Por Ricardo Corona
Morada do vazio é o meu primeiro livro de tankas, a forma mais praticada no Japão desde o século VII, quando a composição era feita por três estrofes, sendo duas com dois versos e uma com um verso, pontuando 31 sílabas: 5-7 | 5-7 | 7. Preferida pelas mulheres, a forma do tanka ganhou força na tradição literária quando se originaram os diálogos Soomon (amor), do gênero epistolar. A troca de cartas contendo tankas de amor no Soomon, por sua vez, veio dos diálogos cantados, feitos em Katauta (terceto de 5, 7 e 7 sílabas) e apresentados em tom lírico, cômico e satírico, durante as festas religiosas do século VIII. Passou para a forma bipartida de uma estrofe com três versos – a caminocu – e outra com dois – a ximonocu – somando as mesmas 31 sílabas: 5-7-5; 7-7. Caminocu e ximonocu significam “estrofe anterior” e “estrofe posterior”, respectivamente. O fato de o tanka, posteriormente, ainda no Soomon, ter sido praticado por duas pessoas – emissão e resposta, sendo o envio da primeira parte e a resposta pela segunda – influenciou a forma renga – literalmente, “versos encadeados” – que veio a se popularizar mais tarde com a prática do haiku, ou como se popularizou entre nós: haikai.
A tradição de inserir o poema na correspondência epistolar tornou comum entre poetas a feitura de prefácios ou cartas comentando a respeito das ideias e escolhas envolvidas, de certa maneira, poupando os próprios poemas dessa obrigação. Percebe-se essa característica nas antologias organizadas a cada dinastia, em poetas como Yakamochi, Rikuki e Yamanoureno Okura, por exemplo. Os documentos do Japão antigo, no entanto, omitem o nome das poetas mulheres, mas sabe-se hoje que elas sempre praticaram o tanka, desde o início, mas só começaram a ter visibilidade no chamado florescimento da cultura japonesa, quando Quioto passou a ser a capital (794 a 1185), período em que surgiram as poetas Ono no Komachi e Izumi Shikibu.
No Brasil, o tanka é pouco praticado se comparado ao haiku e, por isso, gostaria de apresentar algumas ideias e acontecimentos que orientaram os tankas de Morada do vazio, os quais compreendem parte de uma produção que se iniciou mais assiduamente a partir de 2010. No entanto, o meu interesse surgiu bem antes, e, assim, torna-se oportuno apresentar neste livro algumas lembranças, aproximando-o da tradição epistolar e confessional do Soomon, com um e outro acontecimento que me levaram a admirar e escrever poesia nesta forma japonesa.
O primeiro foi com o breve ensaio de Leminski sobre as manifestações artísticas japonesas, intitulado “Ventos ao vento: rabiscos em direção a uma estética” e publicado no Jornal Nicolau n 5, de 1987, em que me apareceu pela primeira vez a palavra tanka. Por causa do seu som percussivo, senti empatia imediata pela palavra e a anotei num caderno. Mas o texto do Leminski não ia além de citá-la. A partir desse contato, de raspão, comecei a pesquisá-la e foi um verdadeiro acontecimento. O tanka é fundador da “ideia” de poesia (waka) no Japão antigo, conforme documentos do século VII. No Oriente o conceito grego de poesia (poiésis) não se desenvolveu como no Ocidente e o tanka, que era uma forma isolada, na qual se reconhecia o fenômeno que chamamos “poesia”, acabou por influenciar na criação de um termo próprio para ela. Assim “poesia” passou a ser chamada de “waka”. O termo, no entanto, aproxima-se mais de “tanka” do que de “poiésis”.
