Por Ivan Justen Santana
Antes de mais “nada”
1984 foi um ano bom para Paulo Leminski. No ano anterior, ele tinha se projetado nacionalmente como poeta, com a publicação de Caprichos & Relaxos, pela Brasiliense (apesar do nome, uma editora de São Paulo), a qual viu se esgotarem sucessivas tiragens do livro, ultrapassando quinze mil exemplares vendidos.
Leminski também já tinha feito sucesso com a breve, mas bem informada, biografia Cruz e Sousa: o negro branco, pela coleção Encanto Radical da editora. A Brasiliense estava em grande fase naquela primeira metade da década de 1980, especialmente graças a sua outra coleção de livros de bolso, a Primeiros Passos.
Com a receita de publicar livros baratos, curtos, em linguagem acessível, mas divulgando conhecimentos sólidos e atualizados, a editora multiplicou suas vendas e ganhou o público jovem. E a produção de Leminski caiu como uma luva nesse contexto.
Assim, em 1984, saiu mais uma biografia: Matsuó Bashô: a lágrima do peixe. E Leminski lançou, também pela Brasiliense, o romance Agora é que são elas, escrito naquele mesmo ano, com uma pegada nitidamente modelada para o espírito da época.
A contracultura dos anos 1960, baseada na contestação característica das artes de vanguarda, virava mercadoria e explodia animadamente no cenário brasileiro dos 1980, enquanto a ditadura militar e a censura estertoravam.
Surfando a parte mais crítica dessa onda, a Brasiliense botou mais um bloco na rua do mercado editorial: a coleção Circo de Letras. Toda uma literatura abordando temas tabus, vetados na década anterior (basicamente sexo e drogas, mas também tudo que fosse considerado alternativo e underground – especialmente a literatura beat), veio à tona nessa série de livros.
On the road – Pé na estrada, de Jack Kerouac, na tradução de Eduardo Bueno, foi o número 4 da coleção. Números 2 e 3: os romances Cartas na rua e Mulheres, de Charles Bukowski – como se sabe, um autor associado aos beats, à sua própria revelia.
A coleção emplacou comercialmente. E em Mulheres, o personagem-narrador Henry Chinaski, alter ego de Bukowski, explicita num diálogo sua admiração absoluta pelo obscuro prosador John Fante.
Romance principal de Fante: Ask the dust. Quem traduziria esse livro, que sairia em 1984 pela Brasiliense, com o título de Pergunte ao pó, número 13 da coleção Circo de Letras?
Sim: o produtivo e valorizado Paulo Leminski. Aliás, o seu Agora é que são elas saiu como número 21 da coleção. E a carreira de Leminski na Brasiliense teria mais lançamentos em 1984.
Mas façamos uma pausa para respirar. A euforia do período e a exuberância das publicações podem contagiar e confundir. Isso que ainda nem abordamos o livro a ser aqui resenhado. Antes de atacar esse nosso assunto principal, outra edição a comentar.
Vida sem fim, do poeta beat norte-americano Lawrence Ferlinghetti, é uma antologia (publicada originalmente em 1981) selecionada pelo próprio autor, a partir dos seus oito livros de poesia editados até então.
Em edição bilíngue, com 270 páginas, saiu como o número 22 da coleção Circo de Letras. Tradução feita em equipe: Nelson Ascher, Marcos Ribeiro, Paulo Henriques Britto e Paulo Leminski. Cada tradutor verteu os poemas de dois dos oito livros antologizados.
Ascher escreveu a introdução do volume, e Leminski, o posfácio. Um texto iluminador, sobre Ferlinghetti e sua poesia, o trabalho da tradução, e os contrastes entre a geração beat e o concretismo brasileiro. Ao final, a data: “agosto de 1984”.
Finalmente, podemos abordar o objeto desta resenha.
Mas antes... Sim, mais um antes. Outro lançamento de Leminski em 1984 bastante relevante aqui: a biografia Jesus A.C., pela coleção Encanto Radical.
A audácia de biografar ninguém menos que Jesus Cristo para uma série de livros de bolso já diz muito. E no conteúdo, Leminski exibe sua capacidade de aliar conhecimento erudito multilíngue com estilo coloquial, atraente aos leitores jovens.
