por Rosana Piccolo
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Uma primeira leitura do livro Campos Férteis, feita em sentido bastante horizontal, recorda as palavras do poeta chileno Mario Meléndez, quando ele escreve:
Acordamos para voltar a morrer (...)/ diante de um espelho sonâmbulo/ pendendo de nossa sombra/ para não cair em um poço cego/ onde o cadáver de Deus flutua... 1
Embora não diretamente dedicados a uma reflexão sobre o enunciado nietzschiano, pode-se dizer que os poemas de Campos Férteis o pressupõem. A morte de Deus, porém, não é aqui uma notícia trágica, nem alarmante, nem desencadeadora da “lógica de pavores”2 observada por Nietzsche. Não se apresenta sequer como notícia. No livro em questão, parece constituir um dado apenas, no mínimo um ponto pacífico, subjacente ao longo da obra e a ela incorporado, eu diria, com relativa tranquilidade:
Deus não existe e isso basta.
Ora, se Deus, da forma concebida sobretudo pela religião judaico/cristã, não existe (nunca existiu ou está morto) ― e daí se segue que não há nenhuma instância metafísica privilegiada em relação aos sentidos ―, se o “verdadeiro mundo” platônico revelou-se como fábula, resta-nos o corpo. E se o corpo não reconhece tal Deus, o fato não é lamentado, nem comemorado. O poeta prossegue, ao lado dos deuses que pisam a Terra com seus passos eternos, sob céus muitas vezes nevoentos. Porque este é o mundo que lhe interessa.
Recordemos, com a mitologia grega, que a vitória sobre Cronos divide o mundo terreno em três reinos: a Zeus pertencem o céu e a terra, a Poseidon, seus mares e rios, enquanto Hades governa o espaço subterrâneo. É este espaço, sombrio e oculto, o cenário, senão da maioria, de grande parte dos poemas do livro, eivado de metáforas concernentes à decomposição dos mortos e imagens que, muitas vezes, sugerem a travessia das almas pelo submundo através dos rios infernais, também presentes em Dante Alighieri. No entanto, embora certas passagens do livro possam sugerir o contrário, o barqueiro que as conduz não é propriamente Caronte:
(...) Resgato o homem/ De suas memórias em ruínas.// Sou este viajante/Das névoas densas/Que abraçam os corpos/Entre vales e montanhas.// Cruzo este nosso rio/ Que deságua nos poros/ Das recordações/ Primevas e fico/ Nesta estranha ilha.
O viajante das névoas densas, diferentemente do barqueiro infernal, não é um condutor apenas, mas alguém que “resgata o homem de suas memórias em ruínas”. Ou seja, do esquecimento. Assim sendo, uma aproximação entre os “rios do sono”, cruzados por ele, ao Lete, mitológico rio do Esquecimento 3 nascido na caverna de Hipnos (Sono), não é de todo impossível. O que nos leva a um ponto importante.
No estudo introdutório à tradução da Teogonia de Hesíodo, Jaa Torrano esclarece: “Como des-ocultação é que os gregos antigos tiveram a experiência fundamental da Verdade. A palavra grega alétheia, que a nomeia, indica-a como não-esquecimento, no sentido em que eles experimentaram o Esquecimento não como um fato psicológico, mas como uma força numinosa de ocultação, de encobrimento”.4
Portanto, Léthê, palavra que pode ser traduzida literalmente como “esquecimento” e nomeia o rio subterrâneo de que falamos, opõe-se, para os gregos, à “Verdade”, que é Alétheia (a-létheia). “Verdade”, não no sentido platônico-cristão, como oposta ao ilusório “mundo das aparências”, mas “verdade” como algo equivalente a “não-esquecimento”. Ou melhor, “não-ocultação”. Vejamos melhor isso.