O segundo acontecimento se deu em 1994, mais confessional, quando Wilson Bueno me chamou à redação do Jornal Nicolau. Ele havia recém-publicado uma série de meus poemas caligráficos, por indicação do seu editor-auxiliar, Fernando Karl. Ao final do encontro, para minha surpresa, ele me deu de presente o original autografado do seu livro de tankas, Pequeno tratado de brinquedos. Um caderno com espirais que guardo até hoje e que estava em vias de publicação, o que veio a acontecer dois anos mais tarde, pela Editora Iluminuras. A minha pesquisa sobre o tanka ainda era insipiente, ficava em torno de ensaios que traziam também alguns exemplos de tankas traduzidos, ensaios esses que eram escassos, com traduções meramente ilustrativas. Um livro de tankas escrito por um contemporâneo era mais raro ainda. Não havia a profusão de poetas praticantes do tanka como havia em relação ao haiku. Enquanto o haiku era uma febre nacional, o tanka mantinha-se desconhecido. Se compararmos, ainda hoje o é. Motivos que fizeram aquela empatia inicial pela palavra “tanka” se transformar em encantamento com a coleção de tankas que tinha em mãos, por serem inéditos, contemporâneos e de Wilson Bueno, a quem eu admirava como escritor, também por me ter confiado a leitura; acontecimentos que me estimularam a pesquisar ainda mais a forma japonesa, irmã mais velha do haiku.
Em português, sabe-se, é muito difícil manter a montagem silábica nos versos sem endurecer o poema, dada a diferença aguda entre as línguas japonesa e portuguesa. Na medida do possível, para os tankas de Morada do vazio, aplicam-se os ensinamentos apontados por Fujiwura Hamanari em sua obra Kakyôhyôshiki — um estudo sistemático da poesia japonesa, escrito a pedido do imperador Kônin e concluído no ano 3 da era Hôki, mais precisamente, em 772. Este estudo, divulgado entre nós por Geny Wakisaka, é um pequeno tratado de regras, em especial para o tanka, considerando que Hamanari escolheu essa forma para aplicar suas normas, que devem ser adotadas para uma melhor estrutura fonética. Hamanari apenas indica o que considera as sete enfermidades que não se deve praticar ao escrever o tanka. São elas: Tôbi, Kyôbi, Koshibi, Hokuro, Yûfûbyô, Dôseiin e Henshin.
É preciso dizer que as sete enfermidades são voltadas, sobretudo, para o uso dos fonemas e, sendo assim, deve-se avaliar se uma correspondência grafofonêmica ou grafofônica define as relações sonoras entre letras (grafemas) e sons, sempre considerando que os sons ocorrem na modalidade oral da linguagem e as letras na modalidade escrita da linguagem. Deve-se, então, levar em consideração a especificidade das línguas em questão. Na China – em que se inspirou Hamanari –, o mandarim, que é uma das mais faladas, é tonal. Os monossílabos se dão conforme entonações de altos e baixos bem acentuados. Determinada entonação define e determina a compreensão do seu significado. O japonês, por sua vez, é predominantemente dissilábico, com menor variação tonal, mas bem mais próximo do idioma chinês do que o português, que é diferente de ambos por ser uma língua não tonal. Para ilustrar essa diferença, tomando justamente o idioma japonês como exemplo, já que é a língua correspondente, dada a presença do tanka, observe-se apenas o caso da classe gramatical Keiyôshi. Segundo Junko Ota, o “Keiyôshi se caracteriza, sintaticamente, pelas funções adjetiva, adverbial e predicativa que pode exercer dentro de uma oração”. Em português, é impossível dar por si só, sem auxílio do verbo, um predicado ao adjetivo. Por isso avalio que o estudo de Fujiwara Hamanari é, sobretudo, eficaz para o tanka inserido na sua tradição linguística, ou seja, o tanka escrito em japonês. Isso não quer dizer que o valioso estudo de Hamanari não deva ser aproveitado entre nós. É o que demonstrarei a seguir, com um detalhamento das regras e como as utilizei.
O Tôbi é, talvez, a regra mais fácil de se adaptar em português. Basicamente, sugere que se evite a rima entre os finais do 1 e 2 versos.
O Kyôbi é um alerta contra qualquer correspondência sonora entre o final do 1 verso e a terceira letra do 2 verso. Procurei aplicar o quanto foi possível, pois é uma regra que ajuda a evitar a repetição enjoativa de fonemas, considerando que o tanka é um poema breve. O Kyôbi é uma das regras criadas para se evitar que o tanka, ao ser vocalizado, fique incompreensível e mesmo cacofônico. Em português, salvo exceções pontuais, em função de ser uma língua não tonal, esse risco é menor. Mesmo assim, utilizei-me do Kyôbi, na justa medida, evitando que o meu tanka se contaminasse de excessos, um cuidado que tive em relação à outra regra, o Koshibi.
