Por Contador Borges
Para Carlos Felipe Moisés, in memoriam.
[...] o que conta não é mais o enunciado do vento, é o vento.
Georges Bataille
“Uma noite, peguei a beleza no colo. Eu a senti amarga. E a insultei”.1 Em seu libelo contra a arte moderna, Salvador Dali comenta esta linha de Uma temporada no inferno de Rimbaud, dizendo que em sua “adolescente ingenuidade romântica” ele deu o tom do gosto estético que acabaria por prevalecer em que a feiura tornava-se o novo paradigma do belo.2 Duas décadas antes de o enfant terrible da poesia francesa formular tal impropério, Baudelaire apresenta sua concepção de beleza destacando dois aspectos, ambos fundamentais na expressão do belo: um elemento eterno e invariável e outro oposto, efêmero e relativo, funcionando em dimensão múltipla gerada por fatores epocais, enquanto o primeiro figura como unidade atemporal absoluta.3 A crer com a violência de Rimbaud e tomando como parâmetro o conceito baudelairiano de beleza, dir-se-ia que o elemento eterno e invariável, podendo também ser denominado ideal, é excedido pela potência do tempo e seus agentes, conservando do belo apenas uma imagem degenerada. Há mais de um século, portanto, é a ruína do aspecto ideal da beleza (ou mesmo sua morte) que se celebra por este paradigma em que o elemento efêmero e relativo, potencializado, aliás, pelas relações do corpo erotizado, impõe suas disposições para a vida, da qual a beleza é metáfora radiante. Baudelaire não parece indiferente a isto quando diz: “Ó Beleza! Monstro imenso, terrível, ingênuo! [...]4 Sim, a beleza: venha de onde vier, tenha parte com “Satã ou Deus, o que importa”5. Monstro, “Anjo ou Sereia”, beleza é sempre beleza. E basta. Outro tópico, desta vez introduzido por Rilke nas Elegias de Duíno, talvez esclareça (tornando ainda mais complexo) o sentido dessa dinâmica com os elementos ideal e temporal, definindo a beleza como “o começo do terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruirnos”. Para Rilke, justamente, a beleza teria a ver com essa tensão de algo que termina onde seu oposto começa, de modo que o fim da beleza e o “começo do terrível” são operadores nocionais de um mesmo fenômeno em que a influência do elemento relativo e variável tenderia a se impor. É este movimento que a legião de anjos manifesta em Rilke pelo terrífico parece figurar. Portanto, é instigante pensar que nessa concepção o sentido da beleza esteja ligado ao fascínio da morte anunciada como seu devir em plena exuberância. E mais ainda, se nos colocar na perspectiva de Bataille em que a beleza tem um aspecto profundo, fundamental no erotismo, e que vem à tona com a experiência da profanação. O terrível então seria o que a cultura recalca, obscurece, para estampar nas tintas viscosas do mal. Será exagero dizer que o fascínio da morte tem a ver com isso, do mesmo modo que o desejo de profanar a beleza de um corpo? Se assim é, forçando a terminologia baudelairiana além do limite, e com a ajuda dos anjos terríveis de Rilke, não se poderia falar de um terceiro aspecto da beleza? E se este tem a ver com o terrível ou com aquilo que nele se insinua sorrateiramente, não seria porque na relação com a beleza algo anuncia seu fim?* Para entender essas implicações e seus desdobramentos, e jogando com os dois sentidos da palavra, de finalidade e consumação, será preciso sondar mais adiante, nesta perspectiva, as disposições do corpo e da subjetividade. Algo que se é tentado a dizer por uma analogia em que o sujeito vai encontrar a resposta no fundo do abismo. É quase sempre a mesma cena que ele vive; como são as mesmas sensações no corpo (arrepios, batimentos cardíacos, sucção no estômago à maneira de uma ventosa, etc.). Mas a imagem, que é a precipitação do imaginário em suspensão simbólica, responde também na experiência erótica a disposições obscuras. Quem fala para quem e através de quem: o corpo, as pulsões, a subjetividade? É assim que algo imprevisível brota à flor da pele e se apresenta ao sujeito como uma possibilidade que, embora remota ou improvável, o impulsiona a um passo do real, como se diz do cocheiro que em sua viagem faz passar a carroça na frente dos bois. Por enquanto, que fique no ar a questão: por que a relação com o que é considerado terrível em nossa cultura parece potencializar o sentido da beleza? Em todo caso, como não identificar esse triunfo imediato do sensível acerca do qual a razão só pode calar? Ainda que reconheça o belo e sinta o impacto de sua presença, a razão só pode referendá-lo como tal ou resignar-se ante sua evidência. A sapientia, por certo. Mas a sensibilia não, ou bem mais do que isto, pois acolhe o fenômeno em seu próprio domínio, como faz um jardim com raios de sol. E ainda se pergunta pela razão da beleza. Pois ela passou apressada. Todos viram. Todos sentiram. Foi apenas um instante, mas bastou. Um momento. Ela está de volta. Já é possível olhar fixamente para ela. A beleza. Nos seres e nas coisas, nas artes e no corpo; em nome do desejo ou do sublime. E o sujeito, uma vez atingido, é difícil não se deixar impregnar com sua força, nos olhos por certo, mas não apenas neles; também nos outros sentidos, quem sabe, na audição, no tato, por que não? Ou até na medula? O “monstro” da beleza, nos termos de Baudelaire, é irresistível. A relação com o terrível parece torná-la ainda mais fascinante. Assim, em uma imagem de Niklaus Manuel Deutsch, a morte repulsiva, em sua tradicional figura esquelética, beija uma bela jovem enquanto ergue a veste da amante e avança em direção ao sexo. Esta imagem exprime bem a tensão gerada na relação com o terrível em que se produz o fim da beleza. Não é