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SOBRE ARSENAL DE VERTIGENS

Por Adalberto Alves


É com gosto, por várias circunstâncias, que escrevo estas linhas, por vontade de Ronaldo Cagiano (R.C.) das quais destacarei a amizade mútua, a admiração pela sua obra , e ainda a minha ligação, muito particular e de sempre, à cultura e á terra brasileiras, das quais conservo algumas das minhas mais íntimas e gratas recordações. E assim , nesta declaração de interesses inicial, queria incluir o facto de dever a R. C. a honra e o gesto de ter produzido vários textos sobre o meu trabalho e feito apresentações a propósito do mesmo e, ainda, o facto de, generosamente , me ter posto em contacto com as mais recentes gerações de poetas e escritores brasileiros, assim contribuindo para, simultaneamente, a divulgação, sempre difícil, da minha produção no país-irmão. Realmente, se é verdade que eu vinha, desde há muito, tendo contactos com intelectuais brasileiros, era, todavia, sobretudo, com académicos, e mais através da minha faceta de arabista do que propriamente a propósito do meu trabalho poético. Conheci pessoalmente R.C. em 2017, quando ele apresentou, com brilho, em Lisboa, no Salão Nobre do Museu Nacional de Arqueologia, não muito tempo depois de ter chegado a terras lusitanas, o meu livro de poemas, Navegação Imperfeita. Tendo escolhido viver para Portugal, terra onde, tal como Jorge Luís Borges, estava vinculado por ancestralidade, este intelectual de Cataguases (Minas Gerais), culto, dinâmico e comunicante que fora, como eu, jurista, não tardou em conseguir, em pouco tempo, com a sua actividade de poeta, escritor e crítico literário, o milagre de se tornar, em Lisboa, como que uma espécie de embaixador das Letras do seu país, ele que já havia sido, aí, grande divulgador das Letras portuguesas. Dou hoje comigo a pensar, que se os políticos dos dois países, não andassem, como sempre, tão alheados do papel da Cultura no desenvolvimento das relações entre os respectivos povos, e já este seu labor de aproximação cultural, teria sido objecto de uma qualquer forma de distinção, que ele, aliás, de forma alguma, procura.


Esclareço que não sou, nunca fui, nem tenciono ser, crítico literário. Sou um escrevinhador a quem, para tanto, falta suficiente convicção e quiçá talento. Dado o meu arraigado cepticismo epistemológico, bebido em grande parte nas sagezas orientais, nomeadamente no sufismo, não tardei, por outro lado, em encontrar alento na Física Quântica, e na Filosofia, sobretudo a da différence, de Jacques Derrida e na da inexprimibilidade, avançada por Wittgenstein, para consolidar a minha perspectiva da abissalidade intrínseca do texto, que venho explanando, desde há muito, em meus escritos e palestras. O leitor, como qualquer outra espécie de observador, tem a capacidade de interferir no texto, ou seja, na natureza do observado, através da sua relação com ele. Ou seja, ainda que o não modifique materialmente, a sua circunstância, introduz-lhe, de modo decisivo e único, uma modulação, através das ondas emocionais que lhe são inerentes. Tal postula que o leitor faça, em cada leitura, uma recriação que nunca é absolutamente coincidente com qualquer outra que venha a ser feita., por si ou por outrem. E isto, porque o seu modo de leitor nunca permanece inteiramente estável. Isso explica que uma obra lida numa certa fase ou momento da vida do leitor, lhe tenha agradado muito, e noutra, por exemplo, vários anos depois lhe possa parecer sem interesse. E isto é válido para todas as formas de arte. Acontece... Quantas obras recebidas com total hostilidade ou indiferença pela crítica instalada são mais tarde consideradas, para a posteridade, como geniais obras- primas absolutas.


Daí a verdade do dito da sabedoria popular - os gostos não se discutem - já que nem os autores conseguem ser intérpretes fiáveis daquilo que escrevem: quantas vezes, a um parto entusiasmado, se segue, algum tempo depois, uma desalentada releitura. Ciente disso, desde que me conheço, faltam-me, repito convicção e, certamente, saber, para fazer dessa actividade ocupação, à qual só me dedico, por excepção, e em circunstâncias especiais e irrecusáveis. No meu caso pessoal, ir além do gosto ou do não gosto, é ultrapassar as fronteiras do amanuense que, em tal domínio, me considero. B) Da muito significativa e valiosa obra antecedente de R.C., enquanto poeta, vou destacar, a título comparativo, apenas três dos seus últimos livros, através dos quais é possível estabelecer-se o fio condutor que mostra a persistente coerência de estilo e temática do seu percurso versejante.


São eles: Os rios de mim (Ed. Urutau, 2018), O mundo sem explicação (Ed. Coisas de Ler, 2019) e Observatório do Caos (Ed. Patuá, SP, 2017). Sem excepções, R.C., opta estética e estilisticamente pelo cânone mais comum da modernidade que, aliás, os poetas brasileiros já vinham usando, desde o século XIX. Refiro-me ao verso branco e livre, particularmente ajustado à expressão das temáticas mais comuns de R.C.: o diagnóstico social, a inquietação angustiada perante o curso da História, o jorro do seu coração, magoado e indignado em face dos rumos da contemporaneidade e o seu inconformado desconforto ontológico com as atribulações da condição humana. São os versos deste livro, como veremos, predominantemente a continuação dos cantos pungentes de desencanto, protesto e insurgência, já surpreendidos nas obras referidas. A quase única excepção são os temas, ainda assim melancólicos, recordatórios da infância e juventude na sua Cataguases natal: neles renascem pessoas, lugares e situações que fluem em sua alma como já mitificados rios, tal como, no presente, faz também com o Tejo ou o Ganges, em Os Rios de Mim.


Cingindo-me apenas aos títulos das suas referidas três últimas obras publicadas, atente-se nas palavras-chave nos mesmos contidas : rio, sem-explicação e caos. Ao abordar o mundo da memória, R.C. nomeia, não uma qualquer bela paisagem da natureza, com suas serras, florestas, flores e animais, na qual se reveja, mas antes e sobretudo os rios. Esses rios que, sendo belos, podem envolver tudo em lama, pois ocultam sempre uma ameaça : ou seja, tudo podem arrastar na sua frente, quando se enfurecem. Porém, já Brecht, num dos seus aforismos, alertava, a propósito da fúria do rio, para não se dever esquecer que “as margens o oprimem”. O mundo na visão de Cagiano exprime essa violência com uma lucidez sem concessões.


(Excertos do ensaio de abertura escrito para o livro de Ronaldo Cagiano)


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