O Koshibi é, talvez, a enfermidade que mais se deva evitar, dada a facilidade enganosa com que a rima trocadilhesca contamina o poema curto. O Koshibi exige que o fonema principal do tanka apareça no final do 3 verso e repercuta apenas no final do 5 verso, evitando os demais. Deve-se buscar esta rima que sonoriza entre si nos finais do 3e 5 versos, pois daí emerge uma estrutura sonora que repercute tanto na leitura silenciosa quanto na oralidade do tanka. O Koshibi põe em questão a enfermidade do excesso de rima.
A regra seguinte, Hokuro, é, praticamente, uma extensão do Koshibi e aparece como alerta quando o fonema principal do tanka, que deve ocorrer no final do 3 verso, é antecipado em algum fonema do 1 e do 2 versos ou antes do final do 3 verso. As razões são as mesmas apontadas anteriormente nas enfermidades Kyôbi e Koshibi e, a meu ver, observadas as diferenças entre as línguas, muitas vezes, em português, entra em jogo a qualidade sonora do tanka. Apliquei essa regra para evitar excessos.
Regra simples de evitar, a Yûfûbyô alerta para não repetir o fonema no meio e ao final do 1 verso. Mas é bom lembrar que o português é uma língua atonal e, por isso, muitas vezes, ao aplicar duramente essa regra, corre-se o risco de menosprezar uma assonância que pode repercutir satisfatoriamente no poema, especialmente quando lido em voz alta. Mas ela ajuda a eliminar cacoetes.
A Dôseiin evita a repetição de ideogramas. Trata-se de uma regra exclusiva para as línguas icônicas. Em português, seria algo parecido com a repetição do adjetivo “rota”, de modo que não ficasse claro se está se referindo a uma condição maltrapilha ou para indicar um caminho.
A regra Henshin quer evitar o uso em excesso de um mesmo fonema. Ela se assemelha às outras regras, mas sua singela diferença é de grande valor. Atentamente, percebe-se que ela evita o excesso de fonemas que pode aparecer ocasionalmente na escrita do tanka. Em japonês e mais ainda em chinês é um problema, pois o tanka pode ficar condenado ao papel, ficando ininteligível em voz alta. Em português, a questão é também delicada. A profusão de fonemas se repetindo ao acaso poderá deixar o poema com uma estrutura sonora indesejável, infantilizada.
Pode-se dizer que o tanka composto em português apresenta os mesmos problemas que envolvem o haiku, ou seja, dadas as diferenças abissais entre as línguas, é evidente que a sua mera repetição formal poderá engessá-lo. A forma, na verdade, cria uma singularidade ao poema, mas é preciso que a poesia aconteça. Fazer uso dela, mas mantendo-se livre de sua rigidez e buscando o waka para tankas que serão inevitavelmente brasileiros. Nesse sentido, como admirador do artista Hokusai, procurei seguir o espírito do ukiyo-e, aplicando esse conceito budista que acessa a simplicidade mundana da vida, seus pequenos e fúteis movimentos. Menciono Hokusai porque foi com a sua arte que aprendi a ver e sentir o ukiyo-e, inclusive na derivação dada por ele, aproximando esse olhar sobre o cotidiano com um “viver o dia”, que é também tão budista: viver o aqui e agora. Meus tankas são medidas desse olhar. Por isso, sinto-me à vontade, livre, inclusive, para encontrar a forma do tanka em outros poemas, como encontrei um tanka envolto em ukiyo-e, por exemplo, no poema em prosa “L’étranger”[1], de Baudelaire. É o final do poema, que traduzi e distribuí na forma do meu tanka abrasileirado:
J’aime les nuages...
les nuages qui passent...
là-bas...
là-bas...
les merveilleux nuages!
Amo as nuvens...
as nuvens que passam...
lá longe...
lá longe...
as maravilhosas nuvens!
Ricardo Corona
Recreio da Serra, inverno de 2023.
[1]. BAUDELAIRE, Charles. “L’étranger”, in Le spleen de Paris. Paris: Gallimard, 2006, p
105.
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