Um panorama do Panaroma do Finnegans Wake
- jornalbanquete

- 24 de ago.
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Por Luis Henrique Garcia Ferreira

Os “irmãos à obra” aberta Haroldo de Campos (1929-2003) e Augusto de Campos (1931-...) foram os primeiros a traduzir fragmentos do Finnegans wake para o português. Portanto, foram pioneiros na execução da “musiscritura” experimental do modernista irlandês James Joyce, a qual foi composta durante dezessete anos e publicada integralmente em 1939. Esta obra, que mescla mais de setenta línguas e dialetos em um imenso caleidoscópio linguístico-cultural, continua uma hercúlea “tarefa” aos tradutores até os dias de hoje.
Mas, desafiando o lugar-comum de obra intraduzível, ainda na década de 50, mais precisamente em 1957, os paulistanos colocaram a mão na massa macrotextual wakeana e transcriaram 11 trechos do livro no Jornal do Brasil. Como Augusto comentou,
os primeiros fragmentos da nossa antologia do Finnegans Wake foram publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na época de maior presença da poesia concreta naquele jornal, em 1957, com um artigo de Haroldo: “Panaroma em português: Joyce traduzido”. Logo depois, eu publicava, no mesmo suplemento, a tradução de um capítulo – “Introdução a um assunto estranho” – do livro Skeleton–key to Finnegans Wake (Chave-mestra para o Finnegans Wake), de Campbell e Robinson, e, em seguida, uma página dupla com o meu artigo “James Joyce em Finneganscópio” e mais 6 fragmentos (Campos, 1984, p. 29).
Já em 1962, com o apoio editorial do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, esses fragmentos retornaram no formato de livro em uma edição não comercial que os irmãos intitularam Panaroma do Finnegans wake. Nessa edição, além dos 11 fragmentos publicados anteriormente, houve a inclusão de outros 5, os quais foram complementados por notas explicativas, textos críticos – como o de Campbell e Robinson – e, também, pelo poema Jabberwocky de Lewis Carroll, que Augusto transcriou como Jaguardarte.

“Panaroma” é um neologismo que os irmãos Campos extraíram do próprio Wake, estampando já na capa a palavra-valise trocadilhesca, um dos mecanismos poéticos do Wake. A palavra-valise, ou “portmanteau”, é a junção de duas ou mais palavras no mesmo termo. “Panaroma” (Pan+aroma+panorama), por exemplo, pode apontar para Pan, aroma, panorama ou para tudo ao mesmo tempo. Mesmo a partícula linguística “pan”, sozinha, já encapsula tanto a ideia de totalidade quanto a do deus grego Pan. Assim, o título foi uma escolha cirúrgica, pois, além de dar um “panorama” – uma vista geral e resumida de um calhamaço de 628 páginas –, esfrega na cara do leitor um elemento estrutural essencial da obra. Como Augusto explica,
o número reduzido dos fragmentos em relação ao original, de 628 páginas, se explica pelas dificuldades extraordinárias que o texto apresenta para a sua compreensão e para a sua reestruturação em outro idioma, já que se constitui numa sucessão ininterrupta de trocadilhos e paronomásias em várias línguas (Campos, 1984, p. 29).
Em outro momento, Augusto e Haroldo sintetizaram que
o nosso objetivo sempre foi o de trabalhar e lapidar alguns dos “momentos mágicos” do livro, e somente dar a público aqueles que, em nosso entender, oferecessem, em português, um estatuto equivalente à alta voltagem de invenção e criatividade do original. Trabalho de concentração. Sob esse critério do rigor, o que se propunha, como meta, era um compacto fragmentário, mas feito de fragmentos privilegiados, “epifanias” ou pontos luminosos – uma seleção de peneira fina, que, se não desse conta de todos os passos da narrativa, pudesse propiciar ao leitor um mergulho fundo no “panaroma das flores da fala” joyciano, sem perdas e danos de artesania e poeticidade (Campos; Campos, 2001, p. 21).
Em versões futuras, continuaram enriquecendo a edição com instrumentos críticos e, inclusive, com a retradução, ou (re)transcriação de um dos trechos traduzido na publicação “finnicial”, mostrando a mobilidade rizomática do signo wakeano. Assim, fundaram tanto a base prática quanto sedimentaram os alicerces teóricos da transcriação wakeana para as futuras traduções parciais e integrais da obra.
Desse modo, fiel à poética de work in progress do original, nove anos após a já lendária edição de 1962, o Panaroma do Finnegans wake ganhou o selo editorial da editora Perspectiva e, em 1971, inaugurou a Coleção Signos.