notável que o fim da beleza, sob o jugo da morte, seja representado juntamente com uma exaltação ao sexo? Com isso se passa ao tópico do fascínio da morte, derivando no segundo ensaio do livro** em que a morte, sobretudo, é examinada como experiência soberana em tempo inoperante, no cruzamento com o erotismo. Os temas centrais da beleza e da morte e seus desdobramentos são tratados em autores como Sade, Bataille, Baudelaire, Flaubert e Rilke, sendo Georges Bataille a principal referência teórica. Em Bataille, as ideias, os temas, as figuras, autorreferentes, giram em círculo como num carrossel. Se a imagem é válida, a noção de experiência está no centro do movimento por sua etimologia de experiri, “experimentar”, e no limite: “expor-se ao perigo”, colocando o sujeito na via do excesso e do dispêndio. Há então que zelar por ele nesse círculo vertiginoso olhando simultaneamente para dentro e para fora, pois em se tratando de assuntos complexos como erotismo, beleza e morte, o abismo está sempre por perto, ou nem tanto: o perigo pode ser menor; sem dúvida, ainda que o gesto de saltar de um carrossel em movimento só dê uma vaga ideia do que está em jogo nessas experiências do corpo e da subjetividade. De Bataille são aqui retomados sob uma luz trágica, decerto, mas com algum distanciamento, temas e noções como ser e falta, experiência, impossível, chance, não-saber, continuidade-descontinuidade, soberania, inoperância (suas “atividades”, seu tempo), excesso, consumação de si e dispêndio (sob o “princípio de perda”), recorrentes, aliás, nas experiências do erotismo, do sacrifício, do êxtase, do riso, da poesia, e da morte, a mais soberana de todas. A propósito, talvez se possa tomar o título desta obra, referente aos dois textos que a integram, e dizer que o fim da beleza (em ambos os sentidos) tem a ver com o fascínio da morte em seu auge, antes que valores vitais comecem a degradar-se ou que os efeitos da degradação e outras disposições da ruína se mostrem. Há algo de inquietante na beleza que aumenta a grande angular do desejo, obliterando tudo ao redor. Quem sabe isto autorize a nomear um terceiro aspecto nesse efeito de tensão (ou medo) que sua imagem produz. Esse aspecto é aquele que Baudelaire não distinguiu em seu conceito, mas deixou, por assim dizer, germinar em suas margens, como uma erva daninha.
Voltando ao ponto inicial, por que muitas vezes na cultura a visão do belo é associada à morte? E por que, nessa associação, entre pequenas e grandes mortes, a imagem da beleza é degradada, arruinada, transformada? Quantas referências, mitos e relatos não têm em comum esse vínculo? Narciso, sem dúvida, mas também Orfeu e Eurídice, ou mesmo Aracne e tantos outros. A associação entre beleza e morte complica-se ainda mais quando feita na perspectiva do erotismo, não raras vezes recorrente. E mesmo que a personagem não morra como no caso de Aracne, a jovem tecelã transmudada no repulsivo inseto por ter superado Atenas em uma competição, ou Dafne que foge de Apolo e, rogando a Gaia, é transformada em loureiro, a transfiguração não deixa de ser uma alegoria da morte no pensamento mítico, ao mesmo tempo em que a recorrência é o modus operandi de sua lógica. Mas a beleza também se vinga. E diante dela, rendidos, outras feras e monstros perdem o posto de força maior soberana. E não apenas estes, como também os homens comuns e mortais. Há, por certo, Pandora, um mito fundador da cultura entre os gregos, na narrativa de Hesíodo, em que se explicita a maior das vinganças, a de Zeus, contra o titã destemperado Prometeu, que aos olhos do soberano Olímpico, levou a hybris além da própria definição do termo, “desmedida”. Ele então enviou aos homens, protegidos de Prometeu, Pandora, figura polivalente introdutora de novos elementos para a interpretação do humano no mundo antigo, e com ela a imensa variedade dos males. Ornada por Afrodite, o androide (com a licença do anacronismo), foi também dotado, por Hermes, de um espírito enganador e de uma linguagem falsa.6 O estratagema funcionou porque todas essas qualidades foram potencializadas por uma beleza descomunal, vale dizer, terrível, extremamente sedutora.
NOTAS:
1 “Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes genoux. – Et je l’ai trouvée amère. – Et je l’ai injuriée.”Arthur Rimbaud. Poésie, Une saison en enfer, luminations. Paris: Gallimard, collection Poésie, 1973, p. 123.
2 Salvador Dalí. Libelo contra a arte moderna. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008, p.27.
3 Charles Baudelaire. “Le peintre de la vie moderne”. In: O.C. II. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1976, p. 685.
4 Charles Baudelaire. “Les fleurs du mal”. In: O.C.I. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléidade, 1976, p. 25.
5 Idem, ibidem.
6 Jean-Pierre Vernant. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1973, p. 46.
7 Pierre Klossowski. Le bain de Diane. Paris: Gallimard, 1980.
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* “O fim da beleza” é um tópico reformulado e muito ampliado de minha tese de doutorado “O louvor do excesso: experiência, soberania e linguagem em Bataille”. Um artigo com este mesmo título, aliás, embrião do presente ensaio, foi publicado em De Bergson a Rancière – Pensar a filosofia francesa do século XX, organizado por Fábio Ferreira de Almeida e Marlon Salomon. Goiânia: Edições Ricochete, 2017.
** A primeira versão desse texto integra a obra Sobretudo a noite: ensaios sobre tempo, morte, memória, organizada por Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: edições Ricochete, 2016.
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