas tragam de volta o seu par, ou que outras conchas tragam notícias vindas de diferentes correntes marítimas ao redor do mundo. Há ainda aquelas que decidem se aventurar e sair em busca do seu par pelo oceano… Quando um “casal” se reencontra, há uma verdadeira festa na praia. O Andarilho é um observador passivo (e encantado) de toda essa dinâmica!

 

É exatamente com a apresentação do tema do reencontro das metades das conchas e de histórias particulares de alguns desses personagens que a narrativa alcança seu principal potencial reflexivo. Ao tratarda busca eterna das conchas por aquela parte que as completa, Lins e Silva e Martins acabam por sugerir temas que vão desde a mais objetivamente identificada busca pelo amor romântico, até o desdobramento metafórico da procura pelo sentido da vida, daquilo que traria a sensação de completude existencial. Está aberto a muitas interpretações.

 

As personagens conchas centrais na comunidade são Kron, uma figura heroica que ajuda todas as outras conchas;Mira, uma concha que foi levada da praia um dia e passou a ser usada como cinzeiro pela família que mora na casa além-campo; e a Ostra Velha, chamada só de Velha, que está na praia há milhares de anos esperando sua metade. Esta última, é muito sábia e, a cada reencontro de conchas, analisa as duas partes para certificá-las de que são realmente um par, unindo-as novamente.

 

Apesar de as personagens conchas não terem gênero definido – o que é diretamente explicitado na narrativa –, inserindo a obra no debate sobre as representações de gêneronuma compreensão contemporânea desvinculada da binariedade estrita, ainda assim, é possível ler algum resquício da ideia oposta, quando associamos os nomes das conchas aos seus papéis na narrativa. Kron, que tem um nome que soa como identificado com o gênero masculino, é um herói; Mira, uma equivalente da clássica donzela em perigo que é, então, resgatada; a Velha, uma anciã que, em certo ponto da narrativa, também é salva por Kron.

 

Esse último evento, o salvamento da Velha, é especialmente relevante para a história do livro. A personagem, que está no título da obra, aparece pela primeira vez só na metade da narrativa. Para um leitor desatento, poderá parecer uma introdução tardia. Mas não é, já que a personagem alcança grande importância logo depois do perigo a que ela é exposta e sobrevive ilesa,tornando-se símbolo da mensagem principal deixada por essa sensível história. A Velha decide não mais esperar e se lançar ao mar em busca da sua completude. Seguindo seu exemplo, diversas conchas fazem o mesmo. Ao ver a cena, o Andarilho também decide partir, mas leva consigo Mira, que estava chorando, sem coragem de enfrentar o mar. Ele a prende em seu cordão e a partir daí, sempre que mergulham, procuram pela sua metade… A concha e o homem.

 

O Andarilho e a Ostra Velha foi inspirado no período em que o autor passou junto com parte da família na Praia da Comporta, no Alentejo (Portugal). Foi no início de 2020, período em que a região estava deserta por conta da pandemia de Covid. Lá, as conchas e o silêncio perturbado apenas pelo seu tilintar no movimento das ondas serviram de combustível criativo para fazer nascer a história alguns meses depois. Uma grande ostra velha foi especialmente importante. Ela mostrou, num momento de necessidade de esperança e coragem, que se pode resistir, apesar de tudo. E, mais importante do que isso, que ao ultrapassar uma experiência limítrofe, junto com aqueles que nos apoiam e amam, estamos prontos novamente para encarar a imensidão do mar e aquilo que ele nos reserva.

 

*

 

O Andarilho e a Ostra Velha é o primeiro livro para crianças escrito por Lucas Lins e Silva, mas não o seu primeiro trabalho escrevendo para esse público; o autor fez parte do grupo de roteiristas da série Detetives do Prédio Azul, há mais de dez anosno ar no canal de televisão Gloob. Além disso, Lucas vem, como veleiro sobre as ondas, trazido por ventos de uma tradição já bastante reconhecida na literatura infantojuvenil. Filho de Maria Inês Martins, sua companheira ilustradora nessa edição, que já coloriu e deuvida a tantas outras histórias;irmão de Flávia Lins e Silva, autora de livros infantojuvenis, com destaque a coleção Diário de Pilar; e sobrinho de Ana Maria Machado, referência na literatura infantil e ocupante da cadeira 1 da Academia Brasileira de Letras.

 

O Andarilho e a Ostra Velha pode ser adquirido por meio do endereço da Ah! Editora: https://aheditora.com.br/

______________________________________________________________________________________

 

Thales Estefani é artista visual.  Produtor Editorial. Formado na UFRJ. Faz doutorado na Universidade de Coimbra, Portugal, com o tema: Atravessanado a floresta entre o mundo imaginário e o real: Chapeuzinho Vermelho em transformação transmidiática. É pesquisador no Grupo de pesquisa “Literatura e Design de Artefatos para crianças e jovens no mundo digital” (UFSC).    

38 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page