Por Arnaldo Antunes
Faz dez anos que Leminski se foi.
Dez anos voam.
E a falta que ele faz como criador, agitador cultural e amigo, fica pousada. Dilata-se, de tempo em tempo, a cada releitura de seus livros.
Leminski continua a nos surpreender. Novas mensagens vão chegando aos poucos. Vivas.
Metaformose, por exemplo, é para mim um banho, um deslumbre, uma coisa do nível do Catatau — pela densidade, misto de rigor e pique, achados e perdidos de invenções poéticas, de um fôlego que não deixa baixar a bola do começo ao fim. Inclassificável como gênero (narrativa ou reflexão? poema em prosa ou ensaio? ficção ou texto didático?). Impressionante pelo fato de não ter sido publicado em vida — o que de alguma forma revela as dúvidas, sempre tão presentes em Leminski, sobre o valor real de cada rebento seu... “Tudo o que eu faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo”.
E essas surpresas percorrem também La vie en dose, O ex-estranho, Winterverno. Como surpreenderam e continuam a nos re-surpreender seus caprichos, relaxos, catatau, vidas, distraídos, polonaises, venceremos, anseios, agora, crípticos, é que são elas, minifestos, etcéteras — tantos e tanto.
“Não fosse... / e era quase”
Leminski se debatia nas fronteiras entre arte e vida. Sua utopia: “vai vir o dia / quando tudo o que eu diga / seja poesia”. Caso de apego profundo e amoroso à palavra — sede de sua água, fogo de seu ar.
O tom de grande parte do que ele produziu nos coloca numa intimidade conspiratória que não é comum de se ter. Como se nos piscasse o olho, por entre as linhas, identificando sempre algo em comum. Essa crença — a de que cada leitor era um comparsa, cúmplice, parceiro — parece ter alimentado o sotaque tão pessoal de sua poesia ou prosa.
Exercitava estranheza e naturalidade; faces de um mesmo rosto.
As gírias, as expressões coloquiais, as fagulhas da contracultura conviviam, com ou/e sem conflitos, com o rigor construtivista, a consciência de linguagem e a precisão e síntese apreendidas nos haikais, no zen, no judô.
Antes de tudo poeta, sua inquietude o levou a se aventurar na música popular, na prosa, nos ensaios, nas traduções, nos grafismos, na poesia visual, no jornalismo, nas telas de vídeo ou de cinema, nas edições de revistas; assim como Torquato Neto (que desafinava o «coro dos contentes», enquanto Paulo fazia “chover” no seu “piquenique”) e outros de sua geração (“pertenço ao número / dos que viveram uma época excessiva”, escreveria ele no poema Coroas para Torquato).
Ou talvez essas modalidades todas fossem apenas outras formas dele praticar a poesia.
Segundo por segundo. Inspiração por expiração.
Tinha que pegar o cara pelo colarinho. Tinha que sacudir o cara. Tinha que pegá-lo pelo estômago.
Duelava com as teclas da máquina de escrever.
Cada letra um tiro. Um beijo.
Um desafio, um desejo.
Para ele era vida ou vida (Cruz e Souza, Bashô, Jesus, Trotski). Não fazia poesia para comentar a vida, mas para estar vivo.
“Não fosse isso / e era menos”
Agora, após dez anos que ele se foi, vamos vivê-la.
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* Texto publicado pela primeira vez no Suplemento Literário de Minas Gerais, nº 48, Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, em junho de 1999 e depois incluído em 40 escritos (Iluminuras, 2000).
* Arnaldo Antunes é músico, poeta e artista visual, nascido em São Paulo, em 1960. Integrou os grupos Titãs e Tribalistas. Em carreira solo desde 1992, tem vários discos, entre os quais Nome, O silêncio e Saiba, e livros publicados, entre os quais As coisas, 2 ou + corpos no mesmo espaço e Algo antigo. Participou de mostras de poesia visual e realizou exposições individuais, no Brasil e no exterior.
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