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Ouvir galáxias

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 24 de ago.
  • 4 min de leitura

Por Matias Mariani

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Eu ouvi o livro Galáxias antes de lê-lo. Tinha 13 anos e, se não fantasio, estava sentado no banco de trás de um carro, possivelmente um Santana, quando minha mãe o colocou para tocar. Não sei se era um aparelho de CD automotivo, que seria raro na época, ou uma versão de fita K7 que minha mãe poderia ter acesso por ter sido a editora responsável pela gravação de Isto não é um livro de viagem, álbum com 16 trechos do livro, pela própria voz do autor, acompanhado pela cítara de Alberto Marsicano. Lembro especificamente da conjunção da voz de Haroldo, da cítara de Marsicano, e da cidade do Rio de Janeiro passando pela janela do carro.

 

Para ser honesto, não entendi nada. Já me interessava por poesia, gostava de Poe, de Byron, da Pantera de Rilke. Tinha ganhado de meu pai um livro de haikais do Bashô traduzidos por Monsenhor Primo Vieira, que gostava de ler de vez em quando, antes de dormir. Sentia que me acalmava. Mas poesia concreta não havia feito um impacto em mim, como faria durante o colegial, apesar de já ter visto algo nesse sentido na Revista 34, também editada pela minha mãe.

 

Acho que gostaria de rever a asserção de que “não entendi nada”. Não entendi o significado, me pareceu uma sucessão de palavras a esmo. Mas entendi a cadência. O fluxo da palavra, o modo como a voz de Haroldo e a cítara de Marsicano criavam uma corrente contínua, como uma maré. Entendi o ritmo do texto, e isso também é uma forma de entender – a primeira forma, tanto na história da espécie humana quanto na nossa transformação pessoal de bebês em crianças. Cadência, volume e timbre vêm antes de significado.

 

Porque antes do sentido, há o ritmo. E o ritmo, em si, é já um sentido – não o sentido que se decodifica, mas o sentido que se experimenta. Penso agora em Aristóteles e na sua distinção entre mimesis e diegesis. Mimesis como reencenação, a imitação direta de ações diante dos olhos; diegesis como o contar, a mediação narrativa. Galáxias é puro contar, puro gesto diegético: não dramatiza, não encena – narra, mesmo quando o que narra é o próprio ato de narrar.  É uma escritura que sabe que está contando, e que avança no ritmo como um rio que não apenas corre, mas abre caminho pelo terreno. A cadência não é a correnteza – é o próprio leito que orienta para onde a narrativa vai, dobrando, alargando, estreitando, até desaguar no mar.

 

E Galáxias deságua em um mar cor de vinho (ὄινωψ πόντος). Este termo usado por Homero para descrever a cor do mar, e posteriormente muito discutido por historiadores e linguistas. Em Galáxias porém, quando Haroldo pronuncia “óinops póntos”, não o faz como um erudito que aponta uma nota de rodapé, mas como quem repete um som antigo, gasto e polido por muitas bocas. Essas palavras saem dele como já saíram de tantos anônimos que contaram os épicos de Homero, como outras palavras já saíram das bocas de pessoas contando outras histórias, fossem quais fossem. É através dessa pronúncia que se revela a fraternidade que Haroldo busca: a do ritmo e da cadência, a linhagem oral que atravessa séculos e mares, onde a voz não apenas transmite histórias, mas se deixa moldar por elas.

 

Depois de ouvir, li muitas vezes Galáxias. Não como se lê outros livros, do começo ao fim, mas abrindo em alguma página, lendo por algum tempo, fechando-o. Tenho esse hábito há muitos anos, e sou capaz de argumentar que esse é o modo com que a obra melhor se permite ser observada: de esguelha. Como algo a ser atravessado mais do que entendido. Galáxias não se oferece como um enigma a ser resolvido, tal qual um outro macro-poema ao qual volto constantemente, The waste land. de T.S. Eliot. Não, ela se oferece como um terreno móvel, um arquipélago de ilhas de linguagem entrecortadas por mares de silêncio. Cada abertura de página é um desembarque: às vezes você pisa em terra firme, reconhece referências, lugares, palavras familiares; outras vezes, é só areia movediça, espuma e fragmentos que se dissolvem antes que possam ser recolhidos.

 

Se ler Galáxias é antes atravessar do que decifrar, isso não significa reduzir a obra a um jogo de sons ou a um efeito ornamental. Pelo contrário: é aceitar que, nela, o sentido se constrói como na fala, camada sobre camada, na sobreposição de ressonâncias, pausas e retornos. É uma leitura que exige atenção, mas não a atenção ansiosa de quem procura um fio narrativo – e sim a atenção demorada de quem escuta uma história ao redor do fogo, como a grande maioria das histórias humanas foram contadas até agora. É nesse modo, nessa cadência herdada e reinventada, que Galáxias se mantém viva, sempre diferente, mesmo quando voltamos às mesmas páginas.

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* Matias Mariani é poeta, tendo publicado seu único livro de poesias, Dois pontos, em 1999. Foi também editor de Sebastião, revista de crítica lliterária que contou com a contribuições de Waly Salomão, Paulo Henriques Britto e Tarso de Melo, entre outros. Poemas seus foram incluídos na coletânea Na virada do século – Poesia de invenção no Brasil, organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa. Além de poeta, Matias é diretor, produtor e roteirista de cinema. Seu primeiro longa de ficção, Cidade Pássaro, está disponível no Brasil pelo serviço de streaming MUBI.

 

 

 
 
 

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