A propósito, as biografias de Cruz e Sousa, Bashô, e Jesus, bem como a de Trótski, estão reunidas no volume Vida, mais recentemente reeditado (2013, com tiragens posteriores) pela Companhia das Letras. Textos bem recomendáveis para notar o quanto Leminski foi além da “mera” criação poética autoral.
Nesse sentido, aparecem as suas traduções. E entre elas – agora sim: Um atrapalho no trabalho. O autor traduzido: nada menos que John Lennon.
Um polaco latino nas engrenagens
Conforme exposto, no segundo semestre de 1984 Paulo Leminski já estava credenciado como uma espécie de camisa 10 da Brasiliense. Best-seller de poesia, biógrafo de três figuras históricas superlativas, romancista, tradutor testado e aprovado.
Portanto, é provável que ele mesmo tenha sugerido à editora a próxima tradução, feita ainda antes de acabar o ano, aproveitando todo aquele embalo.
Como informa Tarso de Melo nas notas à segunda edição das cartas de Leminski ao poeta Régis Bonvicino (Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica, São Paulo: Ed. 34, 1999, p. 176), Leminski já havia traduzido e publicado um conto de John Lennon, Araminta Ditch – “Araminta em pratos limpos”, no número 3 da revista vanguardista Corpo Estranho, de 1982.
De modo que ele já devia conhecer os dois livros de Lennon, lançados em 1964 e 1965, e após o assassinato do beatle em 1980 reeditados num só volume. “Araminta em pratos limpos” está nessas publicações.
Leminski deve ter feito a proposta de traduzir integralmente os trabalhos literários de Lennon, e o então assistente editorial da Brasiliense, Luís Schwarcz, provavelmente respondeu (como o próprio Leminski contou que ouvia sempre da editora, na certeza de mais um hit): “Toca o pau!”.
Os dois livros reúnem textos satíricos, em linguagem bizarra e subversiva, ilustrados em estilo de cartum pelo próprio autor. Os títulos trocadilhescos de ambos já dão uma ideia do que se trata.
Lennon in his own write é uma combinação das sonoridades de “Lennon em sua própria escrita” e “Lennon em seu próprio direito” (right).
A Spaniard in the works remete à expressão idiomática “a spanner in the works” (literalmente, “uma chave-de-fenda nas engrenagens”, significa uma sabotagem – ou, figurativamente, um obstáculo não calculado). A troca de spanner por Spaniard (substantivo inglês para as pessoas nascidas na Espanha) faz com que o título signifique tanto “um espanhol nas engrenagens” quanto “um espanhol em trabalhos”, ou ainda algo como “um espanhol se esforçando para resolver uma situação problemática”.
No extenso posfácio que preparou para a edição, Leminski menciona a dificuldade de achar uma solução tradutória para esse título-trocadilho: “(botar) Formiga no Pudim (de alguém), uma mosca na sopa, por essa você não esperava, uma pedra no caminho?”.
E conta que foi sua companheira Alice Ruiz quem o tirou do impasse, propondo, segundo ele, o imbatível (“unbeatable!”) “um atrapalho no trabalho”.
O tradutor tinha resolvido o dilema do título do primeiro livro com “Lennon em sua própria letra”. Mas a solução proposta por Alice para o segundo foi tão certeira que passou a intitular o volume todo.
Lennon in his own right contém 31 textos. A Spaniard in the works, outros 18. Como descreveu Leminski, são “estranhas miscelâneas de textos de natureza vária, flash-contos, esboços de peças, poemas nonsense, [...] marcados por extrema criatividade de linguagem”.
A influência maior para o estilo adotado por Lennon, segundo ele mesmo confirmou em entrevista, foram as obras de Lewis Carroll (pseudônimo mais conhecido do inglês Charles Dodgson, escritor e matemático, autor de Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho).
Carroll inventou o uso da palavra portmanteau para designar suas “palavras-montagens”, combinações de duas ou mais palavras. A expressão também pode ser traduzida por “palavra-valise”, pois portmanteau denomina uma valise com dois compartimentos. Essas “superpalavras” portam dois (ou mais) significados.
