Por Claudio Daniel
O Rei Menos o Reino, livro de estreia de Augusto de Campos, publicado em 1951, em edição custeada pelo próprio autor, sob a rubrica de uma imaginária “Edições Maldoror”, remete, já no nome da casa editorial fictícia, ao poeta maldito francês Lautréamont, um dos autores de cabeceira do poeta paulista na época, que também usa como epígrafe do poema Canto primeiro e último uma frase do autor francês, On meurt, au moins (“nós morremos, ao menos”). É curioso esse interesse de Augusto de Campos, em sua juventude, por um poeta que é considerado o precursor do surrealismo, e inclusive a presença de imagens surrealizantes em versos dessa lírica inicial (algo também observável nos livros de estreia de Haroldo de Campos, Auto do possesso, e de Décio Pignatari, Carrossel). Notamos também, nessa lírica de juventude, uma série de influências, que vão de Fernando Pessoa e Sá Carneiro a Federico Garcia Lorca, na construção de imagens e na experiência criativa com a sintaxe, que por vezes se afasta da lógica discursiva linear, prenunciando suas futuras experiências poéticas, como na peça que abre o volume (“Onde a Angústia roendo um não de pedra / Digere sem saber o braço esquerdo / Me situo lavrando este deserto / De areia areia arena céu e areia”). Nos 17 poemas desse pequeno e precioso volume, republicado em 2019 pelo selo Demônio Negro, temos a presença do verso tradicional, em poemas líricos e metafóricos, de forte tensão existencial e linguagem elevada, elementos também presentes na poesia da Geração de 45, que exercia o poder literário na época, a partir do chamado Clube de Poesia, que editava revistas, publicava livros de autores jovens e exercia forte influência na universidade e na mídia. Ao contrário dos poetas da Geração de 45, no entanto, em sua maioria conservadores que recusavam as conquistas formais do Modernismo, tanto Augusto quanto seu irmão Haroldo e o amigo Décio Pignatari visitaram Oswald de Andrade, numa época em que o “antropófago de Cadillac” estava no ostracismo, e defenderam a herança de 1922, ainda que, nesse momento, não praticassem uma poesia coloquial, mas explorassem outras possibilidades do fazer poético. As imagens poéticas usadas nesta obra recordam muitas vezes a plasticidade surreal, como por exemplo no poema O Vivo. Nesta peça, os versos são construídos com rigoroso artesanato formal, ao contrário da experiência mais espontânea da escrita automática, e utilizam elementos barrocos, como o paradoxo e a inversão de frases (“Não queiras ser mais vivo do que és morto / Não queiras ser mais morto do que és vivo”), além de elementos fantasmagóricos, que derivam de Edgar Allan Poe, Mallarmé e do simbolismo, como nas linhas “As mortas-vivas rompem as mortalhas / Miram-se umas nas outras e retornam / Seus cabelos azuis, como revoam no vento”. Há também o uso do paralelismo e da anáfora, também elementos barrocos, como nas linhas “Queres ouvir e falas”, “Queres morrer e dormes”, “Queres morrer e morres”. O poema, que não é dividido em estrofes, usa várias medidas métricas, da redondilha ao decassílabo e dispensa o uso de rimas. A peça mais ambiciosa do volume, porém, é aquela que dá título ao livro, O rei menos o reino, dividida em sete partes, que comentaremos agora. A primeira parte do poema já apresenta um estranho verso, “Onde a Angústia, roendo um não de pedra”, em que temos um personagem ao mesmo tempo alegórico e de prosopopeia, a Angústia, convertida em sujeito, que executa uma ação não menos singularíssima, a de digerir o braço esquerdo, imagem macabra que recorda cenas do inferno dantesco. Nas duas linhas seguintes, porém, a dimensão metalinguística já está presente, na imagem do poeta arando um deserto, aventura tão improvável quanto à do trovador provençal Arnaut Daniel, que em seu poema a Laura compara um amor impossível à caça da lebre com um boi ou o ato de amassar o ar. O deserto, por outro lado, além de ser um tipo de labirinto, como o oceano de Ulisses e Vasco da Gama e a floresta de Dante, pode ser também metáfora da página em branco de Mallarmé, na qual o poeta, com o arado da linguagem, escreve os seus versos de areia. O deserto, na segunda estrofe, torna-se o reino do rei que não tem reino, ou seja, o poeta, despojado de tudo, menos de sua voz ou escritura, que, se algo a tocar, desfaz-se em pedra. Ele é, ao mesmo tempo, de modo paradoxal, o rei, ou seja, o poeta, e o reino, que é a poesia, “solitário sem sol ou solo em guerra”. Nesse quadro alegórico e metalinguístico, a subjetividade não está ausente, já que o poeta declara: “Comigo e contra mim e entre os meus dedos”, revelando a sua tensão existencial, já apresentada no verso inicial, regido pela Angústia. A estrofe final, por sua vez, é uma declaração do diálogo e da intertextualidade com as muitas vozes presentes neste poema e em todo o livro: “Por isso minha voz esconde outra / Que em suas dobras desenvolve outra / Onde em forma de som perdeu-se o Canto / Que eu sei aonde mas não ouço ouvir”, linhas que se assemelham aos paradoxos camonianos. A primeira parte do poema é dividida em quatro quartetos, de simetria geométrica e medida decassilábica, sem rimas; a linguagem é fortemente substantiva, sobretudo na