Por Arnaldo Antunes
O bicho alfabeto pode parecer inofensivo.
Mas fica perigoso quando se transforma em linguagem.
Ainda mais quando a linguagem se contorce sobre si, para virar poesia.
O bicho alfabeto é sempre o mesmo, mudam os modos de usá-lo.
O de Paulo Leminski é brincar com as palavras, com os sentidos e formas das palavras.
Como se acendesse as luzes delas.
E aí ficamos sujeitos a tropeços, engasgos, sustos, curtos-circuitos, assombros e ofuscamentos.
É que a poesia dele revela o que parece que a gente sabia, mas não sabia que sabia (daí ao sabiá é só um acento).
Como não sentir a lisura da lesma no liz e les do verso “feliz a lesma”?
Ou não identificar a palavra letras na palavra estrelas — uma chuva, que dá na outra, poça?
Ou não reconhecer na “noite alta” escrita ao lado de “lua baixa”, uma desordenação que reordena mais naturalmente as coisas?
O Leminski sabia, está claro como o dia, dar essa rasteira, que nos leva até a outra beira da linguagem.
Onde o bicho alfabeto fica mais selvagem.
E suas fagulhas deram munição para o Ziraldo soltar livremente o traço, mostrando que também tem o bicho cor, que pode conversar com o bicho alfabeto com tanta intimidade, que até o branco do papel passa a fazer sentido.
Os bichos estão soltos.
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* Texto de apresentação para O bicho alfabeto (Companhia das Letrinhas, 2014), com poemas de Paulo Leminski e ilustrações de Ziraldo.
* Arnaldo Antunes é músico, poeta e artista visual, nascido em São Paulo, em 1960. Integrou os grupos Titãs e Tribalistas. Em carreira solo desde 1992, tem vários discos, entre os quais Nome, O silêncio e Saiba, e livros publicados, entre os quais As coisas, 2 ou + corpos no mesmo espaço e Algo antigo. Participou de mostras de poesia visual e realizou exposições individuais, no Brasil e no exterior.
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