Usando palavras-valises, Carroll compôs o poema Jabberwocky, inserido em Alice através do espelho. Criatura monstruosa, o Jabberwocky tem seu nome derivado das palavras “jabber” (“tagarelar, falar rapidamente, de modo difícil de entender”) e “wocor” (do antigo anglo-saxão, “filhote”).
Augusto de Campos traduziu (ou, mais propriamente, “transcriou”) o poema, com o título de “Jaguadarte”. Sua primeira estrofe:
Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.
O “Jaguadarte” foi incluso em apêndice no Panaroma do Finnegans Wake (São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 144-7), livro em que Augusto e Haroldo de Campos apresentam suas traduções recriadoras de trechos do Finnegans Wake, de James Joyce.
Os irmãos Campos flagraram que no Finnegans, repleto de palavras-montagens criadas a partir de dezenas de línguas, Joyce teve como fonte importante o poema de Carroll.
Como indicamos, Lennon mencionou Carroll como sua grande influência, já bastante explícita ao comparar os textos de ambos. Mas também disse que, após publicar Lennon in his own write, em 1964, leu uma resenha que associava seu estilo ao de James Joyce. O beatle confessou que foi então se informar a respeito daquele Joyce, que ele sequer conhecia de nome.
A partir disso, animado com o sucesso de público e crítica, e já inteirado quanto à radicalidade da linguagem de Joyce (presente no Ulysses e – mais ainda – no Finnegans Wake), Lennon escreveu e publicou A Spaniard in the works.
Leminski não mostra estar totalmente a par dessas confissões. Mas observa a ascendência nítida de Carroll, faz a associação possível com Joyce e diagnostica: “Do primeiro para o segundo livro, Lennon parece radicalizar seus processos (palavras-montagens, deformações ortográficas, anomalias sintáticas, arbitrariedades morfológicas)”.
Vejamos afinal um trecho, em citação generosa, de Um atrapalho no trabalho, para uma ideia mais concreta:
Acho regengistrado na minha algenda que era uma manhana nervulosa e aventajada lá pelos fins de Malho no anho de nosso Cenhor 1892 em Mucho Mastardy, uma cidade do Morroeste. Shamrock Holmem tinha recedivo um telefonema palidus enquanto a gente almosábia. Não fez nenhuma observância mas o assunto lhe saltava pelos óculos, tanto que ele estancou diante do fogo com uma expressinha pensaltiva, espremendo um sorrídeo, e lançando uma que outra esguelha para a imensagem. Abruptalhadamente sem festanejar ele reviravoltou-se para mim com um pisca-pisca perversátil na pupila.
– Ellafitzgerald, meu carro Wóspede, resfungou e foi ao ponto, adivinha quem furragiu da prisão, Wóspede?
Minha mente imediatamente repasmou todos os caramarradas que tinham recentemente furragido ou furragido de Wormy Scabs.
– Eric Morley?, eu riscunhei. Ele balançou a cabesta. Oxo Whitney?, eu inquirino, ele continuou infermário. Rygo Hargraves?, perguntei polindamente.
– Não, meu carro Wóspede, é OXO WHITNEY, ele esbarbeijou como se eu estivesse em outro quarto, e eu não estava.
– Como é que você sabe, Holmem?, sussurrei escretamente.
– Harrybellafonte, meu carro Wóspede.
Nesse preciso monumento um homem magro mas mais alto que angulongo bateu na porta.
– Macácios me moldam deve ser ele, Wóspede, fiquei deslumbrático com seu burtlancaster.
– Como diastros você soube, Holmem?, pesquizofrênio, mal conseguindo disfarçar meu mau rumor.
– Elifantitus, meu carson Wóspede, ele desembruxou percutindo o caiximbo na sua grande perna esquerdisita. No ínteirim o flavourito Oxo Whitney que dois o tênia.
– Sou um esforragido da jesustiça, Sr Holmem, ele se pressipintou frenítido no resimples.
– Calma Sr Whitney!, interpolei, ou vai ter um calipso nervosso.
Esse é o começo de A singu(larga) experiência da Srta. Anne Duffield, uma evidente paródia dos contos de Sherlock Holmes. Lennon também satiriza a história da Branca de Neve (Bronca de Noiva e os septos ahnãos) e um dos mais famosos romances infantojuvenis de Stevenson (Ília do tesouro).