primeira estrofe, onde temos a linha mallarmeana “de areia areia arena céu e areia”. Já a segunda parte do poema não tem unidade estrófica, é formada por quatro tercetos, uma estrofe de cinco versos e outra de quatro – que somadas resultam em nove linhas, mantendo assim, de modo sutil, a relação matemática com o número três, base estrutural da Comédia de Dante. Nesta segunda peça, o poeta repete as palavras-chave da peça inicial – reino, areia, vozes, canto, rei, céu e pedra – distribuídas em outros contextos e situações, como se fossem pedras de um jogo de quebra-cabeças ou um labirinto de palavras barroco. Outras palavras e imagens são adicionadas, porém, como mercúrio, corvos, sol, plumas, grito, que intensificam o que na abertura estava apenas latente. Os paradoxos e outros jogos barrocos ganham amplitude aqui, desde a estrofe inicial: “Neste reino onde eu canto ao som da areia / Às vezes o ar se move de outras vozes / Que – despidas dos corpos – se aproximam / Da minha voz se nunca do meu canto”, linhas que mantêm a ênfase metalinguística e intertextual. Nas duas estrofes finais, o jogo poético é metaforizado, novamente, como ações impossíveis, que contrariam a natureza, sobretudo nas últimas linhas: “Vinde e vereis florir um sol no céu / E um céu se desdobrar no olhar do sol / Neste reino onde o céu é o vosso ar alto, / Onde o sol é de pedra como o Canto”. A terceira parte do poema é construída como um soneto, dividido em dois quartetos e dois tercetos, com métrica próxima ao decassílabo e sem rimas. Aqui se repetem a linguagem substantiva, a metáfora, o visualismo semântico, o tom enigmático, a sintaxe fraturada, o paradoxo, mas comparece um elemento novo – a associação entre a poesia e o amor, sobretudo nos tercetos, que finalizam com o verso elíptico, de sabor mallarmeano, Amara amara amara mar e amarga. A quarta parte, de estrofação livre e diversas medidas métricas, introduz um novo personagem, a rainha morta, e desenvolve uma fábula conceptista em que o rei é o poeta e também a morte, os vassalos, que buscam o rei dentro de si, não existem, e tampouco o próprio reino existe, a não ser talvez no corpo do poeta. A rainha sem nome, chamada pelo pronome Tu, pode ter morrido nos braços do rei, ou ainda foi enterrada viva em uma carta do baralho – palavra que remete ao jogo, ou seja, ao próprio poema, e por fim ressuscita, simbolicamente, encantando o poeta, na última estrofe: “Já que eu não posso mais desencantar-te / Ao meu canto que é antes desencanto / Encanta-me contigo / Morta e rainha a tua / Mais do que fala / Fábula”. A rainha morta, imagem extraída talvez da Inês de Castro de Camões, revela-se enfim como a própria poesia, talvez ausente, e por isso morta, à maneira da angústia criativa de Mallarmé, sempre às voltas com o terror da impotência criativa. Na quinta seção do poema, a subjetividade se impõe, em palavras escritas em caixa alta, como Angústia, Tédio, Desespero, Medo e Ódio, inseridas numa estrutura formada por três tercetos, três quartetos e um verso isolado. Porém, distante de qualquer sentimentalismo, aqui a sintaxe recortada e elíptica e a mescla de termos no singular e no plural aparecem de forma mais radical, nas linhas “A flor? A outrora flor. A redondezas / Aromas alva sedas flor? Outrora”. É uma voz oracular, sibilina, que não pretende confessar, revelar, antes prefere velar de novo o mistério pessoal e poético. O uso retórico da anáfora também aparece, de novo em molde barroquizante, nas linhas “O caule? Outrora o caule, o longo caule / Um vento. Um outro vento e belo, o Ódio / Torceu-se à sua volta e fê-lo vento”, e ainda a recombinação de frases e permutação de palavras em linhas como “Boca mordendo a flor mordendo o vento”. A sexta parte do poema é onírica, em sua apresentação das relações entre o poeta, o corpo e a natureza; o barroquismo cede lugar a um lirismo sutil, em que não faltam, porém, “serenos monstros gelados / os quais têm uma voz de sangue sufocando / a voz que eles não têm”. Por fim, na sétima e última parte do poema, as imagens teratológicas estão ainda mais presentes, à maneira de Lautréamont, nas “cabeças escuras e nos braços amargos”, os “olhos cegos como bocas”, os “crânios escuros que parecem vivos”, “estas bocas sem lábios que vomitam sangue / e devoram devoram outros crânios escuros”, o que recorda, novamente, uma cena do Inferno dantesco. Apesar de todas as imagens alegóricas da angústia e da dor presentes aqui, encontramos ainda uma camada sutil de significação política, no primeiro verso desta seção do poema, “Povo meu oh meu polvo” e no último verso, “Falam em pão em prata e eu ouço pedra”. Claro: impossível fazer aqui uma decodificação referencial como se fosse um poema de lógica cartesiana; por mais que haja racionalidade na construção formal do livro e dos poemas, a fantasia do poeta embaralha referências metalinguísticas, intertextuais, subjetivas, eróticas, políticas, num desfile aparentemente caótico, por mais organizado que seja. Enfim, este livro de Augusto de Campos, publicado em 1951, ainda hoje é mais moderno do que quase todos os livros de poemas publicados nas últimas sete décadas no Brasil.
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