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Uma imensa mesa de concreto flutuante invisível

  • Foto do escritor: jornalbanquete
    jornalbanquete
  • 24 de ago.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 25 de ago.

Por Gerald Thomas


Haroldo de Campos.  Foto de German Lorca.
Haroldo de Campos. Foto de German Lorca.

Em 1988, Haroldo de Campos e eu parecíamos duas crianças. Claro que, dadas as devidas diferenças de idade entre nós dois (eu com 34, ele com 59). Ele me fazia sentir o “adulto” do par, me chamando constantemente de “Herr Direktor”. Gargalhávamos a ponto de irritar quem estava por perto.

 

A minha “Trilogia Kafka” estava em cartaz no Teatro Ruth Escobar. “Um Processo”, “Uma Metamorfose” e “Praga”. Com a vinda de Ellen Stewart pra ver a Trilogia e levá-la para o La MaMa, eu troquei “Uma Metamorfose” por “Carmem Com Filtro 2”.

 

Bem, pode-se dizer que aí o sangue de Haroldo subiu à cabeça. Parecia um torcedor do Flamengo ou… Corinthians em plena ebulição…chegava a soltar alguns sons estranhos (de entusiasmo, claro) durante algumas cenas.

 

No final da noite, estávamos sempre em sua casa, em Perdizes. Frio, úmido, cachimbo e vinho, e mais conversas sobre Pound e Joyce e Kafka e Beckett e como a mescla iconoclástica estava rompendo e esticando o significando (eu dizia “derridando”), de tudo e todos.

 

Ele sorria e dizia, “Fausticamente”: “Derridando não! “Lacando…”

 

Eu: “Latindo cão latando em latim”

 

Ele: “sim, é isso. O latim está voltando.

 

Eu: mas Haroldo, e a mesa?

 

Ele: Mesa?

 

Eu: Sim, a mesa. Você nunca menciona a mesa.

 

Ele: Mas que mesa?

 

Eu: A Mesa pendurada lá no ar, no meio do cenário... é justamente uma alusão a Dante e... .a “reclusão do latim”

 

Ele: (mudo por um tempo)... (estupefato por mais um tempo... agora sério)  Gerald….eu nunca vi essa mesa. Me desculpe, mas acho que perdi o principal.

 

Me senti péssimo nesse momento. Estávamos nos divertindo horrores, sem compromisso e, de repente, os ponteiros param e a “coisa” se volta contra ele: a “mesa”.

 

Ele: Preciso ir ver o espetáculo novamente hoje. Tem hoje?

 

Eu: Hoje é “Um Processo”, mas a mesa estará lá pois ela acompanha os três espetáculos.

 

Haroldo saiu lívido do Teatro Ruth Escobar.

 

“Verdade. Tinha a mesa. Esse tempo todo tinha uma mesa e eu não a tinha visto.”

 

Eu: Sim, eu queria que as peças fossem encenadas mas, ao mesmo tempo escondidas da Gestapo e das forças de Franco e do Reichsprotektor. Era essa a ideia, Haroldo.

 

Ele entrou cabisbaixo num táxi e foi pra casa. Eu voltei ao meu hotel.

 

Dois dias depois eu abro a Folha de São Paulo e leio, em letras garrafais:

 

Thomas liberta Carmem de seu mito de origem 

 

“E aquele colégio de penitentes sonoristas, lêmures cujo coro de

rumores é regido pelos gargarejos de um maestro obstinadamente

tartamudo?

 

Como Mme. Bovary para Flaubert, para Gerald Thomas:

Carmen c’est moi, Carmen c’est le théâtre. O teatro. Livrá-lo, a ele, do ranço

de seu velho discurso desamoroso. Como a ela, libertá-la do seu mito

de origem (contratipado no de Helena, grega e goethiana): femme fatale.

Ao invés de especular sobre o Eterno Feminino, esquadrinhar

o Interno do Feminino. A equação está aí. Basta resolver-lhe as

incógnitas.

 

A verdade é vertiginosa. “O vero – já dizia Hegel – “é o delírio

báquico”. Das Wabre ist so der bacchanistische Taumel.

 

TANT PIS PARA QUEM NÃO ENTENDE

 

Uma – levitante – mesa de Salvador Dalí, que pode ser távola

ou lampadário, mas que de tão visível se envibiliza: baldaquino

suspenso sobre uma insinuada quarta dimensão. Abajur esotérico?

Uma biblioteca – nave de catedral? – que terá sido sem dúvida

o Gabinete de Leitura do Castelo fantasma de Kafka.

Entre alfarrábios, almagestos e incunábulos que se escondem

nas impassíveis prateleiras haverá, sem dúvida, uma edição príncipe-

árabe-hebraico-espanhola do Guia dos Perplexos de Maimônides. (É

pena, nada permite crer que se trate de uma Biblioteca Circulante.