Seus textos e desenhos dão assim a impressão de meras brincadeiras juvenis. No entanto, como observa Leminski, o próprio nome dos Beatles foi um trocadilho inventado por Lennon, misturando “beetles” (“besouros”, um aceno aos “Crickets” – “grilos” –, a banda de Buddy Holly) com “beat”, “batida de percussão”, que, coincidência ou não, remete à geração beat. Para Leminski, certamente.
Ele assinala que Lennon foi “figura de proa” entre músicos populares como Bob Dylan, Frank Zappa, Jim Morrison, Bob Marley, Caetano Veloso, Gilberto Gil, “músicos e, ao mesmo tempo, pensadores da coisa da cultura, ligados ao sentido das transformações, artistas abertos a outras artes, agitadores culturais, bons de som, de poesia e de conceito”. De tal modo que, com seus dois livros anárquicos, “Lennon trouxe o portmanteau das culminâncias máximas da alta literatura rara para as planícies da cultura pop”.
Cumpre observar que o humor de Lennon é por vezes tremendamente cruel, cínico e agressivo. Se quisermos pinçar uma das amostras mais evidentes e chocantes disso, eis um trecho de Sem moscas em Marcos, no qual esse personagem executa a própria esposa: “Caminhando devagar mas devagar até ela, ele apanhou a cabeça dela entre as mãos e com alguns golpes curtos prostrou-a carinhosamente no chão mortinha da silva”.
Mas vamos a outra citação de extensão mais generosa, desta vez integral (é um conto bem curto):
Surpresente para o Bobbynho
Hoje era o aniversário do Bobbynho e ele ganhou um surpresente.
Seu verdadeiro punho tinha sido arrancado fora (A Guerra) e ele ganhou um gancho de aniversário!
Toda a sua vida o Bobbynho tinha desejado ter seu próprio gancho; e agora no seu 39º aniversário suas súlplicas tinham sido atendidas. O único problema é que lhe deram um gancho esquerdo e quãoquer babaca sabe que era o punho direito que estava faltando como estava.
O que fazer não era o único problema: sejacomoflor ele arrancou sua útima mão e caiu como uma luva. Quemsabe ano que vem ele vai ganhar um gancho direito, quem sabe?
Por sua vez, a maioria dos poemas são puro nonsense, valendo-se também do portmanteau. Porém um dentre eles, em linguagem mais crua e “normal” (mas ainda com ritmo à la Carroll), se sobressai pelo sarcasmo. Conhecendo a história de vida de Lennon, pode-se supor que nesse texto, “Papai” (Our Dad), ele descarregou a seu modo o trauma pelo abandono paterno. Vamos transcrever apenas três estrofes (o poema tem 18), e incluir o texto original para confronto e apreciação do trabalho de tradução:
It wasn’t long before old dad
Was cumbersome – a drag.
He seemed to get the message and
Began to pack his bag.
Fazia pouco tempo
Que papai andava um saco.
O velho sacou o lance
E deu no pé do barraco.
(...)
‘I’m no use to man or beast,’
He said, his eye all wet.
‘That’s why we’re getting rid of you,
Yer stupid bastard, get.’
– Não sirvo pra coisa alguma,
Ele disse, bem papai.
– É por isso mesmo, velho,
Vamos lá, panaca, cai.
(...)
We never heard from dad again
I’spect we never shall
But he’ll remain in all our hearts
– a buddy friend and pal.
Nunca mais soubemos dele
Espero que nunca mais
Ficará em nossas vidas
Como o melhor dos papais.
Saldo crítico
Um atrapalho no trabalho foi lançado pela Brasiliense em fevereiro de 1985, em edição bilíngue, com 242 páginas. Foi o número 28 da coleção Circo de Letras. A introdução, um texto divertido de uma página, é do amigo e parceiro Paul McCartney. O posfácio de Leminski, saiu assinado ao final com local e data: “Curitiba, 8 de dezembro de 1984, 4º aniversário da morte de Lennon”.
A repercussão crítica imediata foi ambígua.
Em resenha de página inteira, “John Lennon, escritor” (subtítulo: “Em elaborada tradução, são finalmente publicados no Brasil os textos do maior dos beatles”), a revista Veja (n. 860, 27/02/1985, pp. 101-2) deu assim à edição grande destaque, incluindo na matéria uma foto de Lennon, uma das suas ilustrações para o livro, e um box com trecho do conto A festa do Randolfo.
