Por Lau Siqueira
O tempo dos medos rebelados e das coragens calculadas ganhou sua mais perfeita tradução na poesia de Cláudio Daniel. Em "Sete olhos & outros poemas" (Córrego Editorial) vive uma poesia que descortina o véu dos nossos dias e, como Hopkins, nos ensina o quanto a beleza é difícil. Trata-se de um livro surpreendente que permite diferentes leituras. Poemas cortados na pele entre 2019 e 2021 - arrancados do olho de uma grande serpente. Em ritmo alucinante o poeta inventa um lirismo selvagem. Um galope de signos que desnudam o cotidiano social e existencial. Estabelece pactos éticos para falar de amor ou de combate. Recolhe de uma realidade múltipla e fragmentada os elementos para impor a magia e o corte com precisão de samurai. Eis um bloco de poemas que surge como um paralelepípedo na vidraça do comodismo nos carnavais contemporâneos.
Abaixo, três poemas do livro:
TERCEIRO OLHO
Para Henri Michaux
Galho
de árvore
corcunda.
Cabeças
cúbicas
de formigas.
Paisagem
de margens mudas
onde o vento
sopra
ao contrário.
Onde as pedras
não são mais pedras.
Ninguém vive
aqui.
Aranhas tecem teias
nos meus
pesadelos.
Salamandra procria
no fundo
de meu olho direito.
Este não é o Olho de Buda.
Paisagem construída
com dedos
e unhas
de mortos;
com a pele,
cabelos
e olhos
de mortos.
Meu pai,
um mapa borrado;
minha mãe,
bússola
sem ponteiros;
eu mesmo,
pedra negra
no tabuleiro
de xadrez.
Apenas sombras
uivam.
Tudo tão pesado,
tão pesado,
âncora de pensamentos.
Tudo tão
detestável.
Por que as geleiras,
por que os abismos?
Faca desenha círculos
concêntricos
na água estagnada,
à esquerda
de lugar algum.
Este não é o Olho de Shiva.
Formas desfiguradas
em farrapos.
Essa escada que não leva
a parte alguma.
Palavras, palavras, palavras
já não fazem mais
sentido.
Silêncio.
Depois, espectros escrotos
em alto-falantes
anunciam a morte
de Deus.
O terceiro olho
então
se abre.
QUARTO OLHO
Para Scheila Sodré
À beira
do arco-íris
de possibilidades,
leão amarelo
desfolha
lua nova;
vento verde
assopra
dentes-de-leão.
A língua
da meia-noite
se enrosca
nos dedos
do meio-dia;
teus olhos-
lakhsmi
encontram
meus lábios-
yamuna.
Um sol bruxo
sobre girassóis;
centopeias
piscam pálpebras
num átimo
de segundo.
Flor-esmeralda
adorna
teu cabelo.
E até o fim
do mundo,
no asperamente
da civilização
em ruínas,
meu braço
em tua cintura.
QUINTO OLHO
riscante
riscante, faiscante
furiais, furiais
percorre a luz
percorre, repercorre
percorre a luz
por isso dançamos
por isso dançamos
riscante
riscante, faiscante
furiais, furiais
percorre a luz
por isso dançamos
por isso dançamos
olhos sem línguas
línguas sem olhos
eritrinas esfumadas
eritrinas, eritrinas
repercorre a luz
por isso dançamos
por isso dançamos
furentes, furiais
eritrinas esfumadas,
eritrinas, eritrinas
repercorre a luz
farripas, faúlhas
favilas, eritrinas
repercorre a luz
por isso dançamos
2021
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