Tant Pis para o respeitável público...)

 

 

Eram baseadas em Kafka, não havia uma única palavra de Kafka ali em nenhuma delas, garanto. Nem se Max Brod viesse de volta do além para checar, acharia algo além da mera referência ao nome “Gregor Samsa”.

 

Haroldo vinha quase todos os finais de semana e sentava na quarta fileira. E anotava. Anotava e anotava.

 

Uma (ostensiva) madona ginecológica em cena aberta.

Uma roda-totem (Duchamp) que é uma roda é uma roda é uma

roda até que uma bicicleta (seu duplo de rodas) lhe ande à roda e ela

fique tão simplesmente uma (o que ela é) roda.

Uma Carmen crucifixa entre farricocos desencapuzados que a

levam em procissão fúnebre-nupcial. Carmen est maigre – un trait de

bistre/ Cerne son oeil de gitana./ Ses cheveux sont d’un noir sinistre,/ Sa peau,

le diable la tana (Théophile Gautier).

(Carmen é magra,

- orla de bistre/ Frisa-lhe o olho de gitana./

Cabelos de um negro sinistro,/ Sua pele, bronzeou-a Satã).

Não, esta Carmen 2 (Bete Coelho) não tem o olho de gitana

nem a pele morena e sol andaluz como a de Gautier (e a de

Mérimée/Bizet). É uma Carmen expressionista, uma pierrette

translunescente, travestida de Camen como se Edward Munch tivesse

reimaginado a sevilhana voluntariosa em gótico recorte preto-e-

branco de filme de Murnau. Taconear no peito de Nosferatu, o

morto-vivo (o teatro?). Vampirizar o vampiro.

É uma Carmen que se desconstrói, se questiona, não se

conforma com o Urbid de seu mito. Quer reescrever-se como

história, rejogar-se como jogo: porém com cartas não marcadas.

Tudo se passa num labirinto desconcertante de conexões e

desconexões, onde um monge-bruxo Jeronius Bosch pode cruzar

com um traído tenente José e uma capa vermelha se afoga na tinta

escura de Zurbarán.

Afinal: Disparates de Goya encenados com disparos de bateria

minimalista atravessando a música monumental de Wagner.

E aquele colégio de penitentes sonoristas, lêmures cujo coro de

rumores é regido pelos gargarejos de um maestro obstinadamente

tartamudo?

Como Mme. Bovary para Flaubert, para Gerald Thomas:

Carmen c’est moi, Carmen c’est le théâtre. O teatro. Livrá-lo, a ele, do ranço

de seu velho discurso desamoroso. Como a ela, libertá-la do seu mito

de origem (contratipado no de Helena, grega e goethiana): femme fatale.

Ao invés de especular sobre o Eterno Feminino, esquadrinhar

o Interno do Feminino. A equação está ai. Basta resolver-lhe as

incógnitas.

A verdade é vertiginosa. “O vero – já dizia Hegel – “é o delírio

báquico”. Das Wabre ist so der bacchanistische Taumel.

TANT PIS PARA QUEM NÃO ENTENDE

Uma – levitante – mesa de Salvador Dalí, que pode ser távola

ou lampadário, mas que de tão visível se envibiliza: baldaquino

suspenso sobre uma insinuada quarta dimensão. Abajur esotérico?

Uma biblioteca – nave de catedral? – que terá sido sem dúvida

o Gabinete de Leitura do Castelo fantasma de Kafka.

Entre alfarrábios, almagestos e incunábulos que se escondem

nas impassíveis prateleiras haverá, sem dúvida, uma edição príncipe-

árabe-hebraico-espanhola do Guia dos Perplexos de Maimônides. (É

pena, nada permite crer que se trate de uma Biblioteca Circulante.

Tant Pis para o respeitável público...)

 

HAROLDO DE CAMPOS (1991)

 

 

SÃO PAULO , 14 agosto 2025

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* Gerald Thomas nasceu em Nova York, em 1954, onde morou até os 7 anos, quando migrou com a família para o Rio de Janeiro. Nos anos 70, mudou-se para Londres, onde começou sua carreira no teatro, seguindo carreira internacional. Em um de seus livros, Entre duas fileiras (Record, 2016), ele narra desde encontros e vivências com grandes ícones do século XX, como Samuel Beckett e Jean Genet, até relacionamentos tortuosos com artistas como Hélio Oiticica e Ellen Stewart. Foi um dos amigos mais próximos de Haroldo de Campos.

 
 
 

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2022 por Paola Schroeder, Claudio Daniel, Rita Coitinho e André Dick

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