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Paulo Leminski: um conhecido que ainda causa estranhamento

Por Dinarte Albuquerque Filho


O poeta Paulo Leminski faria 80 anos neste agosto. Morto em 1989, deixou uma obra que ainda se discute e se lê. Ao ter aproximado a poesia dos jovens leitores e poetas iniciantes, fez muito para e pela literatura. “A poesia de Leminski fez e faz a cabeça dos públicos mais diversos, não apenas do leitor habitual de poesia treinado nas artimanhas do verso e para além dele”, comenta Tarso de Melo num artigo publicado na revista Cult, de 2019, quando o poeta completou 75 anos.

 

Publicado em 1996, seu livro O ex-estranho, organizado por Alice Ruiz e Áurea Leminski, traz poemas então inéditos. O nome, como lembra Alice no prefácio, já estava no poema “Ópera fantasma” e no título de outro poema, ambos no livro La vie en close, de 1991, também póstumo.

 

Naquele momento, Leminski já não era um poeta “estranho” aos leitores. Alguns de seus livros tiveram mais de uma edição, o primeiro, no começo da década de 1980, chegou a ultrapassar a marca do milhão de exemplares, contrariando a premissa editorial (pelo menos em parte) de que poesia não vende. O fato talvez tenha a ver com a percepção de Leminski sobre o fazer, publicado em Caprichos & relaxos: “um poema/ que não se entende/ é digno de nota [...]” (1985, p. 51).

 

O poeta Ricardo Silvestrin diz o seguinte sobre o autor homenageado: “Sua poesia não postula um conjunto de preceitos. Não há um manifesto, uma plataforma anterior. Vai se realizando a cada poema” (2011, p. 21). E o que se lê nestas páginas, é o Leminski de sempre, embora sempre surpreendente.

 

Já disse de nós.

Já disse de mim.

Já disse do mundo.

Já disse agora,

eu que já disse nunca.

Todo mundo sabe,

eu já disse muito.

 

Tenho a impressão

que já disse tudo.

E tudo foi tão de repente.

 

Este poema é o segundo do livro. E diz muito, diz além do que está escrito, apesar do poeta ter a impressão de ter dito tudo. A antítese no primeiro conjunto de versos (“Já disse agora,/ eu que já disse nunca”) dá uma pista, ainda que sutil, do que é o conjunto de poemas do poeta curitibano: ligado ao seu tempo e conectado com o uso de recursos que são familiares ao catálogo poético de séculos passados, como o simbolismo, o parnasianismo e o barroco.

 

Nos 44 textos de O ex-estranho, Leminski parece brincar com a palavra. Mas o caso é sério. Lança mão de artifícios e até de clichês (“O que o amanhã não sabe/ o ontem não soube/ Nada que não seja o hoje/ jamais houve.”). Demonstra contínuo espanto pela vida, como em “Take p/Bere” (“foi tudo muito súbito/ tudo muito susto/ tudo assim como a resposta/ fica quando chega a pergunta// esse isso meio assunto/ que é quando a gente está longe/ e continua junto”).

 

Afirma-se que Leminski foi um poeta que viveu ativamente as questões de seu tempo, “do templo neopitagórico em Curitiba, de Dario Velozzo, à aldeia global de McLuhan, dos navegadores da Idade Média aos do século XXI” (SCHLEDER, 2002, p. 18). E, por estar conectado ao seu tempo, entendia a importância da comunicação. “A gente pode criar um mundo assim, um império total da mercadoria, tudo pode ser vendido, coisas, sensações, as coisas mais incríveis, os momentos mais emocionantes” (LEMINSKI, 1999, p. 291). Ou, como explica Melo, “No poema ‘Sacro lavoro’, de O ex-estranho, o poeta sintetiza suas duas obsessões – inovação e comunicação – ao afirmar que suas mãos ‘transformam palavras/ num misto entre o óbvio e o nunca visto’. O ‘óbvio’ é o que permite a comunicação, a informação redundante, mas com ele vem sempre o ‘nunca visto’, a inovação formal e mesmo de conteúdo que o poema esconde/revela sob a camada ‘facilitadora’. Por mais óbvio que pareça, há sempre o nunca visto ali” (2019).

