top of page

O que aprendemos com Giorgio Agamben

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 9 de nov.
  • 3 min de leitura

Por Solange Rebuzzi

ree


Com a infância: que a palavra é a única coisa que nos resta da época que ainda não éramos falantes.  Todo o resto, perdemos – mas a palavra é a relíquia ancestral que conserva a lembrança da infância, a pequena porta através da qual podemos, por um instante, retornar a ela (p. 33).



São aprendizados sutis e delicados os que Giorgio Agamben nos endereça neste livro Coisas que vi, ouvi, aprendi..., traduzido por Julia Scamparini para a editora Âyiné e lançado em 2023.


Parecendo nos ofertar seus segredos íntimos em tom poético, Agamben, também, nos deixa ouvir seus monólogos com os Evangelhos, com o abade medieval Joaquim de Fiore, que afirma que a “idade vindoura não aniquila a que passa”, ou a sua descoberta na ilha de Ponza onde escutou “mulheres analfabetas cantarolando a Bíblia, que conheciam pela tradição oral”. Desenha-se uma Itália de muitas cores e histórias, com o que a filosofia o ensinou, somando-se ao que a arte lhe transmitiu, e as brincadeiras de criança se perpetuaram na memória do menino, que um dia escreveu e esqueceu para trás um papel especial, com segredos confessados ou descobertas sérias? Nesta vivência infantil inaugurada na escrita tão precocemente, somos nós, seus leitores, que devemos percorrer e alcançar as sutilezas mais guardadas.


Escritores e poetas escrevem, quase sempre, diante de uma imagem onde a escrita se abre ao belo ou onde a palavra brilha “pela auréola”, com os aprendizados que se somam, pois o divino não está à mostra, certamente. Com a inocência que só é possível em paródia que “é também a única reparação da infância”, segundo palavras ditas por Elsa Morante (escritora e amiga de longa data, do grupo de Alberto Moravia e Pasolini), Agamben, também, deixa ver sua rede de amizades intelectuais.


O percurso deste livro se faz em dois movimentos e o filósofo não esquece o que viveu. Primeiramente, escreve ensinamentos sérios que parecem ter sido anotados em cadernos ou cadernetas que guardam restos de leituras de tantos: Espinosa, Epicuro, ou “as lendas sobre a morte de Homero”, e Averróis, e Kaváfis com ensinamentos para depois, Kafka e tantos outros. Ou as experiências inesperadas vividas em cidades tais como Viena, Veneza, Roma, Paris, repetidas vezes, inclusive diante dos quadros de Bonnard, em que ele viu “a cor como forma de êxtase”, e também em igrejas como a de San Giacomo Dall’Orio, em Veneza, ouvindo os sinos soando e sentindo ternura.


O que a contemplação contempla, ele se indaga? E nos responde logo: “Ela contempla a sensação na sensação, a mente na mente, a palavra na palavra, a arte na arte”, e “é isso que a torna tão feliz”. De tudo que lemos e relemos, restam traços do filósofo italiano nascido em Roma que viveu em Veneza e que conhecemos por inúmeros livros e de inesperadas aulas e palestras. Aqui, a vida vivida de Agamben deixa seu movimento mais leve e poético; quase puro.


Nesta obra de “exposição e abismo, penumbra e esplendor”, o escritor escreve, inclusive, o infantil perdido; o faltoso de todos nós, na sabedoria da vida já somada há oito décadas e muito partilhada na escrita. Entre o dizer e o não dizer da linguagem humana, o filósofo nos toca nesta intimidade bem primeira, com as experiências únicas da primeira infância, quando comenta a emoção forte vivida diante de uma carta esquecida, que lhe teria sido mostrada por sua mãe e escrita por ele aos oito anos.


Depois de tanto escrever e pensar com a filosofia, como filósofo consegue o autor, agora, nos dar de presente esta “pedra de toque” pouco sublinhada por alguns. E funda com estes escritos líricos, aforismos, um lugar do bem dizer, ou melhor, um lugar para tão bem dizer a linguagem que nos traduz em nossa humanidade.


O que aprendi com o amor? Que a intimidade é algo como uma substância política, do contrário os homens não agiriam como se partilhá-la fosse o bem mais precioso. E, no entanto, ela foi excluída da política e deixada sob os cuidados das mulheres, que, ao que parece, parecem saber mais sobre o assunto. Essa é a prova de que a sociedade em que vivemos é incuravelmente machista e contraditória (p. 39).


Rio de Janeiro, primavera de 2024.                                                                                 

 

                                                                                                                         

 
 
 

Comentários


2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

bottom of page