Essa segunda edição, repaginada com uma estética visual de inspiração concretista, foi acrescida de mais 5 fragmentos e da expansão de outros dois. Ademais, o aparato crítico foi enriquecido com novas notas, indicações bibliográficas e textos teóricos, a exemplo do ensaio “De Ulysses a Ulisses”, no qual Augusto aborda a primeira tradução brasileira do Ulysses de Joyce, que foi realizada pelo “dicionárico” Antônio Houaiss em 1966.
Mantendo a identidade editorial dada pela Coleção Signos, o “Panaroma” wakeano dos Campos foi se ampliando, sendo que os 16 fragmentos da edição de 1971 se tornaram 19 na de 1986. A quarta edição, de 2001, por enquanto, é a última. Nesta até então derradeira (tomara que venham outras!) publicação, como eles mesmos disseram, “decorridos 15 anos da última edição, temos naturalmente alguns acréscimos e expansões a oferecer. Traduzir Joyce e, mais ainda, traduzir Finnegans wake implica uma vigília e uma revitalização sem fim” (Campos; Campos, 2001, p. 22). Assim, os 11 fragmentos publicados em 1957 se rizomaram até chegarem a 22 em 2001, todos espelhados pelo original de 1939 para que o leitor possa se guiar e se perder tanto na criação joyceana quanto na transcriação dos Campos. Do mesmo modo, sem contar os inspirados prefácios à segunda e à quarta edições, os poucos textos críticos iniciais se pluralizaram para 6: “Panaroma em português”; “Introdução a um Assunto Estranho” (tradução parcial de “A skeleton key to Finnegans wake”); “O lance de dados do Finnegans wake”; “De Ulysses a Ulysses”; “Outras palavras sobre Finnegans wake”; “Do desesperanto à esperança – Joyce revém”.
Trazendo a “musiscritura sonhora” de Joyce para o português pela primeira vez, Haroldo e Augusto inauguraram e inspiraram uma tradição tradutória da obra. Também fundaram a crítica brasileira do Wake por meio das notas e textos analíticos que sempre acompanharam as edições. A seguir, seguem linhas do tempo sobre o rizoma tradutório do Finnegans wake no Brasil, impulsionado pelo pioneirismo dos Campos.




Mas, além desse papel precursor e rizomático do “Panaroma”, Augusto e Haroldo também foram babelizados pelo Wake. Segundo Augusto,
dos trabalhos mais diretamente influenciados pelo Wake eu citaria, no meu caso, Poetamenos (1953) e cidade (1963) – uma centopeia vocabular na descendência da “palavra-trovão”, o centígrafo criado por Joyce para assinalar o tema da “queda” (de Adão a Napoleão), no Finnegans wake; e colidouescapo (1971), cujo próprio título deriva da expressão "collideorscape", do mesmo livro. De Décio, a estela cubana (1962), com suas inscrições de leitura palimpséstica; de Haroldo, o âmago do Ômega (1955) е, muito especialmente, as Galáxias, iniciadas em 1964 – uma nebulosa de palavras num território já confinante entre a poesia e a prosa (Campos, 1984, p. 28).
Dessa forma, ou “desforma”, “a telescopagem vocabular operada pela poesia concreta é, sem dúvida, fruto do estudo do Finnegans wake. Joyce sempre foi um dos nossos pilares. E continua sendo, com ou sem poesia concreta” (Campos, 1984, p. 28). Nessa linha, particularmente a poesia concreta, da qual os Campos são a principal bandeira, é um híbrido de influências:
de Mallarmé, as “subdivisões prismáticas da Ideia” de Pound, o “método ideogrâmico”; de Joyce, a “palavra-ideograma”, a “simultaneidade temро-espaço precipitada pelo trocadilho”; de Cummings, a “atomização vocabular”. Com esse material e mais o “biscoito fino” dos nosso Oswald e João Cabral, preparamos a munição com a qual iríamos deflagrar a poesia concreta (Campos, 1984, p. 28).
“Finniciando” esse panorama do clássico, ATUAL e indispensável Panaroma do Finnegans wake, vislumbra-se a potência dos exercícios analíticos e transcriativos da obra joyceagustiaroldiana, que semearam movimentos rizomáticos pluralizados em gestos tradutórios, críticos e artístico-literários, os quais vão muito além deste ensaio.
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* Luis Henrique Garcia Ferreira é graduado em Jornalismo pela PUC-Campinas (2003), Mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Coletivo Finnegans Wake, no qual foi tradutor de dois capítulos de Finnegans rivolta, vencedor do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Tradução.
Referências
CAMPBELL, Joseph; ROBINSON, Henry Morton. A skeleton key to Finnegans wake. Califórnia: New World Library, 2005.
CAMPOS, Augusto de. Entrevista com Augusto de Campos. Jornal da Tarde , 30 jan. 1982, sob o título A revolução de Joyce chegando aos poucos no Brasil. Ilha do Desterro, 2o semestre de 1984, p. 25-35.
______. Viva vaia. Poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
______. Viva vaia: poesia 1949-1979. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011a.
______. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2011b.
______. Transcriação (Org. Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega). São Paulo: Perspectiva, 2013a (Séries Estudos, v. 315).
______. A reOperação do texto: obra revista e ampliada. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013b (Série Debates, v. 134).
______. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2016 (Série Debates, v. 16).
______. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2017 (Série Debates, v. 247).
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Panaroma do Finnegans wake. 1. ed. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura de São Paulo, 1962.
______. Panaroma do Finnegans wake. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
JOYCE, James. Finnegans wake. Londres: Faber & Faber, 1939.
______. Ulisses. Tradução de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1966.





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