 

Talvez por isso sua poesia seja considerada “fácil” por alguns, o que pode ser uma maneira de não reconhecer o estilo ágil e certeiro do curitibano. “diga minha poesia/ e esqueça-me se for capaz/ siga e depois me diga/ quem ganhou aquela briga/ entre o quanto e o tanto faz”, escreve ele em “No instante do entanto”. Na Bienal do Livro de 1988, alguém perguntou à Leminski o que ele estava lendo, e ele prontamente respondeu: “Dicionário. Leio sempre dicionário. Há palavras que vejo em outdoors ou no jornal e que me perseguem por semanas” (DAMAZIO, 2004, p. 313).

 

Este modo de ver o mundo ao seu redor, somado à inquietação criativa e seu ofício publicitário, certamente desaguou em sua produção poética, um verdadeiro antropofagismo que abarca e dialoga desde os clássicos em latim (aprendido no Internato Paranaense) e a tradição greco-romana, até os modernistas, concretistas e a geração dos anos 70, mas deixa ainda rastros a serem perseguidos por novos leitores e críticos de sua obra.

 

Por exemplo, no poema da página 62 – “Trevas,/ Que mais pode ler/ um poeta que se preza?” –, ele recorre a um elemento presente em obras dos românticos (a escuridão) mas sem cair na melancolia presente à época. Ao chegarmos ao fim do terceto, é impossível não sorrir com a ironia e a graça, que vem da associação com a figura genérica do poeta como um ser sorumbático.

 

Não que Leminski não tenha sido melancólico, até mesmo desiludido. Em alguns poemas deste volume nota-se um certo mal-estar. Como no poema da página 33: “este planeta, às vezes cansa,/ almas pretas com suas caras brancas/ suas noites de briga braba,/ sujas tardes de água mansa, minutos de luz e pavor [...]”. Ou no da página 38: “nunca sei ao certo/ se sou um menino de dúvidas/ ou homem de fé// certezas o vento leva/ só dúvidas continuam de pé”.

 

Nota-se “uma vivência de despaisamento, o desconforto do not belonging, o mal-estar do fora de foco, os mais modernos dos sentimentos”, conforme observa Rodrigo Garcia Lopes (1996). Às vezes, assim encontramos Leminski: “Nenhuma dor pelo dano./ Todo dano é bendito./ Do ano mais maligno,/ nasce o dia mais bonito” (“Hexagrama 65”, p. 42). Noutro momento, parece sentir-se deslocado: “morar bem/ morar longe/ moral lá onde/ mora meu/ mais distante quando”. Em outros, parece pior: “não houve um sim que dissesse/ que não fosse o começo/ de um esse o esse” (“S.O.S.”, p. 57).

 

Num exercício imaginário, quem leu Caprichos & relaxos e depois não acompanhou as demais publicações certamente sentirá um desconforto ao deparar-se com poemas não tão leves e brincalhões como os do primeiro livro, diretamente ligados à atmosfera cultural da época, “abertamente anárquica, satírica, paródica, de cadências coloquiais e, só aparentemente, antiliterárias”, como assinala Bosi (2000, p. 487) – tão carregados de um humor, traço fundamental em sua obra e evitado por muitos críticos.

 

Mas os tempos são outros. Publicados sete anos depois de sua morte, os poemas foram produzidos no final dos anos 80, segundo depreendemos pela apresentação de Toda poesia (2013), a não ser o anexo final “Parte de AM/OR”, que vão de 1968 a 1988, conforme Alice Ruiz. Nos textos lidos em primeira mão, segundo Alice, já se percebia o ceticismo que permeia o volume e que ela chama de poemas “meio sem lugar definido ainda” (RUIZ, 2013, p. 10).

 

Estranho, muito estranho é também o poema que encerra a primeira parte do livro. “depois de muito meditar/ resolvi editar/ tudo o que o coração/ me ditar.” Escrevo isso porque neste momento em que releio seus livros e em que ele completaria 80 anos, parece que Leminski deixa de lado aquilo que foi caracterizado como uma poesia espontânea (não os “fáceis” haicais) e passa a “dominá-la”, editando-a. Assim, é possível afirmar que a espontaneidade atribuída aos poemas de Leminski seja apenas mais um argumento para diminuir a sua forte personalidade, “com ideias e dicção muito próprias” (ÁVILA, 2004, p. 28).

