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Trompe l’oeils (de Ademir Demarchi)– o artíficio e a arte

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 9 de nov.
  • 6 min de leitura

Por Henrique Duarte Neto

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Trompe l’oeils é o último livro da trilogia de experimentos metalinguísticos de Ademir Demarchi, iniciada com A parte desejada e seguida de Por virtude de muito imaginar. Os três na visão do próprio autor não são livros para o leitor comum – e, podemos dizer que, cada vez mais, esse divórcio se insinua e se desenvolve na seara da poesia contemporânea de qualidade, quer a mais autorreferencial, quer a mais participativa – mas sim para os pares, outros poetas. E não à toa. Há um significativo grau de indeterminação por trás dos poemas de Demarchi.


Assim, ao mesmo tempo, temos o recurso do ludíbrio, da miragem, da simulação, através de significações contrastantes, caras à poesia. Aliás, o próprio significado da palavra francesa “trompe l’oeils” implica nessa simulação, nesse tropeço, pois no seu sentido mais fundamental, tirado das artes plásticas, significa “enganar o olho” através das diferentes perspectivas. Mas apesar de todo o jogo metalinguístico presente na tríade de livros, cujo Trompe l’oeils é o cimo, não se deixa também em muitos momentos de evocar a existência (aqui recriada, reinaugurada pela potência  linguística), bem como a comunicação, embora uma comunicação que exija bastante do fruidor, que deve ter um alto grau de sofisticação na sua recepção dos poemas.  


Outra característica de Trompe l’oeils é o diálogo com a tradição poética-estética-filosófica, muito bem descortinada e reelaborada pelo autor. Mas também, uma categoria que Demarchi apenas esboçou sem nomear no livro em análise, pois que tem um sentido pejorativo, o “plágio”. Situando este conceito, nos dizeres de Michael Schneider, não como pura cópia, mas muito mais como recurso à tradição, vemos à questão assim exposta: “... toda literatura, em graus diferentes, não é doente de ‘plágio’, todo pensamento não está à mercê da influência?” (Ladrões de palavras ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento, p. 38). Para Schneider a questão pode ser colocada neste viés: não há texto original, como também não há a Ur-Narrativa dos formalistas. A imitação é uma necessidade. Apenas que ela deve ser feita com ênfase na diferença (paródia em um viés pós-moderno, cf. Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, 1989) e não com ênfase na semelhança. Desse modo, todo texto forma um conjunto de palimpsestos, do qual se remete a um anterior, mas que não se faz ideia qual terá sido o primeiro. Entretanto, no ato de poetizar encontramos sempre parentes, “pais” e “avós” que nos antecederam e influenciaram na escrita, no ritmo, na cosmovisão, no jogo de imagens.


Não sei se Ademir Demarchi tinha em vista, ao elaborar a tríade, esse relevante estudo de Michael Schneider, Ladrões de palavras..., mas ocorreu-me fazer estas reflexões para ajudar a adentrar no livro. Há, por exemplo, um caso simulado e irônico da angústia da influência e do temor do plágio (no sentido antes referido) do escritor diante de sua obra. O título do poemeto é justamente “Angústia da influência” e trata, realmente, de um caso discrepante: “exupéry leu maquiavel” (DEMARCHI, Trompe l’oeils, p. 66). Aqui o caso vai de encontro a tese, pois são autores de obras que “não” se comunicam, revelando que muitas vezes a angústia da influência é levada a extremos que podem ser um tanto ridículos, como este do autor de O pequeno príncipe com o de O príncipe. Assim, o poema é na verdade um chiste, uma pilhéria.


Levando também para o lado da ironia, o visível exagero de referências estilísticas e temáticas do mais famoso romance de Gabriel García Marquez, Cem anos de solidão, leva Demarchi a “perdoar” o autor pelos empréstimos feitos em relação a Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Júlio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa. Fazendo referência a um estudo assaz crítico e severo, de Severo Sarduy, chega a propor ao romancista colombiano um bem-humorado “Cem anos de perdão” (título do poema), para quem, afinal, não estava tão só, pelo contrário, bem acompanhado da miscelânea de grandes prosadores (Cf. DEMARCHI, Trompe l’oeils, p. 110).


A América Latina, sem dúvida, é uma das preocupações do poeta paranaense radicado em Santos. Num dos poemas, sobre Cuba (em que cita, por exemplo, trecho de um livro de Pedro Juan Gutierrez, sobre a absoluta escatologia dos moradores de Havana), pensamos que estamos numa verdadeira América Latrina diante da citação: “e no banheiro a merda chega até o teto. / nesse banheiro cagam, mijam e se banham todos os dias. (...) e jogo o embrulho de merda na cobertura de um edifício ao lado, / que é mais baixo. ou na rua. dá na mesma. um desastre!” (DEMARCHI, Trompe l’oeils, p. 56). Mesmo aqui, quando apenas cita, Demarchi não deixa de criar no corpo do poema, reelaborando o conjunto de palimpsestos. Assim, está configurado o longo título: “O HOMEM É UM SER SOCIAL CUBA UM PAÍS DE HOMENS À ALTURA VIVA A REVOLUÇÃO”. Podemos dizer que apesar de não, obviamente, partilhar da mesma espetacularização de uma grotesca miséria, o autor de A parte desejada, aventura-se pelo mundo do gracejo, em que deixa entender pelo título o exagero de Gutierrez e, por outro lado, também considerando o aspecto sombrio do regime comunista. Por isso, o “VIVA A REVOLUÇÃO” é ambíguo. Tanto pode ensejar ironia crítica como aplauso. Em si, esta é uma postura mais madura, verdadeiramente de esquerda, sendo mais abrangente e plural.