A resenha reconhece que a linguagem de Lennon, “construída de palavras e expressões inventadas ou subvertidas”, “exigiu um tradutor do porte do poeta Paulo Leminski e um trabalho que é toda uma recriação”, e que “O Lennon/Leminski que surge nestes textos tem momentos de alta hilaridade”.
Contudo, a continuação na página seguinte da revista acusa nos textos uma “rebeldia adolescente”, “imatura”, “sempre tentando cutucar e desmontar o mundo dos adultos”, que “sempre acaba por encontrar um ponto que o autor não sabe transpor para oferecer sua própria alternativa”. O resultado apontado: “Lennon, frequentemente, dá a impressão de não saber como terminar suas histórias”, e assim “recorre, na maior parte dos casos, à saída mais fácil: ou matar os personagens, ou fazer com que eles se matem”.
Vale notar que apenas um dos 49 textos, Triste Michel, termina meramente sugerindo que o personagem se mata: “E o que é que eu vou fazer agora com todos os meus livros murdos e súbitos?, dirce Michel, sacando rapidamente seu problema com um tiro certeiro”.
A resenha conclui citando “o brilhante ensaio que acompanha a edição”, no trecho em que Leminski observa:
O beatle máximo era, hoje sabemos, um ‘maior abandonado’, aquela pessoa profundamente insegura, poço de angústias, atingida no coração e na cabeça pela súbita idolatria mundial em escala nunca vista.
Já a maior concorrente da Veja, a revista Istoé (n. 431, 27/03/1985, p. 88), também deu página inteira ao livro, em resenha assinada por Caio Fernando Abreu. Mas só o título e subtítulo da matéria já demarcam seu teor crítico: “Apenas peraltívolas”, “Peraltices frívolas de John Lennon, numa bela embalagem que não salva o conteúdo”.
Em tom mais pessoal, de crítico resenhista (contrastando com a matéria da Veja, não assinada, e que assim assume voz de editorialista), o escritor Caio Fernando Abreu começa elogiando a edição “linda”: a capa, a diagramação, os desenhos do próprio Lennon, e a “inspirada” tradução de Leminski, “que, de quebra, ainda inclui um posfácio rico, apaixonado e esclarecedor”.
A partir daí, bate forte nos textos do livro: “São poemas, pecinhas e contos ‘de barato’, vazios, chatos, cheios de truquezinhos pseudogeniais”. E segue sem piedade: “não deixa de ser engraçadinho, mas haja complacência para comparar as traquinagens de Lennon à obra de James Joyce ou Lewis Carroll. [...] Crianças de até no máximo 12 anos talvez achem ótimo.”
Para Abreu, sendo os livros de 1964 e 65, foram escritos “antes da melhor fase dos Beatles e de Yoko Ono dar um basta nessas bobagens”. E assopra, para depois continuar a bater, cunhando por seu turno uma palavra-montagem: “Tudo bem: o cara era genial na música, mas podiam ter nos poupado essas peraltices frívolas (ou peraltívolas)”.
E o arremate do texto merece citação mais longa, pela impactante argumentação:
Salva-se o livro como objeto bonito, e o leminskiano posfácio [...]. Se os anos ainda fossem os 60, talvez os atrapalhos de Lennon tivessem algum sentido, além de enriquecer ainda mais os herdeiros e alimentar burras necrofilias. Mas nos anos 80 do pós-punk, cemitérios espaciais, Nova República e AIDS, a realidade ficou bem menos amena. Infelizmente para todos.
É fato que Veja e Istoé viviam então uma guerra editorial, sendo a primeira a líder do mercado (sua tiragem semanal ultrapassava quinhentos mil exemplares), e a outra, uma desafiante em crescimento naquele momento. As datas das resenhas levam a crer que a Veja recebeu com antecedência o livro, possivelmente pelo interesse da Brasiliense em privilegiar o veículo de divulgação mais poderoso, que assim noticiaria antes o lançamento.