 

Mas não creio. Tudo nele parecer ter um quê de excesso e de contenção. Como no poema que abre o livro, “Invernáculo (3)”:

 

    Esta língua não é minha,

qualquer um percebe.

    Quando o sentido caminha,

a palavra permanece.

    Quem sabe mal digo mentiras,

vai ver que só minto verdades.

    Assim me falo, eu, mínima,

quem sabe, eu sinto, mal sabe.

    Esta não é minha língua.

a língua que eu falto trava

    Uma canção longínqua,

a voz, além, nem palavra.

     O dialeto que se usa

à margem esquerda da frase,

     Eis a fala que me lusa,

eu, meio, eu dentro, eu quase.

 

A palavra permanece, sem dúvida. E o poeta se emaranha nela para dela extrair sentidos, referenciando o fingimento de Pessoa (ou, quem sabe, pessoas). Agora deixa de ser “estranho”, embora fale num dialeto próprio das possibilidades poéticas, mas, “tudo a seu tempo”, como subscreve Alice. Fiquemos com a multiplicidade de sentidos da poesia de Leminski, “Muito pop para os concretos, muito punk para os tropicalistas, muito culto para a geração mimeógrafo, muito provinciano para o eixo, muito poliglota para os modernistas, muito músico para os simbolistas, muito boêmio para os acadêmicos, muito família para os beatnicks”, como bem observou Estrela Ruiz Leminski (2024).


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*Dinarte Albuquerque Filho é mestre em Letras – Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e jornalista, formado pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). É autor de A tempestade é metáfora (2022), Fissura no asfalto (2019), Leituras na madrugada (2014), Leminski, o “samurai-malandro” (2009) e Um olhar sobre a cidade e outros olhares (1995), entre outros.


Referências

 

ALBUQUERQUE FILHO, Dinarte. Leminski: O “samurai-malandro”. Caxias do Sul: Educs, 2019.

 

ÁVILA, Carlos. Ler pelo não, além da letra. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (Org.). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. p. 27-30.

 

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 35. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

 

DAMAZIO, Reynaldo. Aquela língua sem fim: Leminski tradutor. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (Org.). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. p. 313-322.

 

DICK, André; CALIXTO, Fabiano (Org.). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.

 

LEMINSKI, Estrela Ruiz. Especial Leminski 80 Anos | Leminski raiz. Cândido, 18 ago. 2024. Disponível em: <https://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Noticia/ESPECIAL-LEMINSKI-80-ANOS-Leminski-raiz>. Acesso em: 20 ago. 2024.

 

LEMINSKI, Paulo. Poesia: a paixão da linguagem. In.: CARDOSO, Sérgio et al. Os sentidos da paixão. 11. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 283-306.

 

LEMINSKI, Paulo. O ex-estranho. Organização e seleção de Alice Ruiz e Áurea Leminski. Coleção Catatau. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba; São Paulo: Iluminuras, 1996.

 

LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

 

LOPES, Rodrigo Garcia. O Ex-Estranho explora presença e ausência. Texto publicado originalmente no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo, São Paulo, 21 jun. 1996. Disponível em: <https://www.elsonfroes.com.br/kamiquase/ensaio6.htm>. Acesso em: 8 ago. 2024.

 

MELO, Tarso de. Por que amamos Paulo Leminski? Revista Cult, São Paulo, Editora Bregantini, n. 248, ano 22, ago. 2019.

 

RUIZ, Alice. Apresentação. In: LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 7-11.

 

SCHLEDER, Evaldo. Paulo Leminski, uma saga polaco-afro-zen-tupiniquim. Revista Cult, São Paulo: Lemos Editorial e Gráfica, n. 54, ano V, jan. 2002.

 

SILVESTRIN, Ricardo. Esse Leminski! Cândido – Jornal da Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba: Paraná, n. 1, ago. 2011.

 


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