Por Ademir Demarchi
Poemas tardios. Meng Chiao. Trad. e notas de A. B. Mendes Cadaxa. Nova Friburgo: Ars Fluminensis, 2000.
É curioso como certos livros vêm até nós, percorrendo caminhos sinuosos desde sua precária existência, como é típico dos livros de poemas, especialmente de tradução. Subi a serra, saindo de Santos, para ir a São Paulo, passeio que praticamente deixou de existir com a pandemia, desta vez para ir a um lançamento de livros na Patuscada, que é um ponto nevrálgico de encontros de escritores e livros, assim como é também a Patuá. Lá conheci o escritor peruano radicado no Brasil, Gonzalo Dávila Bolliger que, além de trocarmos livros, comentou sobre um de que gostara muito. Anotei e, voltando a Santos, busquei-o e o encontrei entre outros três exemplares à venda no Estante Virtual, o que sugere sua raridade. Esse livro é Poemas tardios, do chinês Meng Chiao (751-814), traduzido e anotado por A. B. Mendes Cadaxa, um poeta que foi diplomata de carreira e, entre outros livros, publicou também de poesia chinesa a antologia Escadaria de jade, em 1998, pela editora Graphia, outra raridade pouco conhecida.
O livro de Meng Chiao tem apenas 56 páginas e reúne seis poemas longos nos quais o poeta discorre sobre as paisagens áridas da China, com destaque para a descrição das gargantas do Yang-tsé, um rio que, ao passar pelas montanhas Wu, estreita-se comprimido por altos paredões de pedra por mais de trezentos quilômetros, tendo três gargantas principais muito perigosas nas épocas de cheias pelos redemoinhos, contracorrentes, sorvedouros e rochas encobertas, como informa Cadaxa, e de cujo poema destaco os seguintes versos: “Martelando, esmagando-nos com a rapidez do raio,/ cheias da Primavera – metros e metros de altura - / inundam estas corredeiras com estrondo, arrastando/ a correnteza, jade puro, para a limpidez dos remoinhos” – “e agora quando corações mais sábios aqui se ocultam/ quem controlará as queixas acerbas dos afogados?”
Os poemas relatam também o lamento da morte de outro poeta, Lu Yin (“Sempre pobres, austeros, poetas morrem por aí/ de fome, abraçando a vacuidade das montanhas,/ quando nuvens brancas não tendo quem as retenha/ derivam sem rumo, tais pensamentos errantes” – “Quando nos conhecemos, nossos cabelos eram/ negro laque; lutávamos para criar uma linguagem nova/ passávamos noites sobre pontes enluaradas/ ou em alguma estalagem, bebendo na cama/ ambos embriagados após duas taças apenas”); a pobreza do poeta, em meio à devastação da guerra (“De manhã, sobre as colinas de Lo-yang/ o céu a perder de vista parece-me infinito./ ... um lençol de gelo cobre pastos, arvoredo/ é um ano de fome, silos de cereais vazios/ até pássaros abandonam os estéreis campos./ ... Uma vez desgarrado não reencontras a Via; partidas/ e mais partidas, feridas lancinantes de um esfaimado”); a tragédia da perda de seu único filho (“Quando nosso filho nasceu estava sombria a lua/ quando morreu, resplandecia” – “Doente, envelhecido – sem filhos ou netos/ sinto-me um feixe de lenha abandonado”), a velhice e a pobreza (“Velho, não sou a mesma pessoa da manhã à noite,/ passo os dias equilibrando-me entre a vida e a morte ... Aqui, amanho uma horta mas não tenho bastante o que comer/ meus trajes rústicos como que me turbam a vista,/ este resto de pó jamais soube corrigir-se/ e quem saberá apreciar meus velhos cantos/ já que deuses e demônios no mistério dos bambus/ pranteiam, espadas afiadas em novos dragões exaurem-se?”).
Esses poemas raros, vindos de longe no tempo através de traduções empenhadas de outros poetas, circulando aqui em uma pequena edição que nos dá o testemunho da vida árida em meio ao frio congelante, pode ser antevista nesta estrofe do poema “Regato frio”, da qual chamo a atenção para os dois primeiros e o último versos, evidentemente sem minimizar o impacto das descrições presentes em toda essa estrofe:
“FRIO CORTANTE, o velhinho beira-rio chora,
suas lágrimas congeladas ao tombar tilintam.
A neve envolve animais e bestas mortas
toma as suas formas, parte este coração amargurado.
Ao congelar-se, o gume da espada deixa de cortar
e ninguém consegue a corda do arco retesar.
Dizem que os bravos jamais se alimentam daquilo
que os céus abateram. Após retalhar carne e ossos
em pedaços de jade, enterro-os; confrange-me vê-los,
são um choro lancinante por tanta beleza extinta”.
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