Se faz um olhar intenso e arguto sobre o mundo e a sociedade contemporânea, especialmente no Brasil e na América Latina, o verdadeiro filão de Demarchi é o exercício autorrefencial da crítica da poesia por si mesma e para poetas de todos os gostos. Não à toa podem ser elencados: Paul Valéry, Victor Hugo, Salman Rushdie, Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski, Guilherme Gontijo Flores, Gregório Duvivier, Chacal, entre outros. Num aspecto mais amplo, abre, como já foi dito, diálogo com toda uma tradição poética-estética-filosófica. Muitas vezes é o próprio ego e, por extensão, o pobre cânone que se vai delineando na contemporaneidade. Como nestes versos: “na megalômana literatura contemporânea / onde há uma sardinha vê-se logo uma tainha” (DEMARCHI, Trompe l’oeils, p. 34). Este quadro é sombrio e verdadeiro. Pois a cada temporada surgem novos autores que, ao projetarem algumas faíscas, são imaginados como responsáveis por um verdadeiro show de pirotecnia. Mas cedo ou tarde, esgotada mesma a fonte dos precários lampejos e fagulhas, a decepção vem, sem nunca ter se materializado o que se esperava, o verdadeiro talento.


Falando mesmo em “Narcisismo protopoético” (p. 139), em que esse eu poético é tão exacerbado que chega a ser considerado uma anomalia, o autor de Por virtude de muito imaginar, mais do que propor algo diverso, faz da sua própria práxis antídoto ao eu hiperbólico. Nadando contra-a-corrente em praticamente todos os seus livros, chegou mesmo em um deles a fazer até uma Antologia impessoal.  


Aliás, em relação a esse eu, a essa guerra contra a vaidade pessoal, ela está sintonizada a casos em que mal se poderia suspeitar, como o do pensador cético romeno-francês Emil Cioran, do qual a obra, sugerida no título, é verdadeira “Matraca palavrosa”: “cioran seria melhor se fosse poeta / não tendo sido, mancando, / à falta dessa economia, matraqueia” (DEMARCHI, Trompe l’oeils, p. 146). Por trás desta crítica a verborragia cioraniana, a constatação de que o prosador, apesar de seu estilo refinado, realmente, escreveu demais. Mas esta é uma conclusão também do próprio Cioran, em uma entrevista a Sylvie Jadeau (CIORAN, Entrevistas com Sylvie Jadeau, 2001, p. 30-31). Na verdade, segundo o entrevistado, três livros bastariam para ele ter expressado o essencial do seu pensamento: em primeiro lugar, Do inconveniente de ter nascido, e depois, num segundo plano, Silogismos da amargura e A queda no tempo. Mas isso não impede que a inferência de Demarchi tenha brilho, embora os aforismos e máximas de Cioran contenham grande poesia. Mas se o autor romeno-francês tivesse escrito em versos, possivelmente operaria com a síntese, com muito mais economia.


Em suma, operando ou não com a montagem, desmontagem e remontagem de referências, da cultura, da arte ou do saber, Ademir Demarchi demonstra talento e argúcia, típica de um refinado (re)criador. No fundo, todo grande poeta é ao mesmo tempo um criador e um recriador de uma certa tradição – dada ou que se está constituindo. O poeta de Trompe l’oeils é já alguém abalizado no trato com o móvel e circular cânone da nossa época, e, de certa forma, vai, aos poucos, consolidando seu nome, especialmente entre os pares, ou seja, os outros poetas e os leitores mais sofisticados. E isso não é pouca coisa no cenário altamente fluido da poesia brasileira, que parece exigir do autor, artifício e arte em constantes devires.

 

REFERÊNCIAS


CIORAN, E. M. Ouevres. Paris; Gallimard, 1995.

CIORAN, E. M. Entrevistas com Sylvie Jaudeau. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre/RS: Sulina, 2001.

DEMARCHI, A. Antologia impessoal. Florianópolis/SC: Nave, 2022.

DEMARCHI, A. A parte desejada. Ponta Grossa/PR: Lambrequim, 2025.

DEMARCHI, A. Por virtude de muito imaginar. Ponta Grossa/PR: Lambrequim, 2025.

DEMARCHI, A. Trompe l’oeils. Ponta Grossa/PR: Lambrequim, 2025.

HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Tradução de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.

SCHNEIDER, M. Ladrões de palavras ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Tradução de Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 1990.

 
 
 

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2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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