“Esquecimento” (“ocultação”) opõe-se a “Memória”, donde deriva o termo “Musa”. “Memória” que, na Grécia de Hesíodo, assim como “esquecimento”, também não designa um fenômeno psicológico, como usualmente pode ser entendido, mas “des-velamento” (“A-létheia”) do que encontra-se oculto, velado, submerso. Por extensão, também “luz”. Estamos em um outro mundo mental – e é o próprio autor do estudo quem nos alerta quanto a isso –, onde a poesia, ágrafa-oral, era o centro da vida espiritual dos povos. Uma civilização ainda anterior à polis, à moeda e ao alfabeto, onde a palavra (cantada) não era um conjunto de signos, de significantes a abrigarem conceitos, mas uma força divina, capaz “presentificar” passado e futuro. Lembremos que passado e futuro, enquanto “ausências” se equivalem. Tanto um como outro constituem o não-ser, até que a Memória os resgate (“des-vele”), os “presentifique” pela palavra do poeta. Em Campos Férteis, este eco se faz ouvir:
O que posso resgatar/ Daquelas nuvens densas?// Talvez o tempo chuvoso/
Anuncie um novo país/ Atrás dessas terras, / Cujo cinza condensa/ Nossos corpos ao asfalto/ Que se aglutina a nossa pele.
Ora, se o poeta, enquanto força das Musas, resgata da “ausência” fatos e seres que reclamam por glorificação (luz), ele é o profeta por excelência. Cabe dizer, entretanto, que as Musas, também “ocultas por muita névoa”, ao mesmo tempo em que são força de Memória são também força de Esquecimento (ocultação), para “oblívio de males e pausas de aflições”. Ocultamento imposto pela ausência da palavra.5
Buscar outras eras,/ Navegar pelos rios da carne,/ Desvendar o silêncio/ Das ruínas marinhas,/ Beijar a fumaça sonora do ar/ E engolir todas as bombas/ Do mundo outra vez/ Nesta pele de rancor azul/ Que expele o fim dos tempos.
Chamamos novamente a atenção do leitor para a predominância do espaço subterrâneo (oculto) como “lugar” dos poemas deste livro. Subterrâneo que é, de um lado, o espaço da morte propriamente dita, o da terra que cobre a sepultura e vigiado por Cérbero. Mas que também pode ser muito bem o espaço dos enterrados vivos em calabouços fabris tayloristas, fordistas, ou, mais recentemente ainda, o espaço dos desempregados em situação de rua expulsos das fábricas pela robotização, zumbis das sarjetas ou prisões a deixarem ver na penumbra suas feições macabras, ou, no mínimo, desumanizadas, ecoando a voz cavernosa de Andrew Aldritch 6 ou de Ian Curtis 7. Reino do terrível, cuja beleza se revela pela envergadura de poetas como Wachowicz. Pois, como creio, é justamente esse poder de transformação do oposto em oposto, no caso, o Nefando em Sublime, que mede a genialidade do artista.
Se Hades é um deus, é necessariamente imortal. Seu reino, o do mundo inferior, estende-se às sombras, àquilo “que não é visto” 8. Lugar que, portanto, “com seus rios de estranhos eus e povoado por deuses vermelhos”, além da terra que decompõe os corpos (em um sentido mais literal), pode, em sentido figurado, representar tanto o dos “soterrados” por estruturas econômico-sociais perversas quanto o do sono, ou o coma, estados físicos e mentais ligados à inconsciência (mundo da escuridão):
O sono os olhos inunda/ De negro silêncio aquoso/ A navegar pelos poros/ E flui pelo reino sangue/ A conduzir este barco/ Pelo líquido silêncio/ Que acaba em branco abissal
Mas os rios do submundo, aqui percorridos pelo barqueiro das névoas, são inquietos. A palavra “pele”, bastante recorrente no livro (além de seus correlatos), metaforiza um possível “véu divisório” entre o mundo subterrâneo, oculto aos nossos olhos, e o mundo que ao nosso olhar se revela. Véu de espessura tão fina e tão difícil de imaginar como uma linha intermediária entre luz e sombra. Se fosse possível conceber tal divisão, poder-se-ia dizer que a poesia deste livro se dá no porejamento desse véu, cuja metáfora é a pele:
Lunares restos brotam entre a pele/ Que o barco corpo leva neste rio./ Mergulhamos neste campo tinta.// somos os traços alvos negros dele,/ extensão toda deste alvor vazio/ dessa existência sempre viva e extinta.