Isso pode ter tido um peso na resenha da Istoé, revista que adotava então opiniões divergentes e mais provocativas em relação às já emitidas pela rival. Não é difícil imaginar um editor da Istoé encomendando um texto de ataque a Caio Fernando Abreu, que prestava regularmente serviços como resenhista para a revista.
Como quer que seja ou tenha sido, Um atrapalho no trabalho é, sem dúvida, uma obra capaz de causar polêmica, admiração, espanto, ou mesmo desprezo (e até asco), inclusive da parte de fãs dos Beatles e dos trabalhos musicais posteriores de Lennon.
Finalmente, afinal
Leminski publicaria mais cinco livros de traduções pela Brasiliense, de originais de James Joyce (Giacomo Joyce), Yukio Mishima (Sol e aço), Alfred Jarry (O supermacho), Petrônio (Satyricon), e Samuel Beckett (Malone morre). A propósito, é especialmente recomendável navegar pelo site Kamiquase, produzido por Elson Fróes, que ali apresenta a bibliografia mais completa dos múltiplos trabalhos do poeta curitibano:
https://www.elsonfroes.com.br/kamiquase/biblio.htm (Acesso em 15 ago. 2024).
Para uma visão crítica abrangente e ao mesmo tempo concisa sobre Leminski como tradutor, há o ensaio “Aquela língua sem fim: Leminski tradutor”, de Reynaldo Damazio, no livro-coletânea A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski (Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004, pp. 313-21), organizado por André Dick e Fabiano Calixto.
Damazio dedica uma página de seu ensaio a Um atrapalho no trabalho, com citações e comentários bastante pertinentes. É um exemplo de crítica mais distanciada do calor do lançamento e, portanto, mais meditada, em contraste com as resenhas aqui comentadas.
De minha parte, escrevi uma dissertação de mestrado que tentou dar conta de todas as traduções de Leminski (Paulo Leminski: intersemiose e carnavalização na tradução. São Paulo: FFLCH-USP, 2002). Pesquiso suas obras há 35 anos e, curitibano também, sei que ficou transparente aqui a minha admiração nem um pouco neutra por elas. Aliás, neutralidade crítica total é impossível, ainda mais em se tratando de figuras como John Lennon – e Paulo Leminski.
Nesse sentido, aproveito para divulgar aqui, como credencial extra, que em parceria com o professor Charles A. Perrone, traduzi para o inglês a poesia completa de Leminski (All Poetry. Hanover-USA: New London Librarium, 2022).
E para “finalmente afinal” chegar à conclusão deste texto, confesso o seguinte. Sabendo que as traduções que Leminski publicou pela Brasiliense são hoje livros fora de catálogo (com exceção de O supermacho, de Alfred Jarry, republicado em 2016 pela Ubu editora, com muito capricho), e que, portanto, Um atrapalho no trabalho não é nada fácil de ser encontrado e adquirido atualmente, foi de propósito que fiz citações mais longas do que seria praxe numa resenha (que aliás acabou não virando propriamente uma resenha típica – coisas de atrapalhos nos trabalhos...).
Espero que vocês leitores me desculpem por isso (ou quem sabe até me agradeçam).
Já passa da hora de concluir.
Ah, sim, uma última coisa: todos os posfácios que Leminski escreveu para suas traduções (inclusive o de Um atrapalho no trabalho, “Lennon rindo” – para quem ficou curioso depois de ler tantos elogios a esse texto aqui) podem ser encontrados na coletânea Ensaios e anseios crípticos publicada pela Editora da Unicamp em 2011, e reeditada em 2012. Esse livro segue atualmente em catálogo, disponível no site da editora.
Se ainda não leram, vale a pena.
Curitiba, 16 de agosto de 2024
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* Ivan Justen Santana é curitibano, nascido em 1973. Licenciado em Inglês pela UFPR em 1996, mestre em Letras (com dissertação sobre as traduções de Paulo Leminski) pela USP em 2002 e doutor em Estudos Literários (com tese sobre Emiliano Perneta) em 2015. Publicou os livros de poemas 64 peças (Curitiba: Dezoito Zero Um, 2015) e Buquês de Limeriques (Curitiba: Kotter, 2018). Em parceria com Charles A. Perrone, traduziu para o inglês a poesia completa de Leminski (All Poetry, Hanover-USA: New London Librarium, 2022).
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