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Winterverno

Por Arnaldo Antunes


Aos poucos vamos podendo pisar essas pedras que Leminski nos deixou, e que voltam sempre a nos confirmar a grandeza e a profundidade de seu mergulho poético. Depois do corpo de poemas inéditos que veio à luz com La Vie en Close e do deslumbrante Metaformose, recém-lançado, podemos agora curtir esse Winterverno, fruto de um belo diálogo intersemiótico com João Virmond. Entre as inúmeras formas de associação gráfica entre imagem e verbo em nossa época — da ilustração à legenda, do caligrama ao logotipo, da pintura escrita à poesia visual, do cartaz à HQ —, Winterverno tem uma face singular. A síntese verbal de Leminski e o traçado conciso de João se afinaram com muita naturalidade, numa conversa que nos aproxima da condição do haikai, em sua origem ideogramática (dois invernos diferentes formando o mesmo). Aqui os códigos verbal e visual se alimentam mutuamente, ora se complementando, ora se tensionando; ora se traduzindo, ora acrescentando um ao outro novas significações. O resultado é de uma sintonia surpreendente, que muitas vezes incorpora e exibe dados sobre a situação do encontro em que foram feitos — com margem para o salto, o voo, o insight — e toda sorte de coincidências. A simplicidade e a liberdade com que essa relação se fez, tão intimamente, faz lembrar, por vezes, o Nascimento Vida Paixão e Morte, de Pagu, o Romance da Época Anarquista, diário de Oswald e Pagu, ou o Perfeito Cozinheiro de Almas deste Mundo, diário da garçonnière de Oswald — obras/não-obras onde o verbal e o visual se misturam, como a própria criação se mistura à vida. Além de momentos altamente concentrados da poesia de Leminski; além da riqueza de soluções gráficas exploradas por João em seus desenhos; além da delicada interação dos dois códigos; o mais belo desse livro me parece a forma como ele incorpora em si o processo de sua feitura — exposto no raios x dos suportes precários onde inicialmente o diálogo foi se fazendo (e que compõem sua segunda parte). Rabiscados em folhetos publicitários, guardanapos de bar, pedaços de embalagens, folhas de caderno, a matéria-prima que houvesse na hora, os registros nos mostram a urgência da criação contaminada de vida, contaminando a vida, na captação de seus instantâneos. Um livro que foi se fazendo quase sem querer, e que foi se fazendo querer até tornar-se um projeto comum de Paulo e João; da expressão espontânea de uma afinidade à descoberta de uma linguagem.

 

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* Prefácio para o livro Winterverno, de Paulo Leminski e João Virmond (1. ed. Fundação Cultural de Curitiba, 1994; 2. ed. São Paulo, Iluminuras, 2001).

 

* Arnaldo Antunes é músico, poeta e artista visual, nascido em São Paulo, em 1960. Integrou os grupos Titãs e Tribalistas. Em carreira solo desde 1992, tem vários discos, entre os quais Nome, O silêncio e Saiba, e livros publicados, entre os quais As coisas, 2 ou + corpos no mesmo espaço e Algo antigo. Participou de mostras de poesia visual e realizou exposições individuais, no Brasil e no exterior.

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