O conectivo do último verso leva a uma dúvida de ordem semântica: existência “vivae extinta” enquanto alternância ou simultaneidade? Não sei se importa nesse caso.
Os últimos versos do poema “O Olho” referem-se à revelação de “um ousado novo mundo/que sempre foi nosso”. Outra contradição, à primeira vista, que, igual à anterior, se desfaz, ao lembrarmos que aqui não se fala de um tempo linear, nem de um mundo de opostos, onde cada coisa é ou não é. Ao contrário, estamos no mundo heraclitiano, onde cada contrário é o seu contrário. A luz do olho de Hélio (o Sol), longe de se opor à treva, tem nela seu fundamento. Se assim é, a vida e sua extinção em nada se diferenciam, o “ousado novo mundo sempre foi nosso”, ao considerarmos que passado e futuro se encontram no instante de forma indivisível.
Indubitavelmente, de Campos férteis, brotam primaveras. São as águas do esquecimento que, em última instância, fundamentam flores e perfumes aí adormecidos e a serem despertados. O viajante parece ciente disso. Mesmo sob tempestades – páginas amassadas, papéis picados, voltas em torno do branco – ele segue, sem roteiro prévio, nenhuma certeza salvo a fertilidade desses campos nebulosos. Basta atentar às anotações poéticas entre segmentos do livro, que funcionam como uma espécie de um diário de viagem, no qual se registram momentos em que “os olhos estão turvos e só enxergam um obscuro rascunho de tudo”. Mas a promessa de dias mais brandos existe, como a da próxima colheita. Se o sol é simultâneo à borrasca ou a ela sucede, como se sucedem as estações do ano, não importa. Perséfone sempre retorna.
Notas
(1). Mario Meléndez, “Jardim de Escombros” https://revistaacrobata.com.br/florianomartin/atlas-lirico-da-america-hispanica/4-poemas-de-mario-melendez-chile-1971/
(2) Nietzsche, A Gaia Ciência, parágrafo 343, pág. 211, Coleção Os Pensadores. Editora Abril, 1978.
(3) De acordo com a mitologia grega, são cinco os rios do submundo, governado por Hades: Cócito, também conhecido como Rio das Lamentações. Nasce do Rio Estige e une-se ao Flegetonte, em outra extremidade; Flegetonte: rio do fogo. Passa pelas cavernas do Érebo e despenca no Tártaro. Retomado por Dante Alighieri, em A Divina Comédia, como um rio de sangue fervente; Aqueronte: rio da dor. Desce até o submundo, onde transforma-se em um imenso pântano, e depois retorna ao Cócito e ao Estige. É o rio do barqueiro Caronte, em A Divina Comédia; Estige: rio do ódio e também da invulnerabilidade, atributo de Aquiles; Lete: rio do esquecimento. Diz-se que quem mergulha em suas águas esquece o que foi feito em vidas passadas.
(4) JAA Torrano, “O mundo como função das musas”, in Teogonia, pág. 25, Iluminuras, 1991.
(5) Não estamos longe de compreender isso se atentarmos ao medo, presente até hoje na experiência popular, em relação a proferir certas palavras aziagas.
(6) Vocalista da banda The Sisters os Mercy.
(7) Vocalista da banda Joe Division.
(8) Embora acompanhado de Tânatos (personificação da Morte) e seu irmão gêmeo Hipnos (personificação do Sono), Hades não é o deus da morte, mas do mundo inferior das sombras.
Referências bibliográficas
Revista Acrobata (https://revistaacrobata.com.br/florianomartin/atlas-lirico-da-america-hispanica/4-poemas-de-mario-melendez-chile-1971/)
Nietzsche, Coleção Os Pensadores, Editora Abril, 1978. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.
Pré-socráticos, Coleção Os Pensadores, Editora Abril, 1978. Seleção de textos de José Cavalcante de Souza
Hesíodo, Teogonia, Iluminuras, 1991. Tradução de JAA Torrano.
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