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O livro “for mar”, de Flavio Castro

Foto do escritor: jornalbanquetejornalbanquete

Por Amador Ribeiro Neto


Capa do livro for mar, Flávio Castro. Editora 7 letras
Capa do livro for mar, Flávio Castro. Editora 7 letras

for mar, de Flavio Castro, é um livro que, de pronto, busca a cumplicidade do leitor. Seu projeto revela um primoroso cuidado em inserir o leitor como coautor da obra. Aquele que vai, a cada leitura – muitas formam-se, configuram-se, consolidam-se após cada poema lido, relido, retomado –, edificando para o leitor, para seu deleite cognitivo, uma arquitetura vernacular de fazeres – aquela, fundante da grande poiésis.


Se nos livros anteriores, Audito (2009) e Inaudito (2013), um programa poético se anuncia claramente, com for mar (Rio, 7 Letras, 2015) fixa-se uma trilogia da linguagem poética.


Flavio Castro é um exímio perscrutador dos labirínticos percursos de luz e sombra dos vocábulos. Nele, sempre o som articula-se num entranhado jogo de visualidade e significados. A palavra espaçada no branco da página, os exuberantes neologismos, a tessitura das imagens: tudo é massa de significações em alto grau.


Por isso, sua poesia é um convite a voos – ora largos, ora curtos. Todavia, sempre dentro de um rigor riscado a ponta de faca. O rigor do sol com o pacto dos cactos. O rigor do sangue – vermelho ou seco – escorrido do corpo estirado no beco.


O corpo da poesia não é frágil nem fácil para este poeta que preza as filigranas de cada consoante, de cada vogal, de cada fonema. E de cada imagem: oferenda de um devoto a seus múltiplos deuses sígnicos.


Em consonância com a afiada prática da mais condensada poesia, Flávio Castro é poeta de ardis, armadilhas e artemísias. Sua poesia aguça, açula, isca, embeleza e é um antídoto à pasmaceira dominante na cena da poesia brasileira vigente.


O “livrorrio” de Flavio Castro dialoga com as conquistas da linguagem de Mallarmé a Haroldo de Campos, passando por Cummings e Joyce, entre outros. Este leque dimensiona o fino paideuma deste poeta desassossegado e inquieto que sabe, com Octavio Paz: “a atividade poética é revolucionária por natureza; a poesia revela este mundo, cria outro”. Cônscio de que aquilo que ela inventa é a forma de usar a forma para além das fôrmas cristalizadas pelos manuais poéticos – e pelo desempenho editorial do mercado.


for mar possui 4 partes. Na primeira, que dá título ao volume, subintitulada “épico da linguagem”, não há exposição de ideias, ações, narração, contexto histórico determinado, personagens. O épico dá-se na transmutação da linguagem que processa um elo-de-elos quase ao léu, não fosse a argamassa da visualidade e da reverberação sonora. Formar sequências. Formar sentidos. Formar forma. Formar ar. Formar mar. Reverberar ondas de significações. Desta forma, as estrofes (às quais o poeta prefere chamar “blocos-estéticos”), duas em cada página, evoluem paulatinamente para, ao fim do poema, fundirem-se numa só mancha gráfica. Ou num só “espaço-tempo diagramado”.


A segunda parte, “ideogramas”, processa neologismos de uma só palavra num mix de maiúsculas e minúsculas que criam uma ligação pictórica entre letras, sílabas, sufixos, prefixos, radicais, etc., – e o significado que se abre de um link para outros links: labiríntico jogo mallarmaico-cortazar-borgeano. Cito um exemplo, colhido ao acaso:

 

novOUTrOutoNOvo

 

A altercação entre maiúsculas e minúsculas materializa, mais que iconiza, o ciclo de nova ordem/renovação/mudança/alteração do outono, em admirável síntese verbovocovisual. O poema faz-se ver, ler, ouvir e saber no ciclo das estações que chegam e passam: novo no ovo; ovo do novo. E retornam no ano seguinte. Além disso, a dupla expressão “novo outono” versus “outono novo” espelha o outro que habita o mesmo; o diverso que compõe o igual. Ou seja, destaca, entre outras possibilidades, o OUT (fora) e o NO (não) de um processo que incorpora o que não faz parte, o que não está inserido. E, ao encampá-los, insere a lei do eterno retorno nietzcheniano – que adveio ao poeta na contemplação dos elementos naturais. E ainda a retombée, segundo Sarduy, que relê Nietzsche na visada transformacional do barroco. Enfim: vida. Linguagem. Linguagens.

A terceira parte, “braille”, radicaliza um procedimento que Edgar Allan Poe, Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto constataram através da observação do código Morse. Mas, todavia, não desenvolveram: a desvocalização das palavras. Flavio Castro dá o pulo do gato e leva a percepção teórica à prática poética. O resultado são poemas que se oferecem com brincante prazer de interagir com a língua(gem) subtraída. Com isso, o poeta vale-se da decantada mais valia da linguagem: less is more – na feliz expressão de Mies van der Rohe. Flavio Castro filtra a forma até seu grau minimalista. O leitor segue nesta via de mão única, inicialmente, colhendo vocábulos dicionarizados mas, depois, percebe-se recolhendo o inusitado dos neologismos. O gozo do make it new, das formas feitas, e do in progress, das formas por-fazer, toma conta da leitura. Melhor dizer: da coleitura.


Em “côdea”, a parte final do livro, o poema ‘ravinas’, constituído por sete partes, desenha o final de uma via, de uma viagem, de uma linguagem – linguaviagem, para citar célebre obra de Augusto de Campos – que se fecha e se abre. Isso porque a poesia de Flavio Castro é um presentar no sentido heideggeriano do termo: um continuum entre velado e desvelado. Iluminação pós-velamento. Oroboro comendo Fênix.


O percurso épico de for mar soma-se aos de Audito e de Inaudito fechando a trilogia com o “fátuofogorgíaco” de Nékuia.  E lançando passos, braços, laços – da linguagem – a Ulisses-Homero.


Na odisseia da poesia que se sabe, que se faz, que se forma, for mar é, com todas os louvores, irretocável.

 

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* Amador Ribeiro Neto (Caconde-SP) é poeta e crítico literário, radicado em João Pessoa-PB há mais de três décadas. Professor titular aposentado do curso de Letras da UFPB, é autor de Barrocidade, Ahô-ô-ô-ô-oxe, Poemail, entre outros.

 

 
 
 

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